domingo, 7 de junho de 2015

Andrades: Mário e Oswald



1 - “Minha viola bonita”



Minha viola bonita,

Bonita minha viola,

Cresci, cresceste comigo

Nas Arábias.



Minha viola namorada,

Namorada viola minha,

Cantei, cantaste comigo

Em Granada.



Minha viola ferida,

Ferida viola minha,

O amor fugiu para o leste

Na borrasca.



Minha viola quebrada,

Raiva, anseios, lutas, vida,

Miséria, tudo passou-se

Em São Paulo.



(Mário de Andrade, Lira paulistana – 1947)



A primeira reação causada no leitor por este poema é a percepção da musicalidade de seus versos. A reiteração da palavra ‘viola”, que é o eixo central do poema, reforça ainda mais o seu sentido musical. No seu aspecto formal, é notável a ocorrência de aliterações fonéticas, marcadamente pelas letras “i”, “o” e “c”. Nas duas primeiras estrofes, nota-se também uma ressonância de forma e conteúdo num todo harmônico que se comunica à maneira de um contra-ponto. Já nas ultimas duas estrofes, ocorre certa dissonância em relação às duas primeiras, através de, literalmente, um “ferimento” ou uma “quebra” na tonalidade que o poema vinha desenvolvendo, descompassando-o totalmente na aspereza do décimo quarto verso (“Raiva, anseios, lutas, vida”). Então, as duas primeiras estrofes se comunicam enquanto se separam da unidade desarmônica das duas últimas.

A ressonância na harmonia das duas primeiras estrofes também reverbera no seu significado. No primeiro verso, há uma ideia de posse, pelo poeta, de um instrumento musical que é uma viola bonita. No segundo verso, pode se inferir que a viola é bonita porque é do poeta. Tal ligação afetiva pode ser explicada no terceiro verso quando o poema indica que há uma cumplicidade entre o poeta e o instrumento musical que, provavelmente, surge logo na infância. A viola, de certa forma, não acompanha apenas o crescimento do poeta, mas cresce com ele, sugerindo uma intimidade que transcende a relação sujeito e objeto, na personificação (prosopopeia) do instrumento musical. No quarto e último verso da primeira estrofe, o verso completa o penúltimo verso situando um local geográfico onde o eu fragmentado e a viola cresceram e que fica... “Nas Arábias”. No primeiro verso da segunda estrofe, o grau de intimidade entre o poeta e o instrumento musical, a viola, intensifica-se ainda mais. A viola não apenas cresce, como um irmão ou um amigo de infância, mas se torna namorada. Provavelmente, os versos aqui tratam da adolescência ou da juventude, de suas descobertas, podendo-se até mesmo interpretar, num desdobramento da leitura, que a viola passa a ser um instrumento de conquista amorosa e, por isso, único amor. No segundo verso dessa estrofe, reitera-se a ideia da intimidade com a viola através da introdução enfática da palavra namorada à frente da viola. Novamente, no sexto verso do poema, observa-se uma sincronia entre o poeta e o instrumento musical: “Cantei, cantaste comigo”; que, talvez, remeta a cantar a beleza da vida que desabrocha e conhece a paixão, e que se passa, como se refere o oitavo verso do poema, num outro lugar: em Granada. Segundo Santos (2003), esta geograficidade do poema implica numa referência à viola como tendo uma ancestralidade no alaúde, instrumento de origem árabe que se tornou símbolo do trovadorismo e que foi levado à Europa nos séculos XVI e XVII, tornando-se vulgar na Espanha, e na época em que o Brasil também foi “descoberto”. Além disso, a viola tornou-se um instrumento muito difundido pelo Brasil inteiro, podendo ser entendida como símbolo de brasilidade ou musicalidade indispensável do brasileiro. Aceitando-se as teses de Schwarz (1987, 2000), a viola pode ser interpretada, por nós, no poema de Mário, como elo do arcaico e do moderno. Mas também a geografia aqui tem um sentido utópico, infantil e de rebeldia juvenil, associado às Mil e uma noites ou à sensualidade da música e dança flamenca. Talvez a utopia esteja situada num passado (rural) ou de suas lembranças idílicas: um mundo que se torna obsoleto e fictício.

