quarta-feira, 20 de maio de 2015

A decisão do Santo

Autor: Castelo Hanssen

Eram os anos 70 do Século XX na pequena e até então pacata cidade de São Sebastião do Morro. Aproximava-se o tempo da eleição municipal, e pela primeira vez na História ela seria disputada. Disputadíssima. Aliás. Já ocorriam brigas feias nas feiras e botecos entre eleitores e cabos eleitorais de Sebastião Mangano e Sebastião Silvestre. A família Mangano possúía um alambique no bairro Cascavel, produtor da caninha Cascavel, considerada entre os entendidos como uma das melhores da região. Sua maior concorrente era justamente a caninha Silvestre, do bairro do Jacu. Agora, quando os dois Sebastiões decidiram entrar na política, a briga das cachaças se transformava em briga eleitoral.

As eleições anteriores tinham sido quase simulacros. Havia sempre dois candidatos, da Arena 1 e da Arena 2, mas muitas vezes os dois eram compadres ou primos. A disputa era decidida na mesa de negociação presidida pelo poderoso Cipriano Canela. Mas os dois Sebastiões, além da briga etílica das famílias, já tinham uma quizilia antiga. Ambos tinham a mesma idade e frequentaram a mesma escola, o Colégio Brasil, o único estabelecimento particular da cidade, onde estudavam os filhos das famílias mais abastadas. Disputavam o primeiro lugar na classe, depois passaram a disputar as namoradas. Ambos eram bons nos esportes, mas o técnico do time do colégio não podia escalá-los no mesmo time, pois machucavam-se mutuamente, para alegria do adversário.

Silvestre só se candidatou porque Mangano se candidatou primeiro. Mangano foi para Arena 1, Silvestre para a 2. Muito ricos, cada um arrebanhou o maior número de cabos eleitorais, e a disputa ficou brava.

O povinho, sempre apático em política, passou a se interessar, e a coisa pegou fogo. O pobre Canela inutilmente gastou seu latim e seu dinheiro para acomodar os dois  no mesmo ninho, debaixo da  galinha-mãe, o governo.

Entre os dois adversários, havia algo em comum: ambos eram fervorosos devotos de São Sebastião, padroeiro da cidade. Ambos rezavam todos os dias pedindo a proteção do santo, e na medida em que se aproximava o dia da convenção partidária, mais aumentavam as esmolas à igreja. O bom padre Olegário, que no princípio tentara conciliar os dois, em nome do padroeiro, descobriu que quanto maior era a briga maiores eram as esmolas, e desistiu. Durante as missas, quando anunciava as doações, havia verdadeira torcida entre os partidários de um e de outro. O vigário chegou a pensar em dividir a igreja em duas alas, uma para cada candidato. O pobre santo, coitado, não sabia a quem atender.

Alguns políticos menos importantes da cidade, não satisfeitos com Cipriano Canela, viram nessa briga uma oportunidade de virar a mesa, depois de tantos anos, e fundaram uma regional do MDB. São Sebastião do Morro não era uma cidade importante no contexto nacional e estadual, mas o vice-governador tinha interesses particulares na região, e mexeu os pauzinhos para que o governador interviesse. A pretexto de inaugurar uma obra qualquer, representando o governador, o vice foi à cidade, e convidou os dois brigões ao gabinete do prefeito, onde fez um discurso conciliador, em nome do país, do estado e do partido. Os dois ouviram e nada responderam. O vice-governador entendeu o silêncio como consentimento, e na hora da inauguração fez questão que participassem do palanque oficial e usassem da palavra. O primeiro a falar foi Mangano, que não conseguiu evitar algumas palavras que Silvestre entendeu como ofensivas, e retrucou asperamente. Daí para o bate-boca foi um passo, e do bate-boca para a troca de porradas foi outro. A galera se entusiasmou, e o quebra-quebra foi geral. O palanque foi quase destruído, o prefeito correu e sobrou pancada para o vice-governador, que sofreu algumas fraturas.

A pequena e modesta São Sebastião do Morro virou manchete nacional. Os governistas atribuíram o fato a corruptos e subversivos interessados em roubar a tranquilidade até nas pequenas cidades da nossa hinterlândia. Os oposicionistas deram ao incidente caráter maior do que ele merecia, festejando o fiasco do partido governista. O governador, pressionado pelos governistas e pelos oposicionistas, resolveu tomar medidas severas. Com o aval do presidente do partido, intimou os briguentos a comparecer ao Palácio do Governo para dar satisfação aos correligionários e à opinião pública.

Em visita nada cerimoniosa, o próprio secretário de Segurança chegou à cidade, em carro oficial, numa manhã nebulosa. Mangano e Silvestre, de cara fechada, sem abrir a boca, nem responderam ao cumprimento seco, mas aparentando cortesia, do secretário e embarcaram na porta traseira da viatura, e sentaram, evitando se tocar com as pernas. O secretário sentou-se no banco dianteiro, e a viatura partiu para uma viagem nada agradável.

Quase na saída da cidade, na serra do Mataburro, existe o morro de São Sebastião, onde há uma enorme estátua do padroeiro. Justamente nesse lugar uma carreta que vinha descendo em sentido contrário perdeu o freio e colidiu violentamente contra o carro oficial. O veículo rolou pela ribanceira, incendiando. Sebastião Mangano e Sebastião Silvestre morreram carbonizados, encerrando a velha rivalidade. O motorista e o secretário, milagrosamente, escaparam ilesos. São Sebastião não permitiria que duas pessoas estranhas ao caso sofressem por sua difícil decisão.

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