O enigma central de Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, reside na dissimulação de Capitu. No entanto, uma análise aprofundada da obra, especialmente sob a ótica da crítica feminista, sugere uma interpretação radicalmente diferente: a astúcia e a suposta "dissimulação" da personagem podem ser vistas não como vícios morais, mas como ferramentas essenciais de sobrevivência e ascensão para uma mulher de origem modesta em um mundo rigidamente controlado por homens.
Este artigo propõe uma reavaliação da figura de Capitu. Exploraremos como a sociedade patriarcal do século XIX limitava as opções femininas e como sua inteligência, vista por Bentinho como maldade, era, na verdade, uma estratégia brilhante para navegar e alcançar seus objetivos em um ambiente que lhe negava o poder direto. A dissimulação, neste contexto, é a face da sua resistência.
🔗 O Contexto da Sobrevivência Feminina no Século XIX
A sociedade brasileira do final do século XIX era estruturalmente patriarcal. O poder econômico, político e social estava concentrado nas mãos dos homens.
As Limitações do Gênero
Para mulheres como Capitu, filha de agregados, as opções de ascensão social e realização pessoal eram extremamente limitadas:
Educação Restrita: O acesso à educação era focado em habilidades domésticas, não em carreiras profissionais ou intelectuais.
Dependência Econômica: A mulher era economicamente dependente do pai e, subsequentemente, do marido. O casamento era a principal, senão única, estratégia de mobilidade social.
Voz Negada: O espaço público era masculino. A mulher era confinada ao lar, e sua voz não tinha valor fora dos círculos domésticos.
Nesse cenário, a força bruta, o capital ou a influência direta não estavam disponíveis para Capitu. Sua única forma de poder residia na inteligência, perspicácia e manipulação sutil – as qualidades que Bentinho viria a rotular como dissimulação.
🎭 A Astúcia de Capitu: Uma Leitura de Sobrevivência
A leitura tradicional do romance, influenciada pela voz ciumenta de Dom Casmurro, insiste na imagem de Capitu como uma femme fatale maligna. No entanto, ao analisarmos seus atos sob a ótica da sobrevivência, eles adquirem um novo significado.
Manipulação como Estratégia de Ascensão
Capitu demonstra desde cedo uma clareza estratégica impressionante:
O Obstáculo do Seminário: O maior impedimento para Capitu era a promessa religiosa de Dona Glória, que forçaria Bentinho a se tornar padre. Capitu não espera passivamente; ela planeja, sugere a Bentinho a ideia de procurar um advogado e, sutilmente, empurra-o para tomar a atitude necessária para concretizar o casamento e garantir seu futuro. Essa astúcia não é maldade; é o uso de recursos mentais para alcançar a estabilidade negada pela origem social.
O Casamento como Conquista: O casamento com Bentinho, um herdeiro de posses, representa para Capitu a passagem da dependência para o conforto. Ela usa seu charme, inteligência e o que Bentinho chama de "dissimulação" para vencer as barreiras sociais e financeiras.
O "Olhar de Ressaca": O Poder do Não Dito
O famoso "olhar de ressaca" é a manifestação física dessa estratégia de sobrevivência. Bentinho o interpreta como a prova de uma alma oculta e traiçoeira, mas o olhar é, na verdade, a única forma de poder expressivo que Capitu pode exercer sem ser punida.
Foco no Olhar: Em uma sociedade onde a mulher deve ser recatada e calada, o olhar de Capitu se torna sua voz não verbal. Ele comunica profundidade, intenção e controle, qualidades que a sociedade não permitia que fossem ditas em voz alta.
A Necessidade de Ocultação: A dissimulação é necessária porque a franqueza de uma mulher com vontade própria seria imediatamente punida. Se Capitu expressasse abertamente sua ambição ou sua estratégia, ela seria rotulada como imoral e teria seu casamento impedido. A dissimulação é a sua armadura.
⚖️ O Veredito de Bentinho Versus a Leitura Moderna
A questão do Narrador Não Confiável é crucial para sustentar a tese da dissimulação como sobrevivência. Bentinho, em sua amargura de Dom Casmurro, não consegue aceitar que Capitu seja simplesmente mais forte, mais inteligente e mais capaz de agir do que ele.