As duas últimas estrofes indicam uma ruptura com o passado, e o presente é um tempo de amargura trazida por desilusões que a maturidade sublinha quando se presta contas da vida inteira. No primeiro e segundo versos da terceira estrofe, a viola está ferida. Descobre-se, no décimo primeiro e décimo segundo versos, que o amor – a própria viola que em sentido figurado é o fio condutor de sua vida – fugiu para o leste, com a borrasca. Sem dúvida, a tempestade sugere tempo fechado, reclusão e tormentas, que na verdade é uma metáfora do estado de espírito do poeta e que condiz também com uma menção indireta ao desastre da Segunda Guerra Mundial. No décimo terceiro verso do poema, tem-se a notícia que a viola está quebrada (pelo tempo, pela guerra ou pelo poeta?). Nos versos seguintes, o poeta enumera “raiva, anseios, lutas, vida”... “Miséria...” e sentencia numa revelação surpreendente: “...tudo passou-se” “Em São Paulo.” Na comparação com “Solidão”, tentaremos desvelar outros desdobramentos do poema.



2 - “Solidão”



Chove chuva choverando

que a cidade de meu bem

está-se toda se lavando



Senhor

que eu não fique nunca

como esse velho inglês

aí do lado

que dorme numa cadeira

à espera de visitas que não vêm



Chove chuva choverando

que o jardim de meu bem

está-se todo se enfeitando

A chuva cai

cai de bruços



A magnólia abre o pára-chuva

pára-sol da cidade

de Mário de Andrade

a chuva cai

escorre das goteiras do domingo



Chove chuva choverando

que a cidade de meu bem

está-se toda se molhando



Anoitece sobre os jardins

Jardim da Luz

Jardim da Praça da República

Jardim das platibandas



Noite

Noite de hotel

Chove chuva choverando



(Oswald de Andrade, Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade - 1927)



O poema “Solidão” de Oswald de Andrade também é marcado por uma forte melodia, que flerta com cantigas folclóricas e infantis, e apresenta um grau maior de dificuldade de interpretação, pois o recurso sonoro parece conduzir o poema para além de seu significado imediato. Portanto farei uma análise menos pontual que o poema anterior e aceitarei os riscos de um maior equívoco de interpretação.

O primeiro verso, “Chove chuva choverando”[1], é um desdobramento quase redundante do verbo “chover”, que exprime fenômeno natural, logo, sintaticamente, prescinde de sujeito; do substantivo “chuva”, que no verso exerce a função de sujeito; e do neologismo “choverando”, que não apresenta significado definitivo e por isso se destaca pela sua sonoridade enigmática. Somando-se a isso, percebe-se a forte presença da aliteração da consoante fricativa surda “x” (ch), que produz um som de chiado, remetendo ao barulho de água caindo ou escorrendo. Logo, a primeira estrofe enfatiza a ideia de chuva, de água, de purificação, de limpeza e, por extensão, de alma lavada (sentido figurado). Tal ideia é completada pelos versos dois e três da primeira estrofe, “que a cidade de meu bem”... “está-se toda se lavando”. Aqui há uma indeterminação do significado (não se sabe quem é o meu bem; presume-se apenas que seja a pessoa amada ou um ideal dela) e o efeito sonoro dos significantes dá sentido de que a chuva cai incessantemente numa cidade, ainda não identificada. Os versos da segunda estrofe aparecem de modo abrupto e parece não dialogar com o da primeira. A ligação se efetiva de modo tênue através da rima de “meu bem” com “visitas que não vêm”. Todavia, a estrofe é a que mais está sintonizada literalmente com o título do poema, “Solidão”. O poeta, que provavelmente está sozinho e hospedado em um hotel, imagina um quadro melancólico em seu futuro, que deseja evitar e que corresponde ao de seu suposto vizinho de quarto, um estrangeiro solitário, de idade avançada, num país distante, dormindo numa cadeira e numa espera vã por parentes ou amigos. Novamente, a terceira estrofe o verso abre com “Chove chuva choverando”, quase como um estribilho da chuva que não cessa. Nos versos seguintes, a chuva rega e enfeita o jardim de “meu bem”. Curiosamente, a chuva cai de bruços, causando certo estranhamento no leitor. Talvez o poeta esteja deitado ou sonhando. Na quarta estrofe, o poema causa ainda mais estranheza quando descreve uma magnólia que se abre como pára-chuva–pára-sol da cidade de Mario de Andrade (!!!). Deduz-se (se não for muito arriscada a minha interpretação) que a copa da magnólia funciona como um guarda-chuva ou um guarda-sol, objetos semelhantes que são carregados de sentidos só por meio do contexto (chuva ou praia); contudo, na verdade, a magnólia não é nenhuma coisa nem outra, mas um natural pára-chuva e pára-sol ao mesmo tempo, ou seja, uma entidade única, simbólica e soberana que confere sentido ao contexto: a cidade do poeta Mário de Andrade. Nos versos que indicam “...cidade” e “de Mário de Andrade”, não resta mais dúvida de que a cidade em questão é o município de São Paulo. Porém, a chuva é constante, podendo ser uma referência a garoa da antiga São Paulo e atravessa as folhas da árvore – que talvez lhe serve de abrigo – em goteiras do domingo. (Curiosamente, há magnólias no Jardim da Luz e em frente à Biblioteca Municipal). Novamente, o estribilho e a referência à cidade porosa que é molhada pela chuva. Na sexta estrofe, anoitece, fato que pode indicar que os momentos anteriores do poema se passavam de manhã (o inglês) e à tarde (a magnólia). Mas, anoitece-se nos jardins: Jardim da Luz, Jardim da Praça da República e Jardim das platibandas, estruturas arquitetônicas comuns nas antigas residências paulistanas. E, na sétima e última estrofe, é, enfim, noite, e o poeta já esta de volta ao hotel, enquanto a chuva continua.


