sábado, 1 de setembro de 2018

No Meio do Caminho - análise - Carlos Drummond de Andrade

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)


Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

Por que nos encantamos tanto com o poema “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade? Afinal, uma pedra no meio do caminho é algo tão banal que sequer deveríamos dar atenção, não é.

Primeiro, porque há algo de cômico em um poema dedicado a uma pedra. Segundo, porque, por trás da aparente superficialidade temática do poema, deve haver algum sentido universal que, sem sabermos, nos toca profundamente. Daí o seu encanto.

De fato, uma pedra no caminho de alguma forma nos paralisa; pois, não deveríamos esperar encontrar nada no percurso que pudesse perturbar nossa jornada, onde o transito deveria fluir (livremente).

Uma pedra no meio do caminho, portanto, é algo que está na ordem do imprevisível. E a nossa vida é cheia de imprevistos.

Ao ler o poema de Drummond é exatamente esta a sensação que temos: uma inquietação diante de uma interrupção não prevista.

Caminho, em sua definição mais elementar, pressupõe um percurso que interliga um lugar de saída e outro de chegada. Pressupõe também o ato de caminhar e chegar a um destino. Qualquer obstrução no meio do caminho implica um transtorno, um abalo, uma desordem, em nossas expectativas, enfim, implica uma demora.

Mas Drummond não nos esclarece em nada como é o caminho – se é de terra, asfalto, pedra, se é uma trilha, uma estrada, longo, curto etc. – nem como é a pedra – se é pequena, média, ou grande, etc.

Estes elementos centrais do poema são totalmente imprecisos. A única exatidão possível, que podemos ter, é o “meio”. Nada sabemos como é a pedra ou o caminho, mas temos uma certeza, o meio: uma medida que pode ser estabelecida, inclusive, numericamente.

Justamente quando julgávamos deter desta certeza, o meio, eis que essa noção também nos escapa, pois não sabemos se o meio está entre o ponto de partida e o de chegada ou se está entre as margens do caminho.

Meio pode ser também um modo de falar, e não uma medida exata, um ponto equidistante entre polos extremos.

Perante tanta indefinição, o poema nos aparece como um enigma.

Aquela simples pedra no meio do caminho de repente se revela bem mais complexa do parecia à primeira vista.

Por isso, o poema tem sido comumente interpretado como uma metáfora para os obstáculos que surgem na vida de todos nós. Embora haja alguma verdade nessa interpretação, nenhum elemento no poema sugere que ela é correta. Ademais, eu, particularmente, não posso acreditar numa interpretação tão extemporânea e fácil, em se tratando de um dos poemas mais emblemáticos da antologia brasileira. Se a vida é cheia de obstáculos, então qual é o seu sentido no poema?

Diante disso, tentarei trazer aqui uma análise e interpretação alternativa, sem, no entanto, prescindir totalmente dessa que é a solução mais fácil.

Realmente, o poema tem uma aparente simplicidade e é por ela que devemos começar.

A princípio, poderíamos reduzir o poema a duas únicas frases:

“No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”.

Surpreendentemente, não há nada de poético nessa passagem.

Há sem dúvida uma certa irreverência no poema de Drummond. Não são os grandes temas, heroico, trágico, sublime ou estético, que são retratados pelo poeta, mas um acontecimento inesquecível, a saber, uma pedra no meio do caminho!

Drummond parece estar zombando de nós.

Até mesmo na escolha do léxico, como em “retinas tão fatigadas”, há um certo gracejo. Pois para que complicar se ele poderia ter escrito a expressão muito mais natural “vistas cansadas”?

Enquanto quebramos a cabeça tentando entender o que Drummond pretendia com este poema e lhe conferir uma interpretação, digamos assim, mais edificante, o poeta parece estar rindo às nossas costas.

Mas, por outro lado, para além do tom de galhofa, Drummond lança mão de uma estratégia bastante interessante. Não é o sentido literal que dá força ao poema, mas a sua forma, que potencializa a carga poética e o eleva a um nível de riqueza de significados que nos retira da mesmice dos chavões e clichês poéticos para nos lançar a um nível de percepção incomum.

Neste sentido, apesar do modernismo, avesso a convenções da tradição literária, o aspecto formal de “No meio do caminho” é tão complexo quanto o de um soneto, e merece uma atenção especial.

Portanto, é a forma do poema, ou seu invólucro, que nos dará as pistas para uma análise dos significados possíveis do poema.

Assim sendo, a análise será dividida em quatro etapas. A primeira consiste numa apresentação convencional dos elementos formais do poema. A segunda, numa experimentação e manipulação dos versos do poema, tal como barro nas mãos do oleiro. A terceira, numa análise semântica. A quarta, numa síntese dos elementos analíticos como um todo. E, enfim, a conclusão. 

1º ETAPA

Título:

“No meio do caminho” – Anuncia um acontecimento: a pedra.

