domingo, 1 de abril de 2018

O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) - comentários

J. P. A. Gonçalves

1. Introdução

Este trabalho visa discutir alguns aspectos de “O guardador de rebanhos”, de autoria de Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro. Em primeiro lugar, será salientado, na referida obra de Caeiro, uma meditação antifilosófica sobre o ser, a vida e a existência, por parte do poeta. O que não se faz sem grandes problemas, haja vista que os temas repetidamente enfatizados por Caeiro são próprios da filosofia. Em segundo lugar, será considerado a posição antifilosófica de Caeiro como uma estratégia para Fernando Pessoa purgar-se dos males e doenças da civilização ocidental, através do pensamento filosófico-religioso oriental.



2. Pensar é viver

Analisar “O guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro não é tarefa fácil, muito embora seus poemas, do ponto de vista formal, sejam relativamente simples – “Não me importo com as rimas. Raras vezes” (XIV - Não me Importo com as Rimas) – e pareçam se originar de um turbilhão saído da intuição do poeta, totalmente avassalador e espontâneo, em que o vivido é por si só exemplar, prescindindo, portanto, de maiores explicações. Mas, como bem salienta Bréchon (1997), o sentido profundo de seus versos está na superfície aparente das coisas e nas proposições tautológicas que, por trás de sua suposta obviedade, há sempre uma verdade imediatamente revelada. Todavia, apesar do plano sem mediações desta poesia, a condição, propalada pelo poeta, de “guardador de rebanhos” apresenta uma conotação metafórica. É o modo como o Eu-lírico se situa e cria uma realidade fictícia para justificar uma visão de mundo. Esta realidade é a idealização de uma “utopia” transfigurada em um vilarejo distante da civilização urbana, e onde os fenômenos naturais, ainda muito presentes, comunicam aos seres humanos um significado irrefutável sobre a existência concreta. Para o poeta, os “rebanhos” são “pensamentos”, que, por sua vez, não são uma imagem abstrata interior à consciência, mas a própria realidade percebida, repleta de sentidos: um não pensar.

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido
(IX - Sou um Guardador de Rebanhos)

Portanto, em Caeiro, haveria um certo realismo ingênuo, tal como a filosofia de Berkeley, em que o sensível é a própria encarnação da verdade, já que a especulação filosófica encerra limites intransponíveis ao se perder em abstrações. “Estamos diante de uma visão objetualista do mundo, segundo a qual as coisas se resumem à sua aparência externa, àquilo que se mostra ao olhar. A exaltação do real sensível opõe-se, por decorrência, ao ideal concebido pelo espírito” (GAGLIARDI, 2006, p. 11). Neste sentido, a metafísica é um modo de renunciar à existência real do ser engajado na vida tal como ela é, pois desvia a atenção para um além-mundo que só é possível a partir da especulação filosófica e do pensamento abstrato, isto é, separado do real.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
(V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada)

Todavia, para formular sua concepção de mundo, Alberto Caeiro se vale da metafísica, ainda que para negá-la. Se para encontrar o sentido da existência, conforme propõe Caeiro, bastasse apenas o não pensar, então, a melhor resposta para esta questão seria o silêncio. Mas Caeiro quer argumentos irrefutáveis e, diante do paradoxo em que se encontra, sua saída, que é expressa em versos, é encontrar a metafísica na mundanidade da natureza.

3. Caeiro Zen

A responsabilidade é ainda maior em analisar e interpretar Caeiro pelo fato de Caeiro ser o mestre de Fernando Pessoa e seus heterônimos, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Alberto Caeiro é o porta-voz poético de um pensamento filosófico fundado e denominado por Pessoa de Sensacionismo. Tal filosofia, que, no entanto, não ousa alçar o status de filosofia, mas uma orientação poética, parte do pressuposto, como vimos, de que o sentido da vida e a verdade estão nas sensações: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...” (II - O Meu Olhar), diz Caeiro. Porém, além de outras referências, apontada pela crítica, Bergson, Hurssel, Heidegger Merleau-Ponty etc., como observa Leyla Perrone-Moisés, o ideário de Caeiro encontra paralelo também na tradição oriental. O que parece ser uma contradição. Pois, o próprio Fernando Pessoa, enquanto ortônimo, e demais heterônimos – além de seus leitores – estão irremediavelmente mergulhados nos valores da civilização ocidental. Ora, isto parece ser um problema insolúvel, já que a visão de mundo destas duas tradições choca-se em seus aspectos fundamentais. Qual sentido, então, tem para Fernando Pessoa, identificar em Alberto Caeiro um mestre inspirado pela cultura filosófico-religiosa do Oriente? Segundo Perrone-Moisés:

“Para Pessoa, a busca de uma saída pela via Caeiro não é apenas mais uma especulação filosófica ou mera experimentação poética, mas uma questão de sobrevivência: saúde e salvação. Sofrendo agudamente da doença ocidental, debatendo-se na busca de um “eu profundo” que quanto mais se busca mais se perde – porquanto o pensamento se volta, afiado e aniquilador, contra o próprio ser pensante – Pessoa foi ao extremo desse descaminho, até o ponto em que essa doença toma o nome de loucura, paralisa e mata” (PERRONE-MOISÉS, 2001, pp. 147 e 148).

Feita esta consideração, a sabedoria, então, de Alberto Caeiro, não advém de uma cultura livresca, racionalista e iluminista do Ocidente, mas da reflexão sobre a própria experiência de si e no mundo, em contato direto com a natureza, tendo por base de seus pressupostos os ensinamentos Zen: filtro da civilização ocidental e urbana.

