domingo, 1 de março de 2015

Análise do conto "Amor" de Clarice Lispector

Introdução

por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

O conto selecionado para a elaboração deste trabalho foi “Amor”, texto que compõe a obra “Laços de Família”, de autoria da consagrada escritora Clarice Lispector. O texto em questão parece bastante apropriado para tecer algumas associações preliminares a respeito da biografia da autora, pois a personagem protagonista, Ana, é uma mulher, casada, mãe de família, dona de casa, situação por vezes similar à da própria Clarice. Não seria então de todo equivocado especular se a autora tenha se inspirado, ao escrever o conto “Amor”, em reflexões suscitadas de sua experiência cotidiana. Porém, seria igualmente equivocado estabelecer uma ligação direta entre o conto e a vida da autora. Na verdade, trata-se de uma obra de ficção e por isso a liberdade artística deve ser preservada até mesmo para não comprometer o valor literário indiscutível de toda a produção literária de Clarice Lispector que é independente da vida pessoal da escritora. O livro “Laços de família” foi publicado nos anos de 1960, e evidentemente está imbuído de características que marcaram os meados do século XX. Talvez, as nuances culturais mais notáveis deste período foram as influências da filosofia existencialista, cuja reflexão filosófica apoiava-se na busca de um sentido autêntico da vida, pressupondo-se a precedência da existência, marcada inerentemente pela liberdade, em relação às formas sociais impostas pela cotidianidade. A procura desta autenticidade implicava uma renúncia aos arquétipos de conduta pré-estabelecidos por determinações culturais e político-econômicas da sociedade e a aceitação incondicional da liberdade, da qual todos os seres humanos estavam condenados. Todavia, conforme ditava o existencialismo, tomar as rédeas da existência exigia responsabilidade e um compromisso moral sujeito a embates profundos com valores definidos socialmente e, consequentemente, a represálias vindas do status quo. Dito de outro modo, assumir o sentido da vida, o da liberdade, não seria tarefa fácil, e, por isso, a verdadeira existência, livre de dissimulações e artificialismos, deveria provocar mal-estar, vertigem, náusea etc. Neste contexto, e feitas estas considerações pertinentes ao conto “Amor” e ao cenário cultural da época, é possível pensar uma influência da filosofia formulada por Sartre, Simone de Beauvoir e outros, na obra de Clarice, embora fosse temerário considerar a autora como adepta do existencialismo. A verdade é que filosofia existencialista marcou profundamente a geração de intelectuais contemporâneos de Clarice. A própria autora chegou a declarar as seguintes palavras: “Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente” (Clarice Lispector). Neste sentido, alguns aspectos biográficos são importantes. Clarice nasceu na Ucrânia, em 1920, de origem de família judia, radicalizou-se no Brasil ainda quando era criança. Em 1943, forma-se na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, e casa-se, em 44, com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem tem dois filhos, Pedro e Paulo. No ano de 1959, separa-se de Maury, algo impensável para a época. Fato que demonstra que Clarice não aceitava as imposições sociais por mero conformismo, e estava disposta a enfrentar os preconceitos de seu tempo. Interpretamos que sua produção literária é bem um reflexo de sua vida. Autora de uma vasta obra que vai desde romances, contos, crônicas e até literatura infantil, Clarice é uma das escritoras mais renomadas e importantes da literatura brasileira.


