sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 2

 

Por Edu B.

Aqui chegamos ao nosso ponto de clivagem, em que os artigos debatidos se enveredam por caminhos distintos. Para começar, trataremos do artigo O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação (2009), de Jáder dos Reis Sampaio, por seu caráter altamente teórico que não negligencia a amplitude e extensão da obra de Maslow.

Além das necessidades listadas acima, outros estudos de Maslow apontaram para níveis mais elevados de necessidades. Essas incluem necessidades de compreensão, apreciação estética e necessidades puramente espirituais, normalmente ignoradas pelos vulgarizadores da teoria. Neste sentido, Sampaio acrescenta ao rol de necessidades mais duas categorias que, por não terem implicações clínicas, geralmente não constam nos manuais e ilustrações da pirâmide das necessidades. São elas:

Desejos de saber e de entender

Necessidade que Maslow (1954, p.97) descreveu como “um desejo de entender, de sistematizar, de organizar, de analisar, de procurar por relações e significados, de construir um sistema de valores” (Citação do texto de Sampaio).

Necessidades estéticas

São as necessidades que estão associadas ao belo, à simetria, à simplicidade, à inteireza e à ordem.

Como o próprio título de seu artigo sugere, Sampaio busca realizar uma revisão da teoria da motivação humana de Maslow, questionando seu uso instrumental aplicado ao mundo do trabalho para se obter maior eficiência e controle dos trabalhadores. Ao criticar as interpretações mecanicistas e reducionistas, o autor procura apresentar um Maslow que vai além do idealizador da suposta “pirâmide das necessidades”.

Nesta linha crítica, segundo Sampaio, uma leitura atenta da obra de Maslow não só refuta o esquema mecânico de estímulo e recompensa, do tipo behaviorista, como também, na outra ponta, descarta uma filiação direta da teoria à psicanálise. Antes, as concepções maslownianas são de fundo “holístico dinâmico”, como o próprio Maslow a denominava, baseando-se num grande percurso que transita, sim, pela tradição psicanalítica, mas também pela gestalt, pela psicologia da escola comportamental e humanista, além da antropologia cultural norte-americana, e tendo por influência vários autores, como Freud, Adler, Kardiner, Erich Fromm, Carl Rogers e muitos outros.

A partir dessa concepção holística, Maslow compreende o conceito de motivação integrado ao humano como um todo, não diferenciando os motivos biológicos dos motivos culturais. Atribuir a fatores exclusivamente internos os impulsos motivacionais atrelados à gratificação, sem considerar uma inter-relação social e ambiental, como fazem muitos de seus comentadores, constitui um equívoco grosseiro de interpretação. O ser humano é um ser racional e, ao mesmo tempo, motivado por impulsos e desejos, não podendo ser abstraído de sua interação com a sociedade e o meio ambiente.

Sampaio afirma que as formulações de Maslow foram influenciadas por uma “visão organísmica de homem”, pois ressalta o papel da privação ou gratificação sobre as necessidades nas mais diversas áreas da vida humana. A partir disso, Maslow distingue as necessidades dos desejos e dos impulsos, ressalvando o caráter inconsciente das necessidades. Portanto, as necessidades básicas são em grande parte inconscientes, ainda que as necessidades complexas possam surgir de atitudes conscientes. A necessidade, portanto, é mobilizada por uma privação que se mitigada produz uma gratificação, suscitando uma nova necessidade. Todavia, as necessidades não devem ser compreendidas unilateralmente, pois a maior parte do comportamento humano é simultaneamente multimotivado e, por isso, tende a ser determinado por várias necessidades.

Como vimos acima, Maslow classifica a categorias básicas das necessidades como superiores e inferiores, o que implica uma ordem de prioridades na qual uma necessidade superior não se manifesta a menos que as necessidades inferiores tenham sido pelo menos parcialmente satisfeitas. Por exemplo, a partir do momento em que as necessidades fisiológicas são supridas, outras necessidades passam a emergir, e assim sucessivamente. Portanto, uma necessidade de nível superior ocupa a posição de uma necessidade inferior plena ou parcialmente satisfeitas. Ressalta-se, no entanto, que o esquema das necessidades, de acordo com Sampaio, não pode ser tomado de maneira fixa e por uma ótica mecanicista, pois, como vimos, as motivações têm um caráter múltiplo e simultâneo. Maslow desenvolveu, portanto, uma teoria da preponderância das necessidades, relativizando a importância de uma necessidade superior sobre uma inferior. Uma necessidade preponderante é aquela que tem maior poder ou influência sobre o comportamento na escala das necessidades. Obviamente, as necessidades de fundo puramente biológico deveriam ser resolvidas primeiro, senão a sobrevivência correria um sério risco. Ocorre que se qualquer uma das necessidades não for pelo menos relativamente gratificada, haverá uma preponderância dessa necessidade e não haverá desenvolvimento.

Para Maslow, esta dinâmica autoriza dois novos conceitos: a motivação baseada na deficiência (deficiency motivation) e a motivação de crescimento (growth motivation). Assim, obstáculos sociais que perfazem a trajetória de um indivíduo podem causar sérios danos e impedi-lo de avançar na direção da autoatualização. A motivação baseada na deficiência, segundo Sampaio, limita o psiquismo humano aos impulsos e instintos. A partir da ideia de homeostase, supõe-se que as necessidades mais baixas deveriam ser satisfeitas, para que outro nível seja alcançado. Caso uma necessidade de nível não seja suficientemente gratificada, a sua privação ou insatisfação levará a uma preponderância dessa necessidade, no sentido de restaurar o equilíbrio gerado pela tensão subjacente, ou melhor, a “falta de motivação”, tendo, por isso, maior poder sobre o comportamento e a psique de um indivíduo, que o impede para o crescimento. Em suma, as necessidades básicas, quando gratificadas, geram uma sensação de bem-estar psicológico que estimula uma tendência para que um indivíduo se engaje com ações que o levam a uma postura de crescimento, independência e autorrealização; por outro lado, quando não gratificadas, geram problemas de saúde mental e estagnação.