Como já foi assinalado acima, Alberto Caeiro jamais se detém às grandes reflexões sobre a liberdade; ele, simplesmente, prova a liberdade sendo livre; o conceito de liberdade lhe é inútil. O mesmo se poderia dizer a respeito de um Deus transcendente, próprio da tradição judaico-cristã. Um Deus fora do mundo, invisível, é um Deus ausente, não participa da vida, não está na natureza. Mas esta experiência concreta, calcada na prática e no imediatismo da vida cotidiana, sob um cenário rural e pagão, como bem lembra Gagliardi (2006), ao citar Perrone-Moisés, não é isenta de toda noção de uma divindade. A concepção de Deus em Caeiro é, de alguma forma, pagã e panteísta: o ser divino está em tudo, em cada ser e ente da natureza. Tal concepção é muito próxima do conceito divino formulado pelas religiões orientais.

Neste sentido, Perrone-Moisés defende a tese de que a cura da doença de Pessoa viria justamente por meio de um Caeiro zen-budista e, daí, a necessidade de elevá-lo à condição de mestre.

“Para chegar ao conhecimento direto das coisas pela mente-corpo, é necessário todo um trabalho de desaprender. Assim, o ensinamento de um mestre Zen, como o do Mestre Caeiro, consiste mais em um esvaziamento do discípulo (na limpeza de seus pressupostos racionalistas, de seus hábitos abstratizantes, de suas desnecessárias e atravancadoras complicações mentais) do que de um acréscimo de conhecimento, tal como se concebe o ensino ocidental” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 161).

Sem dúvida, em Caeiro, Deus é a natureza:

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
(V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada)

Esta característica imanente do divino, própria a todo monismo, no qual todas as coisas e os seres da natureza participam de uma inteligência divina, está intimamente ligada à tradição do hinduísmo, budismo e do Tao:

“A metáfora mais transparente dessa profunda unidade do Tao é, como no hinduísmo, a imagem do mar, principal tema de todas as visões do mundo orientais, nos antípodas do individualismo ocidental: cada ser, aparentemente distinto, inclusive o ‘eu’, não é mais do que uma onda da mesma substância que o mar, sem limites nem fronteiras que os separem. É mera forma provisória e fugitiva, que se desenha no oceano sem forma e sem término, e é reabsorvida por ele. (...) O universo inteiro participa dessa unidade: uma montanha é viva como uma onda ou como eu. Viva da mesma vida, obediente ao mesmo ritmo vital. Estou em continuidade com as árvores ou os rochedos (GARAUDY, R., 1981, p. 139).

Se a natureza é a expressão direta da divindade em suas múltiplas expressões, a paisagem campestre, numa concepção panteísta, é o templo onde melhor se presta culto. O camponês, o pastor ou o lavrador, ou ainda a idealização, como em Caeiro, de um Eu-lírico, que é pastor de pensamentos que aparecem como espelho da natureza, são estereótipos de uma devoção inconsciente de um Deus que se multiplica ao infinito e é manifestação do universo. Portanto, em Caeiro, não há alienação religiosa ou instâncias especializadas, pois viver já implica em comunhão com o divino que está em tudo e é imanente. O “eu” é apenas o microcosmo que reflete exatamente o macrocosmo. Esta concepção também é oriunda da tradição oriental.

Sem sair fora da porta
Pode-se conhecer todo o mundo
Sem olhar pela janela
Pode se ver Tao do céu
Quanto mais se viaja
Menos se conhece.
(Taoísmo)

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
(VII - Da Minha Aldeia)

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
(XX - O Tejo é mais Belo)

Além da influência da religião oriental, e da poesia japonesa haikai, como aponta Perrone-Moisés, os versos de Caeiro poderiam também fincar raízes na poesia árabe, como aparece no estilo livre e sensualista de um Omar Kháyyám:

Ninguém desvendará
o que é misterioso.
Ninguém poderá ver o que
se oculta debaixo das
aparências.
Todas as nossas moradas
são provisórias, salvo a última,
no coração da terra.
Bebe o vinho amigo!
Basta de palavras
supérfluas.
(Rubáiyat)

E se não for exagero de nossa parte, ainda poderíamos sugerir uma influência de um certo cristianismo de remota tradição nos essênios, ou mesmo considerando-se a hipótese de que Jesus Cristo passou parte de formação no continente asiático. Na célebre passagem dos lírios do campo, percebe-se ecos de fundo panteísta.

“Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?”
(Mateus 6:28-30)

4. Conclusão

Há muito o que se falar ainda de “O guardador de rebanhos”; aqui esboçamos apenas em linhas gerais algumas das características reconhecidas pela crítica e outras apenas sugeridas ao modo de um ensaio. O paganismo e a crítica à metafísica, ou melhor, à tradição filosófica ocidental, de cunho eurocêntrico e colonizador, é o eixo temático de “O guardador de rebanhos”, por onde irradiam outros temas que ainda estão em aberto. Seja como for, a poesia de Fernando Pessoa e de seus heterônimos alçou os ápices da mais alta literatura, em todos os tempos, e é fonte de inesgotável reflexão estética e literária.

5. Bibliografia

BRÉCHON, Robert. “O ‘Mestre’ Caeiro e o paganismo (1914-1915)”, in Estranho estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, Lisboa: Quetzal Editores/Círculo de Leitores, 1997.
GAGLIARDI, Caio. “Alberto Caeiro - a falsa pista de um cego teimoso”, Via Atlântica, No. 18, dezembro de 2010.
GAGLIARDI, Caio. “Os três Caeiros: introdução a Poemas completos de Alberto Caeiro”, São Paulo: Hedra, 2006;
GARAUDY, Roger. “Apelo aos vivos”, São Paulo: Nova Fronteira, 1981.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Caeiro Zen”, in Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro”, São Paulo: Martins Fontes, 2001. 




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