Por Soraya Chaccour
Choque de Gerações: Punks Versus Punks
O movimento punk surgiu nos anos 1970 como expressão de uma violência simbólica contra os valores reacionários de uma sociedade hipócrita e melancólica. Apesar de sua contundência, emanava uma poesia juvenil que, ao mesmo tempo, escandalizava e fascinava. Seu inconformismo encarnado de corpo e alma em uma estética que explodia em criatividade, com seus cabelos moicanos coloridos, roupas rasgadas, atitudes mal comportadas, desafiava a moral e os padrões da sociedade de então. Revolucionou o mundo!
A história testemunharia o movimento punk como o último frescor juvenil de uma sucessão de gerações que, no século XX, ousou desafiar a ordem e sonhou mudar o mundo. Sua revolta era uma resposta decisiva ao sistema político, econômico e cultural. Bandas como The Clash, Dead Kennedys e Crass não apenas faziam música, mas promoviam uma ideologia de luta e resistência. Porém, as grandes utopias seriam abandonadas na virada do milênio e, com elas, o punk perderia o seu vigor junto com toda uma época.
Atualmente, o punk se tornou uma caricatura de si mesmo: um estilo visual sem substância, músicas que soam como um mesmo mantra, letras que não passam de cópias de cópias de cópias, e uma cena dominada por posers mais preocupados com a estética e a performance da sua banda do que com a crítica radical.
Como o punk, que antes desafiava o status quo, se transformou em mais um produto descartável da indústria cultural? A resposta está no contexto histórico: o fim da Guerra Fria, o colapso da URSS, o avanço do neoliberalismo e a despolitização da juventude.
O Punk Original: Ideologia Acima do Som
Nos seus primórdios, o punk não era apenas um gênero musical, mas um movimento de contestação. A maioria dos punks se declarava anarquista, ainda que muitos tivessem uma ideia confusa sobre essa ideologia. Mas mesmo em um mundo onde a informação era de difícil acesso, os punks dos anos 80 procuravam conhecer o anarquismo através de enciclopédias, livros como O Que é Anarquismo (Coleção Primeiros Passos), de Caio Túlio Costa, Os Grandes Escritos Anarquistas, de George Woodcock, e até mesmo clássicos como Estatismo e Anarquismo, de Mikhail Bakunin, etc. (Hoje mesmo com a internet, a juventude não lê mais). Além disso, os punks participavam ativamente de protestos e o Primeiro de Maio, dia do trabalhador, era sagrado para o movimento.
A música era veículo para transmitir mensagens que questionavam a política, a dependência econômica, a guerra, o imperialismo, a ditadura, o autoritarismo e a alienação cultural. Bandas como Crass viviam em comunas, pregavam o veganismo antes que fosse moda e distribuíam panfletos anarquistas. Dead Kennedys satirizavam a política americana com letras afiadas.
A música era simples; e quanto mais tosca, melhor. Mas as letras eram profundas, criativas e originais. Não se tratava de habilidade técnica, virtuose, solos de guitarra eram considerados traição, pois a música era só um pretexto para protestar. Afinal, como se dizia: punk não é música, é ideologia.
Guerra Fria e o Punk Como Resistência
O punk floresceu em um mundo bipolar, onde a ameaça nuclear e a repressão estatal eram constantes. Na Inglaterra de Thatcher, o punk era a voz dos marginalizados — desempregados, imigrantes, jovens sem futuro. Nos EUA, bandas como Dead Kennedys e Black Flag denunciavam o imperialismo e a hipocrisia do "sonho americano".
Na Alemanha, o punk era uma resposta direta ao Muro de Berlim e à divisão ideológica. Bandas como Die Toten Hosen misturavam crítica social com uma estética agressiva. O punk era, acima de tudo, um movimento de oposição.
No Brasil, uma profusão de bandas, das quais se destacavam Inocentes, Garotos Podres, Cólera e Ratos de Porão, criticavam o FMI, a exploração da classe trabalhadora, a desigualdade social, a repressão, a violência nas periferias.
O Colapso da URSS e a Crise das Utopias
Com a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da URSS (1991), o mundo assistiu ao triunfo do capitalismo. O neoliberalismo, encarnado por Reagan e Thatcher, se espalhou como a única alternativa viável. O punk, que antes se alimentava da luta contra o sistema, perdeu parte de sua essência.
Sem a URSS como contraponto, a esquerda entrou em crise. O punk, que antes discutia anarquismo e socialismo, começou a se voltar para questões menos políticas. Bandas como Green Day e The Offspring levaram o punk para o mainstream, mas diluíram seu conteúdo crítico.
A Mercantilização do Punk
Nos anos 1990, o punk virou moda. A indústria cultural percebeu que poderia vender rebeldia como um produto. Marcas como Hot Topic comercializaram o visual punk, esvaziando seu significado. O que antes era uma postura anticapitalista se transformou em mais um estilo à venda.
Bandas pop-punk como Blink-182 substituíram letras políticas por temas supérfluos e romances fracassados. O punk, que antes incitava revolta, agora era consumido como entretenimento.
Parte da cena punk trocou o discurso anticapitalista pelo empreendedorismo. Ex-integrantes do movimento abriram gravadoras independentes, marcas de roupas, museus e até bares temáticos, capitalizando em cima da estética rebelde. O Do It Yourself, antes uma filosofia de autonomia, virou modelo de negócio. A revolução deu lugar ao lucro, e muitos ex-rebeldes se tornaram pequenos capitalistas da própria contracultura.
