Introdução
Em A Visão das Plantas (2019), Djaimilia Pereira de
Almeida constrói uma narrativa que entrelaça memória, identidade e natureza,
questionando as fronteiras entre o humano e o vegetal. Vencedor do Prémio
Oceanos em 2020, o livro desafia convenções literárias ao misturar
autobiografia, ficção e reflexão filosófica, tornando-se uma das obras mais
originais da literatura portuguesa recente.
Neste artigo, exploraremos os temas centrais do livro, sua estrutura
narrativa inovadora e sua relevância no contexto pós-colonial.
1. Djaimilia Pereira de Almeida e Sua Trajetória
1.1 Quem é a Autora?
Djaimilia Pereira de Almeida (1982) é uma escritora angolano-portuguesa
conhecida por obras como Esse Cabelo (2015) e A Visão
das Plantas (2019). Sua escrita aborda questões de identidade,
colonialismo e pertencimento, sempre com uma linguagem poética e
introspectiva.
1.2 O Contexto de A Visão das Plantas
O livro surge em um momento de crescente discussão sobre:
- Memórias coloniais
- Ecologia e humanidade
- Autoficção como forma de
resistência
2. Análise da Obra
2.1 Estrutura e Estilo Narrativo
A
Visão das Plantas rompe radicalmente com as convenções
narrativas lineares, adotando uma estrutura fragmentária que reflete a própria
complexidade dos temas abordados. Djaimilia Pereira de Almeida constrói seu
texto como um jardim
literário, onde cada elemento – memórias, ensaios, divagações
filosóficas – cresce organicamente, sem obedecer a uma cronologia rígida. Essa
opção estilística não é meramente experimental, mas profundamente significativa:
assim como as plantas se desenvolvem de forma não linear, a narrativa floresce
em múltiplas direções, criando conexões surpreendentes entre passado e
presente, entre o íntimo e o coletivo.
- Fragmentação: O
texto alterna entre memórias, ensaios e divagações filosóficas.
- Linguagem poética: Descrições
sensoriais que aproximam o humano do vegetal.
- Diálogo com a ciência: Reflexões
sobre botânica e colonialismo.
2.1.1 Fragmentação como Método
A
obra alterna entre diversos registros textuais:
· Memórias autobiográficas,
onde a autora revisita sua infância em Lisboa e suas raízes angolanas;
·
Reflexões ensaísticas sobre
botânica, colonialismo e ecologia;
·
Passagens poéticas que
borram as fronteiras entre prosa e poesia.
Essa fragmentação não é caótica, mas calculada, imitando o modo como a memória
humana opera – em flashes, associações e cortes abruptos. O leitor é convidado
a "costurar" esses fragmentos, tal como se reconstrói uma história
pessoal ou coletiva a partir de vestígios.
2.1.2 Linguagem Poética e Sensorial
A
prosa de Djaimilia é marcada por uma densidade lírica rara. Suas
descrições de plantas – desde uma simples folha de jibóia até as árvores
centenárias de Luanda – são carregadas de sensualidade tátil e visual. A autora
não apenas descreve o vegetal, mas o
humaniza, atribuindo-lhe desejos, medos e até mesmo uma forma
de consciência. Passagens como "as folhas sussurram histórias de terras
roubadas" ou "as raízes lembram o que nós esquecemos" mostram
como a linguagem poética serve para dissolver a hierarquia entre humano e não
humano.
2.1.3 Diálogo com a Ciência
Um
dos aspectos mais originais do livro é sua incorporação de conhecimentos botânicos como
ferramenta narrativa. Djaimilia cita estudos sobre fotossíntese, comunicação
entre árvores e inteligência vegetal, mas sempre com um olhar literário – a
ciência não é usada didaticamente, mas como metáfora para relações humanas.
Por exemplo, ao discutir como algumas plantas sobrevivem em solos pobres, a
autora traça um paralelo com a resistência das culturas africanas sob o
colonialismo. Essa abordagem híbrida (entre ciência e literatura) é uma das
marcas da escrita
contemporânea pós-colonial.
2.2 Temas Principais
(A) Memória e Raízes Coloniais
A autora investiga sua própria história
familiar, ligada a Angola e Portugal, para discutir como as plantas
testemunharam violências históricas.
O livro opera uma arqueologia pessoal e histórica.