Ainda conforme Sampaio, a motivação de crescimento nunca pode ser de fato satisfeita porque sempre se quer mais. Ao contrário, na motivação para o crescimento, a gratificação aumenta em vez de diminuir a motivação. O que diverge fundamentalmente do conceito de necessidade básica posto em revista até agora. Tal distinção levou Maslow a compreender conceitualmente as motivações para o crescimento sob o termo de metamotivação e as necessidades ligadas a ela de metanecessidades. Assim, as motivações baseadas na deficiência receberam o valor D e as de crescimento o valor S (Sampaio lista, entre outros: verdade, beleza, justiça, perfeição, integração, unificação, tendência em direção à unidade, ordem).

Diante do que foi exposto, fica claro que para Maslow a hierarquia das necessidades ganha um papel secundário no conjunto de suas descobertas e que sua aplicabilidade como uma ferramenta no sentido de, por exemplo, otimizar a produtividade dos trabalhadores em uma organização, implica muitos empecilhos conceituais que simplificam demasiadamente o arcabouço teórico da teoria das necessidades. Para Maslow, o trabalho motivado por valores S articula-se a um processo de identificação do self, pelo qual as pessoas buscam como gratificação o prazer que a atividade profissional pode proporcionar, valorizando muito mais a criatividade, autonomia, liberdade e independência do que a remuneração propriamente dita.

O artigo Hierarquia das Necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento apresenta uma perspectiva inversa do primeiro, nem por isso menos importante.

Os autores reproduzem o quadro das cinco necessidades, relacionando seu desenvolvimento à saúde mental. Ao referenciar Maslow (1954), os autores explicam o funcionamento da teoria, de modo que a motivação só é acionada quando uma necessidade não é satisfeita; em contrapartida, a gratificação eleva a motivação para a necessidade seguinte, que passa a ser dominante, e precisa ser satisfeita.

Como Maslow não desenvolveu nenhum instrumental para testar sua teoria, argumentam os autores, Leidy (1994), em Operationalizing Maslow’s theory: Development and testing of the basic need satisfaction inventory, propôs-se a fazê-lo, desenvolvendo o Inventário de Satisfação das Necessidades Básicas (ISNB), que se mostrou adequado para vaiadas finalidades de pesquisa. Tendo em vista a sua validade fatorial, validade convergente e consistência interna, este instrumento foi adaptado para a realidade brasileira em dois estudos.

Os autores advertem que os estudos em questão seguiram todas as recomendações éticas vigentes e envolveu, no primeiro, 200 estudantes de uma universidade pública de João Pessoa (PB), com idade média de 23,8, dentre eles, a maior parte era do sexo feminino (56,5%), com estado civil de solteiro (84,5%) e de religião católica (40,5%); e, no segundo, 199 estudantes universitários da cidade de Parnaíba (PI), com idade média de 22,5 anos, sendo a maioria do sexo feminino (77%). Os participantes do primeiro estudo responderam a Escala de Satisfação com a Vida e um questionário com medidas ISNB e outro demográfico. Os do segundo, apenas o ISNB.

Os resultados da análise fatorial parecem ter demonstrado as primeiras evidências psicométricas que confirmam a adequação das teses de Maslow no Brasil. Apesar da limitação da amostra (não probabilística), o primeiro estudo resultou em um modelo de cinco fatores correlacionados com a satisfação da vida. O segundo estudo foi desenvolvido para testar modelos alternativos de tipo unifatorial e hexafatorial. Entretanto, o modelo com cinco fatores se revelou mais promissor.

Em que pese as possíveis críticas, este foi o primeiro estudo a testar a teoria das motivações de Maslow no Brasil, através do ISNB, contribuindo para o conhecimento das necessidades que podem afligir a sociedade brasileira como um todo.

Conclusão

Os dois textos ora analisados apresentam pontos de vistas e metodologias divergentes, o que não invalida as contribuições valiosas que ambos oferecem, cada um ao seu modo, aos estudiosos do tema. O primeiro visa explorar um aspecto pouco conhecido da teoria de Maslow, criticando as interpretações simplistas e reducionistas, através de uma crítica à instrumentalização da teoria que ignora seus desdobramentos ulteriores. O segundo, na direção oposta, testou experimentalmente e de forma inédita a teoria como uma ferramenta aplicada à realidade brasileira, no intuito de, posteriormente, entender as necessidades da população e, com isso, propor alternativas que possam atender as demandas suscitadas pelo contexto social do país.

Referências bibliográficas

Cavalcanti, T. M., Gouveia, V. V., Medeiros, E. D., Mariano, T. E., Moura, H. M., Moizéis, H. B. C. (2019). Hierarquia das necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13.

Sampaio, J. R. O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação,  R.Adm., São Paulo, v.44, n.1, p.5-16, jan./fev./mar. 2009.

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 1

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 1

Hierarquia das necessidades

por Edu B.

Antes de entrarmos na discussão propriamente dita, que envolve os dois artigos, convém-nos reportarmos a um brevíssimo preâmbulo, a título de ilustração, dos aspectos mais gerais das ideias que notabilizaram a psicologia de Maslow.

A teoria da motivação humana ou da hierarquia das necessidades se tornou muito conhecida com a clássica figura da pirâmide disposta em cinco níveis coloridos. Partindo-se do pressuposto de que as necessidades humanas tendem a ser satisfeitas por um comportamento motivado, a base da pirâmide representa as necessidades consideradas mais vitais para a sobrevivência de um ser humano, como a alimentação, o sono, a respiração etc., as quais quando satisfeitas ensejam um escalar para o nível mais alto, de maior complexidade, como a necessidade de abrigo, proteção etc., e assim por diante, até chegar ao topo. Deste modo, a pirâmide estabelece cinco níveis hierárquicos de necessidades, a saber, fisiológicas; segurança; afiliação ou de pertença e amor; estima; e, por fim, autorrealização ou autoatualização.