ANÁLISE DO CONTO


a) O conto “Amor” segue o estilo de Clarice Lispector, tendo por características principais paradoxos, metáforas e epifanias. Trata-se de mostrar de como uma realidade banal e aparentemente estável podem aflorar situações altamente perturbadoras e que põe em xeque a normalidade da vida cotidiana, ao desestruturar toda a aparente estabilidade anterior. A vida da protagonista Ana poderia ser descrita como igual à realidade de tantas outras mulheres – provavelmente da classe média alta – de seu tempo. Sua realidade é preenchida por referenciais de uma típica dona de casa que divide seu tempo em cuidar dos filhos, do marido, das compras, da cozinha, do fogão, da cortinas, do tanque de lavar roupa, etc. Clarice compara tal atividade a de um lavrador. “Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas” (p. 19). A metáfora do lavrador sinaliza muito bem a posição central que ocupa Ana em cultivar ou administrar o tempo que ata os laços de sua família. Neste sentido, assim como o trabalho do agricultor é o de preparar o terreno, esperar a estação apropriada, lançar as sementes, aguardar o germinar, regar e colher, assim também é o papel que a sociedade espera de uma boa dona de casa e que, ao que tudo indica, Ana cumpre muito bem. De fato, e se nos fosse permitido uma pequena incursão pela psicanálise, até mesmo a sua libido que poderia ser sublimada em dotes artísticos, no caso de Ana, é sublimado na arte dos afazeres doméstico. Assim, toda uma suposta potencialidade insondável é abafada e canalizada para fins em que o lar é o centro. Pode se dizer até que a vida da personagem é invertida, como numa metonímia, quando a parte de ser uma dona de casa toma lugar do todo, isto é, do seu ser (seu passado, presente e futuro). Porém, assim como na agricultura há estações do ano em que um frio rigoroso ou uma chuva de granizo podem pôr a plantação a perder, Ana também tem suas horas perigosas. Estas horas ou momentos – o período da tarde – são justamente quando os filhos estão na escola, o marido, no trabalho, e a casa, limpa. Neste sentido, se em sua vida não houvesse espaço para ser preenchido com algum cuidado da casa, perderia todo o sentido. E isso ocorria nestas horas da tarde, em que ela busca completar com atividades que denotam significados sempre referentes à família. Logo, a rotina de Ana resume-se a um ciclo determinado por funções relacionadas ao zelo do lar, da família.

            Numa bela tarde, esta realidade é posta em cheque quando Ana volta das compras e toma um bonde para chegar à sua casa. No bonde, a figura de um homem cego mascando chicletes abala todo o equilíbrio tênue de seu mundo, estritamente organizado, e deflagra uma situação perturbadora, que provoca um terrível horror e um irremediável mal-estar diante da suspensão de seus referenciais. De repente, o mundo exterior se torna ameaçador e estranho, hostil. Situação que vai crescendo como uma bola de neve, e é tão constrangedora que o saco de tricô, onde estavam colocadas as compras, caem do colo de Ana com a arrancada do bonde, quebrando os ovos. Esta metáfora, dos ovos, é extremamente importante no conto, pois é um momento que simboliza uma ruptura, uma quebra da normalidade do pequeno mundo de Ana. O ovo é a sua vida: um mundo fechado, em si mesmado, mole por dentro e envolto por uma casca dura, mas frágil, quebradiça; e aquilo que poderia ter nascido fora abortado. Ao se partir a casca, como uma caixa de Pandora, o mundo real se mostra extremamente complexo, onde seres mais estranhos surgem inesperadamente, levando Ana a uma crise existencial. Esta metáfora será retomada quando Ana se depara diante de “ostras”, prato que ela apreciava. Ana sente um fascínio pela ostra ao mesmo tempo em que tem nojo. Pode-se inferir daí que o mundo imerso em que a protagonista está submersa lhe causa repugnância porque foi recalcado violentamente e nada mais é que o mundo exterior. Paradoxo! Este mundo é seu próprio espelho: a assustadora realidade externa. Quando o ovo cai e se quebra e a clara e gema escorrem para fora, é como se o mundo de Ana viesse à tona, à luz do dia. Como se descobrisse a si mesma. “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava” (p. 27). De certa forma, há uma transformação ou um renascimento, ao atingir esse ponto crítico de ruptura. “O que chamava de crise viera afinal” (p. 23). Ou seja, a vida real, a verdade crua, entra com veemência em seu ser. “Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse” (p.23). Nesta tarde, não pôde evitar: explodiu. Sem dúvida, a “descoberta” – através do cego e dos acontecimentos da tarde – de que o mundo não era perfeito e artificial, mas repleto de dor e de angústia, lançou-a diante de sua própria existência, ou, para falar como o filósofo, da condição de ser-no-mundo. Aqui a referência ao existencialismo não poderia ser mais explicita. Vejamos: “E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca” (p. 23). Imersa nesta náusea, Ana perde o ponto e acaba num jardim. Novamente, o jardim representa uma metáfora: a do mundo que está fora da crosta. Nele habitam seres que não são familiares e estranhos, como o gato, pardais, aranhas; além disso, frutas pretas, doce como o mel, mancham o banco, o chão, com uma cor roxa. Há uma beleza nesse terrível mundo exterior. O mundo fora da crosta é semelhante a uma noite, liquida e suja, mas saborosa, doce. “A crueza do mundo era tranquila” (p. 25). Aliás, mundo que era esmagado se ousasse invadir a pureza, o asseio, o esmero de seu lar, como a insignificante formiga na cozinha limpa. A vida, sem a segurança dos referenciais cuidadosamente preservados em sua rotina, causa repulsa, pois se assemelha a insetos e aranhas e tem a consistência gosmenta, apodrecida. No entanto, é sensível, apetitoso, comestível. “Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas” (p. 25). A metáfora do gosto é muito presente no conto e pode ser interpretada como a substância que alimenta e que é deliciosa, apesar de insuportável. Todavia, este mundo está presente em sua casa, a aranha atrás do fogão! Assim, Ana cai em si, sabe que é uma privilegiada vivendo na sua pequena ilha distante do mundo, onde seus filhos cresciam, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com jornais e sorrindo de fome. “Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada” (p. 25). Esta constatação demonstra o caráter social do conto. Ao quebrar a casca de seu mundo, Ana tem a chance de se engajar e compreender a vida como ela é. “Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. Do mesmo modo que sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a” (p.26).        