Ao investigar sua própria família – entre Angola e Portugal –, Djaimilia revela
como as plantas foram testemunhas
silenciosas de violências coloniais. Uma cena emblemática
descreve uma mangueira no quintal de sua avó em Luanda: a árvore, plantada
décadas antes da independência, "lembra" os cheiros, vozes e até os
gritos da guerra civil. Aqui, a autora subverte a noção tradicional de memória:
não são apenas humanos que recordam, mas também a paisagem vegetal, que
arquiva histórias em seus anéis de crescimento. Essa perspectiva ecoa teorias
como a de Ailton
Krenak sobre a "memória da terra", ampliando o
conceito de testemunho histórico.
(B) A Humanidade das Plantas
O livro propõe uma nova ecologia,
em que vegetais não são apenas pano de fundo, mas agentes com "visão"
própria.
A Visão das Plantas propõe
uma revolução
ecológica na literatura: os vegetais deixam de ser meros
cenários para se tornarem personagens
com agência. Djaimilia recorre a pesquisas científicas recentes
(como as do botânico Stefano Mancuso) para mostrar que plantas percebem luz,
som e até intenções – mas vai além, sugerindo que elas têm uma forma de consciência narrativa.
Em um trecho perturbador, um baobá "conta" como viu navios negreiros
partirem de Angola; em outro, um cacto em Lisboa "sente saudades" do
deserto. Essa personificação não é ingênua: questiona nosso antropocentrismo e
sugere que a literatura precisa de novas linguagens para representar a vida não
humana.
(C) Identidade e Pertencimento
A narrativa questiona: O que nos liga a
um lugar? Como as plantas, seres enraizados, refletem dilemas de deslocamento
humano?
A obra gira em torno de
perguntas fundamentais: O
que nos enraíza a um lugar? Como carregamos "solos" dentro de nós? Djaimilia
usa as plantas como espelho para dilemas humanos – enquanto uma árvore está
presa ao solo por suas raízes, o migrante vive na tensão entre partir e ficar.
A autora explora essa ambiguidade através de metáforas botânicas: fala de
"sementes que voam" (como diásporas), de "raízes aéreas"
(culturas que se adaptam) e até de "transplantes mal-sucedidos"
(desenraizamentos traumáticos). Essa abordagem oferece uma nova gramática para
discutir identidade, especialmente em contextos pós-coloniais onde
"pertencer" é sempre uma questão em aberto.
3. Perguntas Frequentes
3.1 Por que o livro se chama A Visão das Plantas?
O título sugere uma inversão de perspectiva: as plantas,
normalmente silenciosas, ganham voz como testemunhas da história.
3.2 Como a obra dialoga com o pós-colonialismo?
Djaimilia usa a botânica como metáfora para explorar raízes
culturais arrancadas pela colonização.
3.3 Qual a importância da autoficção no livro?
A mistura entre autobiografia e ficção permite à autora questionar
verdades estabelecidas sobre identidade nacional.
3.4 Por que Essa
Estrutura Temática é Revolucionária?
Djaimilia
Pereira de Almeida não apenas escreve sobre plantas
– ela escreva como uma
planta: com paciência, com atenção aos detalhes mínimos e com uma capacidade de crescer em várias
direções ao mesmo tempo. Seu livro é uma floresta literária,
onde cada tema (memória, ecologia, identidade) é como uma espécie diferente,
mas todas compartilham o mesmo solo: a urgência de repensar nossa relação com o mundo vivo.
Essa inovação formal e conceitual coloca A Visão das Plantas na vanguarda
da literatura
contemporânea de língua portuguesa, ao lado de obras como Torto Arado (Itamar
Vieira Junior) e Os
Memoráveis (Lídia Jorge).
4. A Relevância Contemporânea
Em tempos de crise climática e revisão de histórias coloniais, A
Visão das Plantas oferece:
- Uma crítica à
antropocentrismo
- Novas formas de narrar a
memória
- Um diálogo entre ciência e
literatura
Conclusão
Mais do que um livro, A Visão das Plantas é uma experiência
literária radical que redefine nossa relação com a natureza e a
história. Djaimilia Pereira de Almeida nos convida a "olhar com as
plantas" – e, ao fazê-lo, enxergar novas possibilidades de existência.
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