Com base nesse esquema geral, esboçado acima, podemos aprofundar mais os conceitos da teoria, tomando por referência os dois artigos que inspiram o debate de nossa resenha crítica. A princípio, enfoquemos nos aspectos conceituais que os unem, pois seria interessante, a fim de esclarecimento, nos atentarmos aos elos comuns de ambas as proposições, ou seja, os conceitos de motivação e hierarquia das necessidades básicas, para então, munidos deste arcabouço teórico, pontuarmos as diferenças.

Motivação

O primeiro conceito importante na teoria de Maslow que devemos ter em vista é o de motivação, que pode ser definido como um conjunto de fatores que impulsionam o comportamento de um indivíduo para atingir um determinado fim. Sampaio (2009) argumenta que, para Maslow, “o indivíduo é um todo integrado e organizado” e que, por isso, pode desejar inúmeros objetos, a fim de obter alguma gratificação, já que as necessidades inserem-se não apenas no nível do organismo biológico como também na esfera cultural e social. Para corroborar tal concepção, conforme salientam os autores, Cavalcanti, Gouveia, Medeiros, Mariano, Moura e Moizéis (2019), a motivação emerge de necessidades não resolvidas e tem como mola propulsora duas forças: a privação, compreendida como uma “falta” que estimula o indivíduo a supri-la por diferentes meios e a gratificação de uma necessidade, que recompensa e estimula a emergência de um novo tipo de necessidade, geralmente mais sofisticada. Assim sendo, a motivação suscita uma série de necessidades básicas que podem ser hierarquizadas, de acordo com seu nível de complexidade, e classificadas gradativamente por inferiores e superiores.

Hierarquia das necessidades

Maslow (1954) postula que, a despeito da singularidade de cada ser humano, toda pessoa possui necessidades comuns e gerais que precisam ser satisfeitas. Portanto, a necessidade pode ser entendida como um certo desequilíbrio de uma dada situação envolvendo privação e, daí, motivar a supressão do estado de carência por meio de sua resolução. A privação de uma necessidade ativa um processo de compensação, por meio da gratificação, num escalar crescente que pressupõe diferentes níveis de necessidades básicas.

A partir dessa dinâmica, Maslow classificou as necessidades a partir de sua finalidade e desenvolveu um modelo em que as necessidades mais elementares, relacionadas à sobrevivência, dão subsídios, quando recompensadas, à geração de novas necessidades mais complexas, abstratas e de caráter espiritual. O modelo é composto, como já assinalado, por cinco níveis diferentes de necessidades, que são classificadas e hierarquizadas.

Deste modo, a teoria hierárquica das necessidades é frequentemente representada em forma de uma pirâmide dividida em cinco níveis distintos e gradativos, representando as necessidades inferiores na base e as necessidades superiores no topo, o que significa dizer que um indivíduo só pode alcançar de forma progressiva a sua plena realização satisfazendo todos os níveis hierárquicos. Feitas estas considerações, as necessidades são classificadas do seguinte modo:

Necessidades fisiológicas

São as de tipo biológico, compreendendo os impulsos, além da dinâmica de homeostase e de apetite (SAMPAIO, 2009). São as necessidades primordiais, porque são a base da autopreservação de um organismo e sua privação total poderia colocar em risco a sua sobrevivência física. Portanto, a respiração, a fome, a sede, o sono, a temperatura corporal são elencadas nessa categoria formando a base indispensável do modelo de Maslow. Um dado interessante neste quesito, apontado pelos autores Cavalcanti, Gouveia, Medeiros, Mariano, Moura e Moizéis (2019), é que, segundo pesquisas, pessoas que vivem em países pobres apresentam uma pontuação elevada em suas necessidades básicas, evidenciando uma relação estreita entre este nível e o desenvolvimento de uma sociedade. Veremos, mais abaixo, ao analisarmos o artigo de Sampaio, que a não satisfação de uma necessidade básica terá implicações decisivas no desenvolvimento ético e espiritual.

Necessidade de segurança

Se as necessidades fisiológicas forem relativamente satisfeitas, o indivíduo estará em condições de galgar a próxima etapa, a necessidade de segurança. De acordo com Sampaio, esse tipo de necessidade surge da “inexistência de ameaças percebidas no ambiente”. Ou seja, a necessidade de proteção como forma de garantir a sobrevivência diante dos perigos iminentes em um contexto ameaçador e de instabilidade. Evidentemente, a necessidade de abrigo aparece como a mais banal. No entanto, tal necessidade não se restringe apenas à moradia, mas também a estabilidade financeira, os cuidados com a saúde, o corpo, entre outros.

Necessidade de afiliação ou de pertença e amor

É a categoria imediatamente acima da necessidade de segurança e que abrange a troca de afetos, as relações pessoais, o amor, a amizade, proporcionando um sentimento de pertencimento e afiliação. Sampaio adverte, entretanto, que, embora a sexualidade envolva intimidade, esta não pode ser classificada nessa classe, pois o comportamento sexual se enquadra nas necessidades primordiais, de tipo fisiológico.

Necessidade de estima

É a quarta necessidade básica na hierarquia e pode ser definida através da imagem que uma pessoa possui de si mesma e de seu desejo de reconhecimento e receber estima de outras pessoas (SAMPAIO, 2009). Esta necessidade pode ser dividida então em dois subgrupos: o primeiro deles diz respeito à necessidade em que as pessoas individualmente têm de se sentir confiantes, por meio de realizações profissionais, do mérito por seus feitos, pela sua competência etc.; o segundo refere-se ao reconhecimento positivo advindo de terceiros, principalmente no que concerne à consideração, à reputação, ao prestígio, à dominância, ao status, entre outros. Quando relativamente satisfeita, a necessidade de estima promove uma valorização da autoimagem de um indivíduo; se frustrada, um sentimento de inferioridade e de desvalorização tende a prevalecer.

Necessidade de autorrealização ou autoatualização

Maslow estipula o nível mais elevado na hierarquia das necessidades, a autoatualização ou autoatualização, compreendida enquanto vocação ou aspiração para algo, potencializando talentos latentes e suas realizações. Segundo Sampaio, Maslow se alinha a pesquisadores, como Jung, que defendiam que “as pessoas têm um potencial interno que necessita tornar-se ato”. Cavalcanti, Gouveia, Medeiros, Mariano, Moura e Moizéis (2019) listam como características de pessoas autorrealizadas “a espontaneidade, a criatividade, a autonomia e a resistência à doutrinação”, entre outras.