3 - Comparação dos poemas “Minha viola bonita” e “Solidão”

Tendo em vista as análises acima, tentarei realizar a comparação crítica dos poemas “Minha viola bonita” e “Solidão”. O primeiro aspecto que chama a atenção em ambos os poemas, como já ficou claro, é que estão unidos pela forte musicalidade que apresentam. Tanto um como outro, apostam numa estrutura de assonâncias cujas palavras se repetem produzindo efeitos que ecoam nos versos e produzem uma imagem de indeterminação em seus conteúdos, os quais devem ser desvelados. Quanto à métrica, o poema de Mário de Andrade é mais rigoroso e é composto de quatros estrofes, sendo que os três primeiros versos de cada uma são formados por sete sílabas poéticas (redondilha maior) e o quarto de apenas três sílabas poéticas. Também apresenta uma estrutura de rimas que se alternam de modo mais simétrico. Já o poema “Solidão” é composto por versos livres, excetuando às estrofes que corresponderiam ao refrão (“Chove chuva choverando...”) também em redondilhas, e apresenta rimas mais esparsas e esporádicas. Neste particular formal, da métrica, os versos de “Minha viola bonita” ganham maior cadência rítmica durante uma leitura sincopada, mas também são mais conservadores. A melodia que se extrai da leitura de “Solidão” é mais difícil de perceber, dada a forma livre que os versos são escrito. Sua musicalidade deriva, entretanto, justamente da liberdade com que as palavras são arranjadas nos versos. Neste sentido, este poema se enquadra muito melhor no ideal dos poetas modernistas que tanto Mário de Andrade como Oswald de Andrade foram expoentes. É notório que Oswald levou às últimas consequências e explorou muito mais o experimentalismo radical dos primeiros anos da poesia modernista brasileira. Porém, é bem verdade que a simplicidade formal de “Minha viola bonita”, livre da retórica rebuscada da poesia tradicional (no caso, o parnasianismo e o simbolismo), também lhe confere um grau de experimentalismo, próprio da obra pioneira de Mário de Andrade, e de radicalidade que caracterizam todo o movimento artístico de 22. Esta ruptura formal e corajosa, do movimento modernista, com o aspecto um tanto pernóstico expresso pela oratória e a retórica da cultura dos bacharéis e dos ilustrados, de um Brasil ainda marcado pelo domínio em todos os setores das oligarquias rural, patriarcal, de herança colonialista e aristocraticamente europeia, é num certo sentido reflexo da modernização por que passa o país nas primeiras décadas do século XX. Esse processo tem como cenário a cidade de São Paulo, que, já em fins do século XIX, inicia um período de rápida industrialização. A abolição da escravatura e, por conseguinte, a chegada de grandes levas de imigrantes para trabalhar, primeiramente, na lavoura cafeeira e, depois, na indústria, ainda incipiente e sem o impulso estatal dos anos 30, alavancam exponencialmente a urbanização de São Paulo, operando assim transformações fundamentais no seio da sociedade do antigo status quo, tanto no nível das relações de trabalho como no simbólico e da linguagem. É a cidade caótica, das multidões anônimas, do imigrante, que surge, num ritmo alucinante e desvairado, e que seria palco da Semana de Arte Moderna de 22. Na efervescência dessas mudanças estruturais, de uma economia rural que se urbaniza pela industrialização, evidentemente o campo da cultura não ficaria incólume. Assim, os poemas “Minha viola bonita” e “Solidão” situam-se na cidade de São Paulo, epicentro dessas transformações e da revolução da arte modernista. “Esta cidade que não reflete o rosto de seus habitantes é – disse Oswald – a ‘cidade de Mário de Andrade’. Sua duvidosa poesia é áspera, tortuosa, fragmentada; difícil mesmo de encontrá-la, exprimi-la ou entendê-la” (LAFETÁ, p.18). Reflexo dessa ebulição, o conteúdo significativo dos poemas “Minha viola bonita” e “Solidão” também apresentam uma perturbação correspondente ao contexto em questão. A cidade de São Paulo é a cidade do “velho inglês” solitário, dos amores fugazes, das lembranças, das utopias – nas Arábias