É Preciso Cultura Para Cuspir na Estrutura
As redes sociais aceleraram a transformação do punk em uma cena superficial. Hoje, muitos "punks" estão mais preocupados com a quantidade de likes do que com revolução. O movimento, que antes valorizava a cultura e o autodidatismo, agora é dominado por pessoas culturalmente vazias. Se antes os punks evitavam as câmeras de TV apontando o tradicional "dedo do meio", na entrada do século XXI, os punks fazem de tudo para aparecer!
Letras, muitas vezes, mal escritas, repetitivas e protocolares substituíram a crítica social autêntica e original. Hoje um show punk mais parece uma igreja, onde seus "fiéis" cumprem automaticamente um ritual. A forma importa mais que o conteúdo (ideologia). Parecer é mais importante do que ser. Bandas caracterizadas por um narcisismo expresso em milhares de selfies postadas nas redes sociais sonham em chegar ao mainstream da cena. Afinal, o que importa é público, ser bajulado por um montão de punk que virou plateia e receber no final um bom cachê.
Enquanto isso, bandas iniciantes ou desconhecidas costumam se apresentar em casas vazias. Ao mesmo tempo em que bandas mais famosinhas disputam no grito uma boa posição na ordem de apresentação e depois de tocar vão embora ou vão beber cerveja no bar da esquina, sem prestigiar as outras bandas. A camaradagem, que era uma marca das primeiras gerações, hoje se dissolve no individualismo e no culto ao ego, impermeável a toda crítica e incapaz de qualquer autocrítica.
Da ideologia, quase nada sobrou. Na melhor das hipóteses, alguns punks adotaram o wokismo, a tendência identitária do liberalismo de esquerda. Porém, recentemente, muitos punks, inclusive os "da antiga", apoiaram publicamente candidatos da extrema-direita. No mais, os punks usam o A de anarquia apenas como um enfeite, mais por hábito do que por convicção, e os anarquistas não querem ser associados com punks.
Por fim, muitos punks atuais ignoram política, filosofia, cultura e ação direta, focando apenas em riffs e no visual. As letras perderam a alma, a música se tornou clichê e a rebeldia virou espetáculo. Todas as críticas que os punks dirigiam à sociedade e ao poder, agora são apropriadas por eles e reproduzidas exatamente da mesma forma em uma pequena escala, na sua microfísica do poder. O movimento, que antes desafiava o sistema, agora é apenas mais um parafuso na engrenagem.
Lamentavelmente, o punk perdeu sua essência crítica e se reduziu a apenas a uma cena musical e entretenimento. Seu visual virou um uniforme que não incomoda mais ninguém e seu modo de ser um estilo de vida com um nicho de consumo. As causas que afligem o mundo passam despercebidas pelos punks, preocupados demais com o horizonte estreito de seu mundinho fechado. Impermeável a toda crítica e incapaz de qualquer autocrítica, o movimento punk se tornou uma seita que, como diz Caetano, acha feio o que não é espelho.
Porém, o punk atual é apenas um reflexo de uma juventude que vivencia na pele as agruras do sucateamento generalizado do ensino público e que de modo surpreendente rejeitou todas as extravagâncias de liberdade das gerações anteriores para abraçar o conservadorismo, chegando a flertar até mesmo com o fascismo.
Assim, o mundo se apequenou. E quando não há grandes ideais, a luta é pequena e a vida é medíocre.
Um Triste Legado
Como se não bastasse a alienação acachapante das novas gerações, desgraçadamente o punk é lembrado no Brasil mais pelos inúmeros casos de violência criminal (geralmente por motivo fútil) que enchem as páginas policiais do que por uma contribuição significativa nas artes, na música ou na cultura em geral.
Karl Marx tem uma frase famosa que diz que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Talvez, no caso do punk, deveríamos inverter essa lógica: a história se repete, primeiro como farsa, depois como tragédia.
Conclusão: É Possível Resgatar o Punk?
O punk original é apenas uma lembrança, mas sua essência ainda pode inspirar. Se hoje a cena está dominada por posers, ainda existem coletivos e bandas underground que mantêm viva a chama da resistência. O desafio é reconectar o punk com a política (em sua visão antipolítica), a leitura e a ação direta. Caso contrário, o movimento continuará sendo apenas mais um produto descartável da cultura de massas — uma rebeldia de shopping center, onde o punk de butique se tornou o grande protagonista; um rótulo de uma mercadoria barata, sem som sem fúria.
(*) Nota: Desabafo de uma ex-punk.
(**) Notas sobre a ilustração:
A ilustração está dividida em duas partes, separadas por uma seta que indica a transição. À esquerda, a cena representa a essência original do punk: um personagem com moicano, jaqueta de couro rasgada com patches e alfinetes de segurança, e jeans rasgados, em um ambiente de rua com grafites e cartazes descascados. A estética é crua e 'faça você mesmo' (DIY).
À direita, a mesma figura punk está embalada em um plástico transparente, como se fosse um brinquedo ou um produto de prateleira. A jaqueta de couro e as roupas estão "limpas" e com acabamento de marca, com um código de barras e um rótulo que diz "Punk Rock Product". A figura está em uma esteira de produção, simbolizando a mercantilização da subcultura. A seta no meio reforça a ideia de que o espírito rebelde do punk foi absorvido e transformado em um produto consumível pela indústria cultural.