A Punção da Inteligência Feminina
A incapacidade de Bentinho de compreender a força de Capitu o leva a rotulá-la como traidora:
Ciúme e Insegurança: O ciúme patológico de Bentinho é alimentado pela sua própria insegurança e pela frustração em não conseguir controlar Capitu. A traição é a única narrativa que justifica sua fraqueza e sua eventual solidão.
A Destruição Narrativa: Ao longo do livro, Bentinho destrói Capitu narrativamente, usando sua memória seletiva para provar a tese da traição. A dissimulação de Capitu, portanto, é menos um fato e mais uma construção literária usada para punir a mulher por sua inteligência e agência.
Capitu é, no fundo, a vítima de um julgamento patriarcal que não tolera a mulher que busca a libertação através da sua própria astúcia. Seu destino trágico – o exílio e a morte na Europa – é a punição que o patriarcado impõe à mulher que ousa sair do seu papel.
🌍 O Legado de Capitu: Um Símbolo de Resistência
A figura de Capitu e sua suposta dissimulação permanecem eternamente relevantes. Ela se torna um símbolo da mulher que, privada de meios legítimos de poder, desenvolve estratégias sofisticadas para sobreviver e ascender em uma sociedade que tenta limitá-la.
Relevância Contemporânea: A luta de Capitu ecoa as dificuldades enfrentadas por minorias e grupos marginalizados que, forçados a operar dentro de sistemas que não lhes são favoráveis, precisam desenvolver formas complexas de negociação e "dissimulação" para garantir seu espaço.
A Força no Silêncio: O silêncio de Capitu no romance não é vazio; é cheio de poder e de resistência. É o silêncio estratégico de quem sabe que falar abertamente só lhe traria a condenação imediata.
🔑 Conclusão: Dissimulação como Dignidade
A análise da dissimulação de Capitu como ferramenta de sobrevivência em Dom Casmurro oferece uma das interpretações mais ricas e convincentes do clássico machadiano. A astúcia da personagem é uma resposta inteligente e necessária às limitações impostas pelo sistema patriarcal.
Capitu usou seu intelecto e sua "dissimulação" não por maldade inerente, mas para garantir seu lugar ao sol. Ao invés de condená-la, a leitura moderna nos convida a celebrar sua resiliência e a condenar a sociedade que a forçou a esconder sua força sob a máscara da astúcia.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração é um retrato dividido e simbólico de Capitu, destacando a dualidade entre a aparência e a verdadeira intenção, que é o cerne da sua dissimulação.
A figura de Capitu está centralizada e apresenta dois lados distintos, separados por uma linha sutil ou uma fenda.
O Lado Exterior (A Máscara): Este lado do rosto (talvez o direito do espectador) é suave, recatado e sereno. Ele está voltado para uma luz clara e representa a aparência de inocência e submissão que a sociedade do século XIX esperava da mulher. Os olhos neste lado são doces e a boca está em um sorriso fechado e contido. Este é o rosto que Bentinho vê e ama, o rosto que a dissimulação usa como escudo.
O Lado Interior (A Estratégia): O outro lado do rosto (o esquerdo do espectador) é mais sombrio e revelador. A luz incide menos sobre ele, e o famoso "olhar de ressaca" é proeminente: profundo, escuro e com uma expressão de intensa inteligência e cálculo. Pequenos símbolos sutis, como engrenagens, um mapa estratégico, ou um punhal minúsculo, podem estar escondidos na sombra deste lado, representando a astúcia, a ambição e a vontade própria que Capitu oculta.
No centro da divisão, há um pequeno ponto de interrogação ou uma chave, simbolizando o enigma que ela representa e a dificuldade de Bentinho em penetrar a sua verdadeira essência.
A paleta de cores utiliza um contraste forte entre a claridade (inocência) e a sombra (estratégia/dissimulação), com o vermelho (paixão ou perigo, na visão de Bentinho) ou o dourado (ambição) sutilmente incluído no fundo do lado sombrio. A composição captura a ideia de que a "dissimulação" de Capitu é a sua segunda face, desenvolvida para navegar em um mundo que lhe proibia a franqueza.