quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Levantado do Chão - comentário

Por J. P. A. Gonçalves

O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos. (José Saramago, Levantado do chão: romance)

A paisagem de que fala Saramago é a terra reduzida à condição de latifúndio, orbitado por pequenas aldeias camponesas, como Monte Lavre, na região do Alentejo - uma das mais atrasadas de Portugal. O período compreendido pelo romance é extremamente largo e ocupa o espaço de três gerações, indo do final da monarquia até a Revolução dos Cravos. É neste contexto que se desenrola a história da família de lavradores Mau-Tempo.

Apesar de o latifúndio ocupar o epicentro da narrativa do romance, devido a sua própria condição provinciana, os acontecimentos cruciais da política portuguesa chegam-lhe residualmente, através de fatos que repercutem indiretamente e em “pequenas ondas”, que são, afinal, percebidas no cotidiano dos personagens. Este distanciamento poder ser percebido, por exemplo, quando o autor narra a proclamação da república, do seguinte modo: “Então chegou a república”. Tudo se passa como se esses acontecimentos viessem de muito longe e quase fossem indiferentes à estrutura social do latifúndio.

No latifúndio nada muda, há séculos. O latifúndio parece mesmo ser Portugal. No filme “Capitães de Abril”, num dado momento, um personagem tem a seguinte fala: “Portugal será sempre uma nação pluri-continental e plurirracial”. Se nós lembrarmos do início de “Casa Grande & Senzala”, veremos que Gilberto Freyre gasta não poucas linhas para descrever, não apenas o Brasil, mas, também, Portugal enquanto nação multi-ética, desde suas origens. Mas não precisamos ir tão longe. A frase em questão trata-se de uma alusão e, de certa forma, uma apologia à gênese do império colonial Português. Breve história de glória que seria insistentemente rememorada messianicamente por toda história de Portugal.

Já não mais como um império, no século XX, Portugal perdia suas últimas colônias na África, com o movimento de independência das nações africanas pós-Segunda Guerra Mundial. Mas a questão multirracial ficou arraigada em solo português. O tema é também tratado metaforicamente em “Levantado do chão”. João Mau-Tempo e, posteriormente, sua filha Amélia, chamam atenção por terem olhos azuis, característica física pouco comum entre os camponeses do Alentejo, descrita numa passagem em que Antônio Mau-Tempo, filho de João, e um amigo passam uma temporada na França a trabalho: “Saíam para a rua, corridos por um linguajar rápido que não entendiam, alê, négres, é o que acontece a estas raças morenas, tudo são pretos para quem nasceu na Normandia e presuma de raça apurada, mesmo puta” (SARAMAGO, 1982, p. 290). A origem dos olhos azuis de João e Amélia é remontada ao DNA dos povos germânicos que enfeudaram Portugal e é representado no romance pela figura de Lamberto Horques Alemão, que, séculos atrás, violara uma camponesa. Sobre o episódio, o narrador descreve:

“Já de vontade não fora aquela outra rapariga, quase quinhentos anos antes, que estando um dia sozinha na fonte a encher sua infusa, viu chegar-se um daqueles estrangeiros que viera com Lamberto Horques Alemão, alcaide-mor de Monte Lavre por mercê do rei Dom João o primeiro, gente de falar desentendido, e que, desatendendo aos gritos e rogos da donzela, a levou para uma espessura de fetos onde, a seu prazer, a forçou. Era um galhardo homem de pele branca e olhos azuis, que não tinha outra culpa que o atiçado do sangue, mas ela não foi capaz de lhe querer bem e sozinha pariu como pôde ao fim do tempo. Assim, durante quatro séculos estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram, tal como os cometas que se perdem no caminho e regressam quando com eles já se não conta, ou simplesmente porque ninguém cuidou de registar as passagens e descobrir a sua regularidade” (Idem, p. 24).

O narrador descreve Lamberto como um típico senhor feudal que se perpetua até chegar no latifúndio. É interessante como o narrador atribui às classes dominantes, pelo menos no Alentejo, uma ascendência germânica. Os descendentes de Lamberto, enquanto senhores e donos do latifúndio, são distintos pelo étimo germânico “Berto”, como Norberto, Adalberto, Floriberto, Alberto, Humberto, Sigisberto, Felisberto, Dagoberto, Clariberto, Berto etc. Tudo se passa como se todos esses Bertos fossem apenas uma metamorfose do primeiro “Berto”, Lamberto Horques Alemão.

“(...) já no tempo dos senhores reis assim se dizia, e a república não mudou nada, não são coisas que se mudem por tirar um rei e pôr um presidente, o mal está noutras monarquias, de Lamberto nasceu Dagoberto, de Dagoberto nasceu Alberto, de Alberto nasceu Floriberto, e depois veio Norberto, Berto e Sigisberto, e Adalberto e Angilberto, Gilberto, Ansberto, Contraberto, que admiração é essa terem tão parecidos nomes (...)” (Idem, pp. 195 e 196).

