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sábado, 29 de março de 2025

A Visão das Plantas: A Poética das Raízes em Djaimilia Pereira de Almeida

A ilustração apresenta um homem idoso de perfil, com a pele marcada pelo tempo e uma densa barba branca, inserido em um ambiente exuberante de vegetação tropical. Ele parece contemplativo, imerso na natureza ao seu redor, enquanto um beija-flor se aproxima delicadamente. O fundo revela colinas verdes, reforçando a conexão entre o personagem e o mundo natural.  A imagem evoca a atmosfera do romance A Visão das Plantas (2019), de Djaimilia Pereira de Almeida, que acompanha o protagonista, Celestino, um ex-traficante de escravizados que, na velhice, se dedica ao cultivo de um jardim. A ilustração sugere essa relação profunda entre o homem e a natureza, capturando um momento de introspecção e contemplação. As plantas ao redor, vibrantes e detalhadas, simbolizam o ciclo da vida e a passagem do tempo, um tema central na obra. O beija-flor, por sua vez, pode representar uma delicada esperança ou um eco do passado do protagonista, que retorna em reflexões tardias.

Introdução

Em A Visão das Plantas (2019), Djaimilia Pereira de Almeida constrói uma narrativa que entrelaça memória, identidade e natureza, questionando as fronteiras entre o humano e o vegetal. Vencedor do Prémio Oceanos em 2020, o livro desafia convenções literárias ao misturar autobiografia, ficção e reflexão filosófica, tornando-se uma das obras mais originais da literatura portuguesa recente.

Neste artigo, exploraremos os temas centrais do livro, sua estrutura narrativa inovadora e sua relevância no contexto pós-colonial.

1. Djaimilia Pereira de Almeida e Sua Trajetória

1.1 Quem é a Autora?

Djaimilia Pereira de Almeida (1982) é uma escritora angolano-portuguesa conhecida por obras como Esse Cabelo (2015) e A Visão das Plantas (2019). Sua escrita aborda questões de identidade, colonialismo e pertencimento, sempre com uma linguagem poética e introspectiva.

1.2 O Contexto de A Visão das Plantas

O livro surge em um momento de crescente discussão sobre:

  • Memórias coloniais
  • Ecologia e humanidade
  • Autoficção como forma de resistência

2. Análise da Obra

2.1 Estrutura e Estilo Narrativo

A Visão das Plantas rompe radicalmente com as convenções narrativas lineares, adotando uma estrutura fragmentária que reflete a própria complexidade dos temas abordados. Djaimilia Pereira de Almeida constrói seu texto como um jardim literário, onde cada elemento – memórias, ensaios, divagações filosóficas – cresce organicamente, sem obedecer a uma cronologia rígida. Essa opção estilística não é meramente experimental, mas profundamente significativa: assim como as plantas se desenvolvem de forma não linear, a narrativa floresce em múltiplas direções, criando conexões surpreendentes entre passado e presente, entre o íntimo e o coletivo.


  • Fragmentação: O texto alterna entre memórias, ensaios e divagações filosóficas.
  • Linguagem poética: Descrições sensoriais que aproximam o humano do vegetal.
  • Diálogo com a ciência: Reflexões sobre botânica e colonialismo.

2.1.1 Fragmentação como Método

A obra alterna entre diversos registros textuais:


·        Memórias autobiográficas, onde a autora revisita sua infância em Lisboa e suas raízes angolanas;

·         Reflexões ensaísticas sobre botânica, colonialismo e ecologia;

·         Passagens poéticas que borram as fronteiras entre prosa e poesia.
Essa fragmentação não é caótica, mas calculada, imitando o modo como a memória humana opera – em flashes, associações e cortes abruptos. O leitor é convidado a "costurar" esses fragmentos, tal como se reconstrói uma história pessoal ou coletiva a partir de vestígios.


2.1.2 Linguagem Poética e Sensorial


A prosa de Djaimilia é marcada por uma densidade lírica rara. Suas descrições de plantas – desde uma simples folha de jibóia até as árvores centenárias de Luanda – são carregadas de sensualidade tátil e visual. A autora não apenas descreve o vegetal, mas o humaniza, atribuindo-lhe desejos, medos e até mesmo uma forma de consciência. Passagens como "as folhas sussurram histórias de terras roubadas" ou "as raízes lembram o que nós esquecemos" mostram como a linguagem poética serve para dissolver a hierarquia entre humano e não humano.