Referências bibliográficas

Cavalcanti, T. M., Gouveia, V. V., Medeiros, E. D., Mariano, T. E., Moura, H. M., Moizéis, H. B. C. (2019). Hierarquia das necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13.

Sampaio, J. R. O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação,  R.Adm., São Paulo, v.44, n.1, p.5-16, jan./fev./mar. 2009.

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 2

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Si hay gobierno, soy contra - Fecaloma - punk rock

 Si hay gobierno, soy contra

No mês passado, o grupo de punk rock Fecaloma, uma banda parceira e conhecida aqui no blog, lançou seu mais recente álbum – um “EP”, como se dizia antigamente –, intitulado A vocês, que inclui duas composições: “Si hay gobierno, soy contra” e “Fins de semana de solidão”.

O título do álbum é bastante inusitado em um ambiente marcado pelo narcisismo, como o das bandas de rock em geral. A vocês é dedicado ao público, aos fãs da banda Fecaloma. (Se é que neste caso o termo “fã” é correto e não provocaria a censura da banda por essa impropriedade de nossa parte). Ou seja, o título é um tributo ou uma homenagem a quem o grupo de punk rock reconhece um lugar de mais alta estima e declara manter um compromisso inabalável de igualdade. (Numa outra ocasião, a banda entoou o seguinte verso: “É o público que manda, é o público que manda”).

A primeira canção de A vocês, “Si hay gobierno, soy contra”, é um punk rock bem empolgante que bem poderia ser um hino anarcopunk, repercutindo ecos da Marselhesa ou da Internacional em sua letra, não fosse a recusa da banda em adotar símbolos que fragmentam e dividem a humanidade tais quais as insígnias dos Estados e nações. (Numa de suas músicas mais conhecidas, “Sertapunk”, o verso “O hino que canto é uma música qualquer” não deixa margem para dúvida sobre os lemas iconoclastas da banda Fecaloma). A segunda composição do EP, “Fins de semana de solidão”, é um misto de um tipo de reggae (ou algo assim) e o punk propriamente dito. A letra poderia ser interpretada como uma versão punk pós-moderna de A uma passante, do poeta Baudelaire.

Minha bandeira é minha roupa

No entanto, um tom melancólico envolve o lançamento, pois na descrição do vídeo no YouTube há uma menção da terrível desilusão por que sofre D. Quixote quando descobre que todas as aventuras de cavaleiro andante por ele vivida não eram senão meras fantasias de uma mente perturbada. A banda parece querer traçar um paralelo entre sua trajetória, de velhos adolescentes idealistas que desejaram um dia a revolução social através da música de protesto, com o clássico romance de Miguel de Cervantes Saavedra. Algo como, em tempos sem grandes ideais, como os da atualidade, comparar um revolucionário (anarquista, socialista, comunista) ao solitário cavaleiro da triste figura. Lutar por uma utopia, no século XXI, é lutar contra moinhos de vento. No contexto do movimento punk, se nos anos 80 e 90 formar uma banda punk era só “um pretexto para mudar o mundo”; hoje, mudar o mundo é só um pretexto para ter uma banda. A revolução está fora de moda!

D. Quixote - Picasso

Cabe ressaltar que esse engajamento não é meramente performático ou supérfluo, além dos três álbuns da banda, Transgredir por transgredir (1998), Rebelião adolescente (2001) e Ocupar e resistir (2005), o grupo Fecaloma assina três traduções sobre a rebelião dos marinheiros anarquistas de Kronstadt, no início do século XX. O que torna essa banda única.

Kronstadt, 1921


Kronstadt, 1921
(Disponível: site Crítica Desapiedada)
A verdade sobre Kronstadt

(Disponível: Amazon)

A Comuna de Kronstadt: o crepúsculo dos sovietes

A comuna de Kronstadt - Ida Mett
(Disponível: Amazon)

Pois bem, em que pesem as desilusões a que todos nós estamos fadados a experimentar cedo ou tarde, o álbum A vocês do Fecaloma certamente não vai decepcionar os “fãs” da banda (com o perdão da palavra), que poderão apreciar as letras bem escritas e originais que marcam esta singular banda de punk rock brasileira.

Fedaloma, A vocês

Si hay gobierno, soy contra

Jean: vocal e guitarra; Erick: baixo e backing vocal; e Arthur: bateria e backing vocal

Letras

Lado A

Si hay gobierno, soy contra

Salve a todxs Anarquistas

Contra nós o estandarte

Dos batalhões governistas

Se ergueu com jugo covarde

 

Soldados da tirania

Servos da autoridade

Em nome da democracia

Marcham sobre a liberdade

 

Si hay gobierno, yo soy contra

O capital perecerá

Anarquia Vingará

Si hay gobierno, yo soy contra

O Estado cairá

Anarquia vencerá

 

Salve a todxs Anarquistas

Bem unidos, camaradas

Contra falanges fascistas

Levantemos barricadas

 

Somos nós a resistência

Desbravando a tempestade

Com ternura e independência

Libertar a humanidade

 

Lado B

Fins de semana de solidão

Fins de semana de solidão

Por acaso eu te encontro

 

Longe de mim

Às vezes me olha

Fica na sua

E me provoca

 

Mas nas horas que se vão

Não há tempo pros nossos sonhos

 

Eu chego junto

E você foge

Desentendida

Me mata de vontade

 

Refrão:      Porque só temos esta noite

Amanhã te perderei nas multidões

 

Fins de semana de solidão

Por acaso eu te encontro

 

Me desespero

Você disfarça

Eu imploro

Você acha graça

 

E nas horas que se vão

Não há tempo pros nossos sonhos

 