ou em Granada, da chuva que não cessa, da borrasca, da “raiva, anseios, lutas, vida”, miséria e da solidão na multidão de seus transeuntes desconhecidos. Nos dois poemas é a vida no cotidiano (manhã, noite e dia ou infância, juventude e maturidade) de uma metrópole que está em formação e que é o alvo que se pretende acertar, no qual, conforme o caráter específico da sociedade brasileira, o arcaico, com suas relações pessoais e clientelísticas, ainda convive “harmonicamente” (as aspas aqui tem evidentemente um sentido de ironia) com o moderno. Mas no mundo moderno, onde tudo é transitório e incerto, o resultado, tanto num poema analisado como no outro, parece redundar sempre em solidão. Porém, no poema “Minha viola bonita” há uma descendência das esferas de um mundo imaginário, de fantasia, que encontra respaldo na infância e na juventude, até a constatação sombria e devastadora das desilusões da vida e que coincidem com a guerra, representadas aqui na fuga do amor durante a tempestade e na trágica destruição da viola. Talvez, o otimismo ingênuo e provinciano dos primeiros anos da modernização se mostra, para uma fase madura, desencantado e aterrador. A nova sociedade – ou civilização – não erradicou a guerra e os males do mundo. Este pessimismo como resultado, não é percebido no poema “Solidão”, pois este parece, do começo ao fim, já permeado pelos sinais do desencanto com o mundo espantosamente urbano, mesmo tendo sido escrito antes das atrocidades nazistas. Talvez, Oswald não se deixou seduzir tão facilmente pelas promessas da modernidade. Em “Solidão”, não há esperanças, ilusões ou utopias, a cidade já está maculada, suja talvez, e a chuva é conclamada como componente essencial deste mundo sombrio e, ao mesmo tempo, agente purificador. Sem dúvida, o ambiente é de uma beleza (a magnólia) desesperadora, permeável, e é cinzento, sem sol, e tremendamente desolador ou solitário. Mas não é uma tempestade (borrasca) que chega assustadoramente, com rajadas de ventos, raios e trovões, destruindo tudo como uma artilharia de guerra, mas uma garoa intermitente, que se arrasta repetidamente, descrita nos versos que parecem nunca acabar: “Chove chuva choverando”. A chuva não para do começo ao fim do poema. Neste sentido, talvez, Oswald sentia muito mais desconfiança do progresso do que Mário. Talvez, foi preciso o holocausto e a bomba atômica para que o poema “Minha viola bonita” descobrir os males trazidos pelo mundo moderno e o fim da harmonia do mundo rural. A viola é o símbolo do antigo, do regional, do sertanejo, lócus da harmonia perdida, para sempre partida, como uma taça de cristal quebrada. Neste caso, a poesia modernista também aparece cindida fundamentalmente também no caminhar triste e solitário, sob a chuva, do poema “Solidão” pela cidade de São Paulo, ao passar pelo Jardim da Luz, a Praça da República, pelas platibandas, ou o jardim distante de meu bem, e que encontra eco na solidão tenebrosa da viola ferida de morte, no amor que foge. Para encerrar a análise comparativa, não seria forçado parafrasear os poetas e dizer com eles que “Minha viola bonita” e “Solidão” passaram-se em São Paulo.


Bibliografia

AMADO, J., “Seara Vermelha”, São Paulo: Record, 1982.

ANDRADE, M., “Lira paulistana”, in: Poesias completas, Belo Horizonte: Itatiaia-São Paulo: Edusp, 1987.

ANDRADE, O., “Pau Brasil”, Rio de Janeiro, Globo, 2003.

ANDRADE, O., “Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade”, Rio de Janeiro, Globo, 2006.

LAFETÁ, J. L., “Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade”, São Paulo, Martins Fontes, pp. 1-34.

SANTOS, P. S. M., “Musico, doce músico”, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.

SCHWARZ, R., “Que horas são?”, São Paulo: Cia das Letras, 1987, pp. 11-28.

SCHWARZ, R., “Ao vencedor as batatas”, São Paulo: Editora 34, 2000.



[1] No livro Seara vermelha de Jorge Amado, este verso aparece como “Chove, chuva chuverando, lava a rua de meu bem” e é cantado por crianças que brincam de roda.

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