2.1.3 Diálogo com a Ciência


Um dos aspectos mais originais do livro é sua incorporação de conhecimentos botânicos como ferramenta narrativa. Djaimilia cita estudos sobre fotossíntese, comunicação entre árvores e inteligência vegetal, mas sempre com um olhar literário – a ciência não é usada didaticamente, mas como metáfora para relações humanas. Por exemplo, ao discutir como algumas plantas sobrevivem em solos pobres, a autora traça um paralelo com a resistência das culturas africanas sob o colonialismo. Essa abordagem híbrida (entre ciência e literatura) é uma das marcas da escrita contemporânea pós-colonial.

2.2 Temas Principais

(A) Memória e Raízes Coloniais

A autora investiga sua própria história familiar, ligada a Angola e Portugal, para discutir como as plantas testemunharam violências históricas.

O livro opera uma arqueologia pessoal e histórica. Ao investigar sua própria família – entre Angola e Portugal –, Djaimilia revela como as plantas foram testemunhas silenciosas de violências coloniais. Uma cena emblemática descreve uma mangueira no quintal de sua avó em Luanda: a árvore, plantada décadas antes da independência, "lembra" os cheiros, vozes e até os gritos da guerra civil. Aqui, a autora subverte a noção tradicional de memória: não são apenas humanos que recordam, mas também a paisagem vegetal, que arquiva histórias em seus anéis de crescimento. Essa perspectiva ecoa teorias como a de Ailton Krenak sobre a "memória da terra", ampliando o conceito de testemunho histórico.

(B) A Humanidade das Plantas


O livro propõe uma nova ecologia, em que vegetais não são apenas pano de fundo, mas agentes com "visão" própria.

A Visão das Plantas propõe uma revolução ecológica na literatura: os vegetais deixam de ser meros cenários para se tornarem personagens com agência. Djaimilia recorre a pesquisas científicas recentes (como as do botânico Stefano Mancuso) para mostrar que plantas percebem luz, som e até intenções – mas vai além, sugerindo que elas têm uma forma de consciência narrativa. Em um trecho perturbador, um baobá "conta" como viu navios negreiros partirem de Angola; em outro, um cacto em Lisboa "sente saudades" do deserto. Essa personificação não é ingênua: questiona nosso antropocentrismo e sugere que a literatura precisa de novas linguagens para representar a vida não humana.

(C) Identidade e Pertencimento

A narrativa questiona: O que nos liga a um lugar? Como as plantas, seres enraizados, refletem dilemas de deslocamento humano?

A obra gira em torno de perguntas fundamentais: O que nos enraíza a um lugar? Como carregamos "solos" dentro de nós? Djaimilia usa as plantas como espelho para dilemas humanos – enquanto uma árvore está presa ao solo por suas raízes, o migrante vive na tensão entre partir e ficar. A autora explora essa ambiguidade através de metáforas botânicas: fala de "sementes que voam" (como diásporas), de "raízes aéreas" (culturas que se adaptam) e até de "transplantes mal-sucedidos" (desenraizamentos traumáticos). Essa abordagem oferece uma nova gramática para discutir identidade, especialmente em contextos pós-coloniais onde "pertencer" é sempre uma questão em aberto.

3. Perguntas Frequentes

3.1 Por que o livro se chama A Visão das Plantas?

O título sugere uma inversão de perspectiva: as plantas, normalmente silenciosas, ganham voz como testemunhas da história.

3.2 Como a obra dialoga com o pós-colonialismo?

Djaimilia usa a botânica como metáfora para explorar raízes culturais arrancadas pela colonização.

3.3 Qual a importância da autoficção no livro?

A mistura entre autobiografia e ficção permite à autora questionar verdades estabelecidas sobre identidade nacional.

3.4 Por que Essa Estrutura Temática é Revolucionária?

Djaimilia Pereira de Almeida não apenas escreve sobre plantas – ela escreva como uma planta: com paciência, com atenção aos detalhes mínimos e com uma capacidade de crescer em várias direções ao mesmo tempo. Seu livro é uma floresta literária, onde cada tema (memória, ecologia, identidade) é como uma espécie diferente, mas todas compartilham o mesmo solo: a urgência de repensar nossa relação com o mundo vivo. Essa inovação formal e conceitual coloca A Visão das Plantas na vanguarda da literatura contemporânea de língua portuguesa, ao lado de obras como Torto Arado (Itamar Vieira Junior) e Os Memoráveis (Lídia Jorge).

4. A Relevância Contemporânea

Em tempos de crise climática e revisão de histórias coloniais, A Visão das Plantas oferece:

  • Uma crítica à antropocentrismo
  • Novas formas de narrar a memória
  • Um diálogo entre ciência e literatura

Conclusão

Mais do que um livro, A Visão das Plantas é uma experiência literária radical que redefine nossa relação com a natureza e a história. Djaimilia Pereira de Almeida nos convida a "olhar com as plantas" – e, ao fazê-lo, enxergar novas possibilidades de existência.

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