Mais um pouco

Não sei se te vejo

Me dê uma chance

Ou te roubo um beijo


Link relacionado: Subviventes - "Depende de onde olhar" - Resenha


segunda-feira, 1 de julho de 2024

O direito à cidade: entre o público e privado

 Público e privado

Por G. Ã. Pires

“Quanto vale a vida?” Esta é a questão central da Ilíada. No Canto I da epopeia homérica, Aquiles não quer mais lutar. Talvez, motivado pela ofensa de Agamêmnon, o maior herói grego cai em si, diante do horror da guerra. Sua indecisão é um sinal de sua profunda humanidade - humanidade esta essencialmente frágil e incapaz de alterar o que um destino trágico lhe reserva. Nada, nem bens materiais nem glória e fama, o registro eterno de seu nome na História, nada é mais importante que a vida. Mais tarde, na Odisseia, a hesitação do divino de pés ligeiros parece se confirmar inteiramente quando da descida (nékuia) de Ulisses ao reino de Hades. Em seu encontro com seu ex-companheiro de batalha no cerco à cidade de Tróia, Ulisses ouve a confissão do lendário Aquiles: melhor seria viver as agruras de uma vida de um trabalhador braçal do que ser rei aqui no Hades. Mas o Destino é soberano, até mesmo para a vontade dos deuses; eles próprios, na Ilíada, tão humanos. Porém, o destino, embora já conhecido de antemão para Aquiles, não está descrito como se fosse numa rota traçada em um mapa. Ele é surpreendente, não é óbvio, e se revela aos poucos, no tempo presente, de modo inusitado e desconhecido, no fluir da própria vida. Não há como fugir: o destino prega peças, ele estará sempre esperando.

Um dos maiores equívocos da leitura dos clássicos da Antiguidade é ler as epopeias como um poema moderno. Lá, não estava em jogo a liberdade criativa do autor, isto é, sua decisão de escolher a bel-prazer um desfecho mais agradável ou não para um certo herói. De fato, Aquiles não tem outra opção senão lutar – e perecer ainda na “flor-da-idade”. Tampouco o rapto da mulher mais linda do mundo, Helena, pelo sedutor Páris, é um fato pitoresco de consequências insensatas, as quais conduziriam milhares de homens para um desfecho fatal. O que está em jogo, e que por vezes passou despercebido para alguns críticos literários, é a formação da identidade grega. Se Helena se apaixonou de verdade pelo belo Páris ou se partiu forçada para dentro das muralhas de Tróia não importa, e se isto foi o estopim da guerra, como de fato o foi, tal narrativa não se trata de uma mera alegoria ou metáfora mas da realidade em seu sentido mais cru. Helena é a própria Grécia. Sua ausência implica a perda brusca do nexo significativo do reconhecimento de um grupo social em relação a um outro. Helena é o referencial harmônico que concilia interesses tão diversos como o de Aquiles e Agamêmnon. A ofensa sofrida por Menelau diz respeito a todos aqueles que se reconheciam numa origem comum. Por isso, a noção de “identidade nacional” estava vinculada a um laço federativo e de solidariedade entre centenas de cidades-estados autônomas e independentes que se reconheciam como gregas. Em um nível ainda mais profundo, o sentido de pátria se restringia ao âmbito estrito da cidade. O universo urbano se distinguia do resto do mundo, tido como natural (selvagem, rural, bárbaro). Por mais que a cidade não passasse de um ponto de intersecção de latifúndios, suas instituições públicas lhe conferiam um status de superação do tempo natural, regido pelo ciclo da agricultura. Como é demais conhecido, Aristóteles definia o “ser humano” – não qualquer ser humano, mas o cidadão – enquanto “animal político”, isto é, citadino. O que definia um cidadão do estrangeiro, e por extensão do servo e do escravo, era a sua polidez, no sentido atual que empregamos a esta palavra, que é metonímico – um material bruto depois de polido é um “material político”! Sem dúvida, urbanidade é ainda hoje sinônimo de civilizado, educado, cortês, afável, agradável, culto etc. Mas o que isto nos afeta? Hoje, pode se dizer, a maior importância da civilização grega é o conceito de democracia, embora suas diferenças com a democracia moderna sejam enormes. Fato inédito na Antiguidade, a polis de Atenas inventou o governo do povo (demos). Tomando por referência a democracia grega, cabe nos perguntar: em que consiste para nós o conceito de cidadania?

Todavia, não se situa na Grécia Antiga a inauguração da distinção público (a cidade) e privado (o mundo rural). Ela é bem mais antiga, data “oficialmente” de pelo menos o século XVIII a.C., tendo com marco um bloco de pedra de 2,25 metros de altura, encravado no meio da cidade, no templo do deus Sol, onde fora cinzelada uma coletânea de leis em inscrições em alfabeto cuniforme, provavelmente de origem suméria, conhecida por Estela ou Código de Hamurabi. Talvez, pela primeira vez, um rei condenava o poder dos mais fortes e se punha em favor dos mais fracos através de um sistema imparcial de justiça. Pela primeira vez, um legislador reconhecia o direito das mulheres e lhes dava garantias que deviam ser observadas pela sociedade. 

Da Babilônia e da Grécia, partiremos, nesta jornada pelos vestígios do tempo, a Roma. Segundo o pensador francês Henri Lefebvre, há uma certa permanência na civilização ocidental de uma forma lógica (Grécia) e uma forma jurídica (Roma). Se nossos conhecimentos em matéria jurídica não forem tão incipientes, arriscamos a dizer que a grande contribuição do direito romano foi a garantia do direito de apelação. E aqui vale a pena citar o texto de Paul Veyne:

Com relação à Antiguidade romana, a vida privada torna-se efetivamente um fator predominante da civilização, para não dizer o mais importante. A mais evidente prova disso é o eclipse da cidade diante do campo. Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos; agora se refugiava nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrava em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é domínio privado. (VEYNE).

(...)