            Ao chegar ao seu apartamento, Ana abraçou o seu filho como se fosse um porto seguro. Abraçou-o como demasiada força. Depois recebeu o marido, os seus irmãos e cunhadas para o jantar. “Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos” (p. 28). Havia poucos ovos, aqueles que restaram, mas mesmo assim a comida foi muito boa! De fato, muita coisa ainda foi preservada. Porém, a sensação de náusea não podia desaparecer. “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quanto anos levaria até envelhecer de novo?” (p. 29). Outra vez é possível identificar mais uma metáfora, a da metamorfose do inseto saindo de sua vida larval dentro de um casulo para se tornar adulto. “E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu” (p. 28). No conto, há muitas outras metáforas que poderiam ser exploradas, mas, acreditamos que apreendemos em linhas gerais alguns de seus aspectos mais significativos.


b) O espaço tem um sentido importante na narrativa do conto ora examinado. Não chega a exercer um determinismo incondicional, porém opera um tipo de interlocução bastante significativa com relação à personagem. É como se houvesse uma troca intensa entre o ambiente e a protagonista Ana. O cenário do bonde se alterna com o da casa, e depois a Rua Voluntários da Pátria remete simbolicamente a revolução interna por que passa a personagem. Entretanto, talvez, o Jardim Botânico desempenha um momento crucial na trama do conto. Ele é repleto de simbolismo que parecem refletir a descoberta do próprio mundo interior da personagem.


c) Já o tempo, desempenha uma função menor. Aparece como cenário, ou pano de fundo da narrativa. O fluxo narrativo se desenrola no período de um dia e tudo se passa à tarde e à noite, num dia de verão.


d) Identificamos o foco narrativo como onisciente seletivo. O narrador praticamente não se omite diante dos acontecimentos apresentados. Algumas de suas intervenções podem ser mesmo interpretadas como indagações da própria personagem ou mesmo do leitor, como se observa no trecho a seguir: “Com horror descobria que pertencia que pertencia a parte forte do mundo – e que nome se deveria dar a misericórdia violenta?” (p. 27).


e) O conto se desenrola com uma descrição que se encerra de modo dramático, isto é, com um diálogo entre a personagem Ana e o marido.


CONCLUSÃO


Como já foi dito, o conto “Amor” apresenta características do estilo da obra de Clarice Lispector expressas numa linguagem metafórica e entremeada de paradoxos. Assim, um momento banal da vida cotidiana, como o do cego mascando chicletes, perverte todo o seu sentido desencadeando revelações insuspeitas e inusitadas. Os sentidos revelados alcançam uma esfera de questionamentos que podem ir desde problemas existenciais até mesmo de ordem social e econômica, desvelando, por exemplo, as diferenças de uma sociedade de classes. É bastante interessante atentar também para como em um conto de tão poucas páginas pode haver tanta riqueza de conteúdo simbólico. Este conteúdo simbólico inunda toda a narrativa mas se destaca principalmente nas relações entre os personagens, no caso Ana, e o espaço.


BIBLIOGRAFIA:


BENJAMIN, W., “O narrador”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.


CORTÁZAR, J., “Alguns aspectos do conto”. In: Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.


LISPECTOR, C., “Amor”. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.



NUNES, B., O drama da linguagem – uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.

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