Quanto aos camponeses, “estas raças morenas, tudo são pretos para quem nasceu na Normandia”, são trabalhadores que labutam de sol a sol, e que em nada diferenciam de servos ou escravos. Neste sentido, Portugal é o espelho de sua história colonial, da escravidão no Brasil e de seus domínios na África, algo que se reflete na sua própria estrutura social.  Assim, os trabalhadores no latifúndio vivem uma condição degradante e desumana, não muito diferentes dos escravos no Brasil, e não sendo mais do que seres rastejantes, diante dos poderosos. Estes estão completamente a mercê dos donos latifúndios e vivem uma vida completamente miserável, sem dignidade, sem qualquer direito – sem direito a greve, inclusive –, e ainda subjugados pela opressão policial.

Era esta estrutura semifeudal que a república, proclamada em 1910, deveria acabar. Mas diante da instabilidade política da Primeira República para sanar seus impasses, tramou-se um golpe militar de cunho fascista corporativista que se efetivou de fato em 1926 consagrando o Estado Novo e a ditadura salazarista, que se perduraria até 1974.

“(...) Viva Portugal, não o entendo, Estamos aqui reunidos, irmanados no mesmo patriótico ideal, para dizer e mostrar ao governo da nação que somos penhores e fiéis continuadores da grande gesta lusa e daqueles nossos maiores que deram novos mundos ao mundo e dilataram a fé e o império, mais dizemos que ao toque do clarim nos reunimos como um só homem em redor de Salazar, o génio que consagrou a sua vida, aqui tudo grita salazar salazar salazar, o génio que consagrou a sua vida ao serviço da pátria, contra a barbárie moscovita, contra esses comunistas malditos que ameaçam as nossas famílias, que matariam os vossos pais, que violariam as vossas esposas e filhas, que mandariam os vossos filhos para a Sibéria a trabalhos forçados, e destruiriam a santa madre igreja, pois todos eles são uns ateus, uns sem Deus, sem moral nem vergonha, abaixo o comunismo (...)” (Idem, pp. 93 e 94).

A ditadura salazarista foi uma reação das classes dominantes e objetivava manter inalterado o status quo da arcaica sociedade portuguesa, o que significava garantir e assegurar política, econômica e juridicamente a subsistência do latifúndio. Para isso montou-se um aparato repressivo que censurava, perseguia, prendia e torturava seus oponentes. Se no romance “Levantado do chão” o advento do Estado Novo aparece como um episódio longínquo às aldeias do Alentejo, festejado pela igreja e os latifundiários, não ocorre o mesmo com seus tentáculos repressivos, a guarda e a famigerada PIDE, que, diante da silenciosa propaganda comunista, prende, tortura e mata camponeses que de alguma forma lutam por condições melhores de salário e trabalho.   

Mas se as condições de trabalho no latifúndio são deploráveis, com carga horária exaustiva, de sol a sol, isso não significa que não há resistência por parte dos trabalhadores. Estes são como “formiguinhas que levantam a cabeça feito cachorro”, ainda que a situação os coloque num impasse: o de serem acossados pela necessidade diária de “ganhar o pão”, muitas vezes produto de barganha dos latifundiários que não os convocam os trabalhadores para a colheita como forma de punição. A certa altura do filme “Capitães de Abril”, o Capitão Salgueiro Maia diz aos soldados: “Só nós podemos fazer a revolução”. Isso porque só as forças armadas detinham de armamentos capazes de derrubar o regime. Mas tal afirmação era apenas a ponta do iceberg. A sociedade portuguesa toda resistia. No latifúndio, os trabalhadores também se mobilizam em torno das reivindicações das oito horas e da comemoração do Primeiro de Maio. Em entrevista (disponível no YouTube em “As últimas palavras de Salgueiro Maia”), o Capitão Salgueiro comenta: “Quando as pessoas começam a perder o medo, também é contagioso”.

“É preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os certos e convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá está a guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas, muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé (...)” (Idem, p. 333).

A 25 de abril de 1974, um movimento militar põe fim à ditadura de Antonio Salazar e de seu sucessor Marcelo Caetano. Surgiu no contexto das guerras coloniais que Portugal travava na África desde os anos de 1960 e teve como principais lideranças jovens veteranos dessas campanhas, como o Capitão Salgueiro Maia. Pode-se dizer que tal episódio foi mais uma implosão do regime ditatorial do que mesmo uma revolução. Quase não houve derramamento de sangue durante a derrubada do governo corporativista, extremamente impopular, e, quando da passagem das tropas dos capitães, a população homenageava os soldados colocando cravos vermelhos e brancos nos fuzis e tanques de guerra, fato que veio denominar o movimento por “Revolução dos Cravos”. Portugal pôde enfim representar democraticamente sua vocação de nação pluri-continental e plurirracial.

REFERÊNCIAS:

SARAMAGO, JOSÉ, “Levantado do chão: romance”, São Paulo: DIFEL, 1982).

“Capitães de Abril”, filme de Maria de Medeiros.

“As últimas palavras de Salgueiro Maia” – Parte 1 e Parte 2 – (YouTube).

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