Para os germanos – (...) – determina a posse essencialmente a conservação meticulosa e severa de objetos preciosos ou indispensáveis:joias, ferramentas, produtos comestíveis ou animais domésticos. Assim, assume proporções dramáticas ou roubo de um pote de mel cometido por um escravo na região da Angoulême no século VI. Homem teria sido imediatamente enforcado se um recluso , Cybard, não houvesse intervido em seu favor e salvado sua vida. Mais tarde, Teodulfo, bispo de Orléans, homem de civilização romana, durante uma viajem de missus dominicus [enviado real] que efetuou em Narbonnaise por volta de 798 queixou-se amargamente de ver o roubo punido com a morte e o homicídio com pagamento de uma soma em dinheiro. Era uma consequência inevitável da preferência de uma sociedade guerreira pelos bens pessoais. Para gente nos limites da sobrevivência ter importa mais que ser. Santo Ambrósio chamava essa atitude de avareza; Gregório de Tours, de rapacidade. Todavia, para essas águias de alto voo que eram os germanos errantes e triunfantes, a morte constituía a melhor maneira de marcar as fronteiras instransponíveis de seus bens privados. (VEYNE).

Este ensaio pretende contribuir de algum modo à atual questão relativa ao direito à cidade. Realmente, atual porque esta formulação compõe um tema central nos debates entre especialistas e gestores públicos perante um cenário do mundo cada vez mais urbanizado. Os problemas sociais, políticos e econômicos, que daí se originam, não são totalmente conhecidos ou previsíveis em toda sua extensão e consequência – a médio e longo prazo – pelo simples fato de serem inéditos. Mas em que medida esta formulação – “o direito à cidade” – se aplica e é concernente ou cabível? O que é um “direito à cidade”? Significa: o usufruto integral da cidade pelos seus habitantes? Um direito inalienável do cidadão? Logo, faculdade dos cidadãos? Mas, se a cidade é um espaço público, caberia reivindicá-la entre os direitos destes seus cidadãos? Tal proposição já não é em si mesma uma redundância? Por outro lado, reclamar um direito pela cidade já não pressupõe uma perda, por parte da sociedade civil, da própria cidade de que lhe é inerente; ou ainda, uma alienação do mencionado espaço público ou do direito de usufruto da cidade pelos seus cidadãos? Assim, o direito à cidade vem somar ao leque dos direitos civis e, como tal, de um reconhecimento legal de supostas “minorias” espoliadas da cidade e de seus “equipamentos urbanos”? A estes questionamentos, poder-se-iam acrescentar outros. Mas paremos por aqui. Estas perguntas, e outras mais possíveis, apenas demonstram o grau de dificuldade da proposição sobre um direito à cidade. A princípio, afastaremos uma distinção vulgar entre esfera pública e vida privada. Isto é, da abstração derivada supostamente de um espaço físico cindido entre “cidade” (res publica) e suas instâncias atinentes ao mundo doméstico – considerado este como um refúgio do lar, da casa ou moradia. Esta distinção pressupõe uma esfera pública definida por normas gerais que devem ser observadas por todos os indivíduos que compõem a sociedade civil e uma esfera privada, em que a vida privada é marcada por regras particulares ou a total ausência de regras, onde a liberdade e a intimidade dos indivíduos teriam lugar.

sábado, 1 de junho de 2024

A questão monárquica de Ricardo Reis

Ricardo Reis

Por G.Ã.P.

1. Narrativa: questões formais

Antes de entrar no assunto propriamente dito, cabe a nós realizar alguns apontamentos sobre a narrativa do romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago. Isso se justifica porque é praticamente impossível passar indiferente ao estilo narrativo único das obras de Saramago. Sem se aprofundar muito, no entanto, no aspecto puramente formal, percebe-se de imediato uma ruptura de cunho sintático com a diacrítica, principalmente, no que diz respeito à construção de períodos muito longos das orações, que obriga o leitor a se deter em cada vírgula, em cada ponto final, sem o que perderia toda a compreensão do texto e o efeito vertiginoso provocado pela leitura dos parágrafos. Nenhuma palavra, nenhuma sinalização é por acaso ou é desperdiçada. Outro recurso muito interessante é a introdução do diálogo dos personagens dentro destes longos períodos apenas marcando o início da fala com uma letra maiúscula, dispensando, portanto, as formas tradicionais de discurso direto e indireto e do uso do travessão para distinguir os personagens. Assim, o diálogo dos personagens parece se destacar do texto qual relevo na planície, isto é, sem apresentar ruptura no desenvolvimento da escrita. Muitas vezes, este diálogo se confunde com a própria descrição do narrador, que parece, tal como um personagem, presenciar as cenas descritas por ele mesmo; como se o narrador ora se apresentasse como um dos personagens, ora como um anônimo que vivencia a trama do livro. Isto cria um efeito de familiaridade muito grande entre o narrador e coisa narrada, que se percebe através da estruturação sintática, e que implode com a noção de tempo passado e presente. Outro dado que vale a pena ressaltar é a ausência de pontos de exclamação e interrogação, os quais estão subtendidos a partir da construção da fala dos personagens e do contexto. Além destes aspectos apontados, caberia alguma observação também com relação à disposição dos capítulos, que não recebem título ou numeração. Esse desenvolvimento estilístico da narrativa produz, paradoxalmente, uma atmosfera misteriosa e, às vezes, irremediavelmente sarcástica, que emerge da própria complexidade da criação literária. Quanto ao narrador, como já se afirmou, ele próprio um personagem, às vezes, oculto, às vezes, presente; é um narrador onisciente. Porém, não é um narrador neutro, mas, engajado. Este estilo literário inovador e, muitas vezes, difícil, caracteriza inexoravelmente a obra de Saramago. Tal estilo poderia ser definido como uma polifonia de múltiplas vozes apreendidas pelo autor que transcreve tudo aquilo que ouve num fluxo narrativo indeterminado. Todas estas características narrativas da obra de Saramago estão presentes no romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, porém, chama atenção, aqui, a quantidade de citações de autores e obras consagradas da literatura universal, denotando imenso eruditismo do autor.

Resumo

Em fins de 1935, Ricardo Reis retorna a Portugal depois de uma estada de 17 anos no Brasil. Em Lisboa, hospeda-se no Hotel Bragança, onde trava relações com hóspedes, em particular, a jovem Marcenda, e funcionários do hotel, inclusive, a camareira Lídia, com quem mantém um caso amoroso. Paralelamente, Ricardo Reis é vigiado pela polícia política (PVDE/PIDE).  A certa altura, Ricardo Reis reencontra Fernando Pessoa como um fantasma. O encontro entre os dois dá ensejo para uma reflexão sobre muitos aspectos políticos envolvendo Portugal, tanto em relação a questões internas como internacionais. A partir disso, Saramago desenvolve um romance histórico e, ao mesmo tempo, fantástico, no qual transparece como pano de fundo uma contundente crítica política e social do contexto de Portugal da época salazarista.

Ricardo Reis e Fernando Pessoa: monarquistas?

O personagem Ricardo Reis, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, retorna a Portugal por ocasião do falecimento de seu autor, Fernando Pessoa. “Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, muitas mortes, muita gente presa, temi que a situação viesse a piorar, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me, pronunciei-me, como disse o outro”. Trata-se do levante revolucionário, em solo brasileiro, ocorrido no ano de 1935, denominado Intentona Comunista.  Essa explicação é dada pelo próprio Ricardo Reis a Fernando Pessoa quando de seu primeiro encontro no Hotel de Bragança. Evidentemente, não o Fernando Pessoa de carne e osso e, sim, o fantasma de Fernando Pessoa (“É uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver nele”). Neste estranho encontro, Fernando Pessoa parece consentir com a última explicação de Ricardo Reis: “Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também”. Fernando Pessoa se refere ao conturbado período das primeiras décadas do século XX por que passava Portugal e que levou, em 1908, ao regicídio do rei D. Carlos, atentado cometido pela organização revolucionária Carbonária, além da instauração da República Portuguesa, em 1910. No ano de 1919, entretanto, ocorre uma contrarrevolução monarquista que redundou em fracasso: “Parti para o Brasil em mil novecentos e dezanove, no ano em que se restaurou a monarquia no Norte” (Ricardo Reis). Tal pretexto, em se tratando de Ricardo Reis, é bastante concernente, já que na biografia deste heterônimo Fernando Pessoa o descreve como médico e monarquista. Sobre a Intentona Comunista, Fernando Pessoa teria se interado do episódio pelos jornais e indaga: “Lembro-me de ler, nos meus últimos dias, umas notícias sobre essa revolução, foi uma coisa de bolchevistas, creio”. Aqui então se trava um interessante diálogo entre os dois personagens na qual a Intentona Comunista serve de mote para Fernando Pessoa introduz en passant a situação política em Portugal:

Sim, foi coisa de bolchevistas, uns sargentos, uns soldados, mas os que não morreram foram presos, em dois ou três dias acabou-se tudo, O susto foi grande, Foi, Aqui em Portugal também tem havido umas revoluções, Chegaram-me lá as notícias, Você continua monárquico, Continuo, Sem rei, Pode-se ser monárquico e não querer um rei, É esse o seu caso, É, Boa contradição, Não é pior que outras em que tenho vivido, Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade, Precisamente, Ainda me lembro de quem você é, É natural.

Os antecedentes que levaram a queda da monarquia em Portugal têm início na humilhante aceitação do governo português ao ultimato inglês envolvendo a questão do episódio conhecido como mapa cor-de-rosa de 1890. Questão essa que envolvia a retirada imediata de tropas portuguesas das colônias africanas Angola e Moçambique. Tal episódio vexatório, somando-se à proclamação da república no Brasil, desatando o último e tênue laço de Portugal com a ex-colônia americana, marcava a decadência da expansão ultramarina que fora cantada por Luis Vaz de Camões no século XVI.

Em 1933, Hitler chega ao poder e, em 1939, tem inicio a Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas intentaram expandir seu império através de um projeto colonial justificado pela necessidade do espaço vital. Mas ainda estamos, no romance, nos anos 1936, início da Guerra Civil Espanhola, que levaria o general Franco ao poder e seria um balão de ensaio para a segunda guerra.

Neste contexto, é evidente que Portugal há muito perdera toda importância no cenário geopolítico que marcou o neocolonialismo do século XIX e meados do XX. Do ponto de vista do nacionalismo lusitano, um possível Império Português deveria assumir novos contornos, ainda que simbólicos.  O Império Português devia assumir novos contornos, ainda que simbólicos.

A questão da monarquia então era um tema caro aos poetas Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Pois, embora Fernando Pessoa não se notabilize por ser um monarquista declarado, sua missão poética, que visava suplantar o até então maior poeta português, Camões, e sua obra monumental Os Lusíadas, é um “megalomaníaco” projeto monarquista.

No romance esta questão, a questão é posta por Saramago nos seguintes termos:

...haja em vista o mapa cor-de-rosa, tivesse ele vingado, como era de justiça, e hoje ninguém nos poria o pé adiante, de Angola à Contra-Costa tudo seria caminho chão e bandeira portuguesa. E foram os ingleses que nos rasteiraram, pérfida Albion, como é costume deles, duvida-se mesmo que sejam capazes doutros comportamentos, está-lhes no vício, não há povo no mundo que não tenha razões de queixa. Quando Fernando Pessoa aí vier, não há-de Ricardo Reis esquecer-se de lhe apresentar o interessante problema que é o da necessidade ou não necessidade das colônias, não do ponto de vista do Lloyd George, tão preocupado com a maneira de calar a Alemanha dando-lhe o que a outros custou tanto a ganhar, mas do seu próprio, dele, Pessoa, profético, sobre o advento do Quinto Império para que estamos fadados, e como resolverá, por um lado, a contradição, que é sua, de não precisar Portugal de colônias para aquele imperial destino, mas de sem elas se diminuir perante si mesmo e ante o mundo, material como moralmente, e, por outro lado, a hipótese de virem a ser entregues à Alemanha colônias nossas, e à Itália, como anda a propor Lloyd George, que Quinto Império será então esse, esbulhados, enganados, quem nos irá reconhecer como imperadores, se estamos feitos Senhor da Cana Verde, povo de dores, estendendo as mãos, que bastou atar frouxamente, verdadeira prisão é aceitar estar preso, as mãos humilhadas para o bodo do século, que por enquanto ainda não nos deixou morrer.

Portanto, o projeto político, inspirador de Mensagem, de Fernando Pessoa ele mesmo, é o “Quinto Império”. Este império não seria um reino material, de grande extensão geográfica, colonial, etc., mas um Império Espiritual, moral. Para tanto, Fernando Pessoa lançaria mão do sebastianismo, a espera messiânica por um D. Sebastião:

D. SEBASTIÃO

REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?

Todavia, este projeto é posto em dúvida por Saramago, quando lança a hipótese de que Fernando Pessoa titubearia na sua sustentação política do Quinto Império:

Talvez Fernando Pessoa lhe responda, como outras vezes, Você bem sabe que eu não tenho princípios, hoje defendo uma coisa, amanhã outra, não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei, talvez acrescente, porventura justificando-se, Para mim deixou de haver hoje e amanhã, como é que quer que eu ainda acredite, ou espere que os outros possam acreditar, e se acreditarem, pergunto eu, saberão verdadeiramente em que acreditam, saberão, se o Quinto Império foi em mim vaguidade, como pode ter-se transformado em certeza vossa, afinal, acreditaram tão facilmente no que eu disse, e mais sou esta dúvida que nunca disfarcei, melhor teria feito afinal se me tivesse calado (...)

O mesmo se dá com Ricardo Reis.

No diálogo citado acima, entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, Pessoa interpela seu heterônimo: Você continua monárquico, sem rei? Contradizendo a expectativa de um monarquista autêntico, a resposta de Ricardo Reis é categórica: Pode-se ser monárquico e não querer um rei. Ricardo Reis é, talvez, o heterônimo menos politizado de Fernando Pessoa, ou melhor, aquele que submete a política a sua visão idiossincrática de mundo e altamente subjetiva. No poema “Sê Rei de Ti Próprio”, das Odes, de Ricardo Reis, esta contradição parece ser resolvida no plano do individualismo.

Sê Rei de Ti Próprio

Não tenhas nada nas mãos

Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem

Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos

Nada te cairá.

Que trono te querem dar

Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem

Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem

Da estatura da sombra

Que serás quando fores

Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,

Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica

E sê rei de ti próprio.

O monarquista Ricardo Reis é um monarquista às avessas, ou ainda, um inimigo do rei, um anarquista individualista. Nota-se que até mesmo no nome do heterônimo, além da aliteração do fonema “r”, o substantivo “rei” está no plural, o que dá margem a muitas interpretações. Há alguma coisa de shakespeariano no nome deste heterônimo. O Rei Ricardo III se transforma em Ricardo Reis; não apenas um rei, mas muitos. Ora, o que caracteriza o regime monárquico é o poder político personificado em uma única pessoa, o rei ou a rainha. O poder de muitos é a chamada democracia. Mas uma democracia não comporta, teoricamente, um governo de muitos reis e, sim, de cidadãos que delegam sua participação política a representantes. Um governo de muitos reis é uma contradição e só pode ser suposto no plano da fantasia. Tal como Fernando Pessoa, o projeto político de Ricardo Reis também só se realiza na estância da espiritualidade. Ou seja, é muito mais uma crítica do que um projeto real.

Conclusão

Saramago geralmente utiliza-se de uma estratégia em seus romances em que aparentemente desvia o foco de sua visão pessoal de mundo, principalmente no que tange questões políticas, para sub-repticiamente emergi-la no contexto de sua obra. Neste sentido, o autor constrói um enredo, sobre a vida cotidiana, muitas vezes de caráter sobrenatural e aparentemente descompromissado politicamente, para trafegar na superfície de um fundo realista, de onde, no entrecruzamento destes planos, emerge uma denúncia contundente realidade social.

No romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Saramago cria dois personagens que são baseados na figura real do poeta Fernando Pessoa e de seu heterônimo Ricardo Reis. Curiosamente, há um movimento de despersonalização, através da narrativa polifônica de Saramago, em que personagem e autor se misturam num incessante jogo de heteronímia. Ou seja, a autoria é totalmente alienada, ficando implícito se, no romance, o autor é um heterônimo dos personagens ou vice-versa. O grau de impessoalidade, que se desdobra em múltiplas personalidades, característica da obra pessoana, é levado ao extremo e explorado por Saramago com precisão no romance. Neste sentido, Saramago cria um ardil através da figura do fantasma de Fernando Pessoa, que bem poderia ser uma alucinação de Ricardo Reis (“Terá sido um sonho”), transformado Fernando Pessoa em heterônimo de seu heterônimo Ricardo Reis. No fundo, Saramago encarna, em sua crítica social, tanto Fernando Pessoa como Ricardo Reis, ao dar voz dissonante aos dois poetas. Tal estratégia induz uma questão: por que Saramago se serve justamente de Fernando Pessoa e Ricardo Reis para denunciar o regime fascista salazarista? Afinal, ambos acreditavam em um projeto monarquista, anacrônico e utópico. Eis a ironia de Saramago. Ao criar dois heterônimos com concepções políticas completamente distintas da do autor, Saramago passa a ter um álibi para defender, em tom de denúncia, suas convicções políticas, acima de qualquer suspeita. Daí não ser por acaso a fuga de Ricardo Reis do Brasil. A certa altura do romance, Saramago escreve: “Fernando Pessoa explicou, É o comunismo, não tarda”.

Para concluir, é por meio da ficção que Saramago demonstra todo seu engajamento político e sua percepção social. O projeto utópico de Fernando Pessoa e a indiferença de Ricardo Reis, monarquista contemplativo e diletante, converte-se, na obra de Saramago, em uma dura crítica aos estados totalitários, dentre eles Portugal, que levariam o mundo à catástrofe da segunda grande guerra.

Bibliografia

PESSOA, Fernando, “Mensagem”, Editora 7 Letras: Rio de Janeiro, 2008.

PESSOA, Fernando, “Odes de Ricardo Reis”, Coleção L&PM Pocket: São Paulo, 2006.

SARAMAGO, José, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Editorial Caminho: Lisboa, 1985.