Duas estrofes:

(Quarteto)
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Sextilha)
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Versos (10):

1. No meio do caminho tinha uma pedra
2. tinha uma pedra no meio do caminho
3. tinha uma pedra
4. no meio do caminho tinha uma pedra.

5. Nunca me esquecerei desse acontecimento
6. na vida de minhas retinas tão fatigadas.
7. Nunca me esquecerei que no meio do caminho
8. tinha uma pedra
9. tinha uma pedra no meio do caminho
10. no meio do caminho tinha uma pedra.

Sílabas poética:

No-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha u-ma pe-dra (10)
ti-nha u-ma-pe-dra-no-meio-do-ca-mi-nho (10)
ti-nha u-ma-pe-dra (4)
no-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha u-ma pe-dra. (10)

Nun-ca-me es-que-ce-rei-des-se a-com-te-ci-men-to (12)
na-vi-da-de-mi-nhas-re-ti-nas-tão-fa-ti-ga-das. (13)
Nun-ca-me es-que-ce-rei-que-no-meio-do-ca-mi-nho (12)
ti-nha u-ma-pe-dra (4)
ti-nha u-ma-pe-dra-no-meio-do-ca-mi-nho (10)
no-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha u-ma pe-dra. (10)

Sílabas tônicas:

No MEIo do caMInho TInha Uma PEdra
TInha Uma PEdra no MEIo do caMInho
TInha Uma PEdra
no MEIo do caMInho TInha Uma PEdra.

NUNca me esqueceREI DESse aconteciMENto
na VIda de MInhas reTInas TÃO fatiGAdas.
NUNca me esqueceREI que no MEIo do caMInho
TInha Uma PEdra
TInha Uma PEdra no MEIo do caMInho
no MEIo do caMInho TInha Uma PEdra.

Destaque para aliteração nos fonemas "m" e "nh" (nasais), nas sílabas tônicas mei- e mi- e nas átonas -nho e -nha, e o fonema "p" (plosiva), na sílaba tônica pe-

E para a ocorrência de aliteração da vogal fechada "i" em mi-, ti-, vi-, mi-, ti- e -ti- e para a vogal aberta "é" em pe-

Que dão ideia de movimento e interrupção (pedra)

Rimas:

ABAA
No meio do caminho tinha uma pedra (A)
tinha uma pedra no meio do caminho (B)
tinha uma pedra (A)
no meio do caminho tinha uma pedra. (A)

B-BABA
Nunca me esquecerei desse acontecimento (B)
na vida de minhas retinas tão fatigadas. (verso branco)
Nunca me esquecerei que no meio do caminho (B)
tinha uma pedra (A)
tinha uma pedra no meio do caminho (B)
no meio do caminho tinha uma pedra. (A)

2º. ETAPA

Nesta segunda etapa, o poema será dividido em três momentos:

a) Momento da objetividade: no meio do caminho tinha uma pedra.

b) Momento da subjetividade: Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.

c) Momento da objetividade e da subjetividade: poema inteiro.

a) Momento da objetividade

A primeira coisa que se nota neste momento é a repetição exaustiva do verso no meio do caminho tinha uma pedra, que se desdobra através de inversões numa estrutura cíclica ou espiral.

Assim, como um rocambole, é possível desenrolar estes versos da seguinte forma:

(1ª. estrofe) No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.

(2º. Estrofe) ...no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

(1ª. e 2º. Estrofes) No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra (...) no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.


No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra (...) no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.


(vermelhoazulverde – preto – verdeazulvermelho)

Nota-se aqui, apenas de passagem, que “tinha uma pedra” (em preto) está bem no meio de um continuum que pode e sugere não ter fim. Ao mesmo tempo, é possível inferir a estrutura circular da Mandala.

Se, agora, tomássemos os três elementos principais (meio, caminho e pedra), deste primeiro momento, e pontuássemos como se fossem tons musicais, dentro de um campo harmônico, estabelecendo uma alternância de arpejos, ascendente (grave para o agudo) e descendente (agudo para o grave), teríamos a seguinte sucessão rítmica:

No meio˅ do caminho˄ tinha uma pedra˅ tinha uma pedra˅
no meio˅ do caminho˄ tinha uma pedra˅ no meio˅
do caminho˄ tinha uma pedra˅. (...)
no meio˅ do caminho˄ tinha uma pedra˅ tinha uma pedra˅
no meio˅ do caminho˄ no meio˅ do caminho˄ tinha uma pedra˅.

˅˄˅˅ ˅˄˅˅ ˄˅
˅˄˅˅ ˅˄˅˄˅

˅˄˅˅ ˅˄˅˅ ˄˅ ˅˄˅˅ ˅˄˅˄˅

Nota-se um padrão rítmico em três momentos (azul) e um desvio em dois outros momentos (preto). O padrão ˄˅ está também no meio de uma sucessão de oito tons, padronizada, e de outra de nove tons, de ritmos diferentes.

Se computássemos a ocorrência em que aparecem os três termos no poema, o resultado será:

Meio = 6
Pedra = 7 (cabalístico)
Caminho = 6

Meio, pedra, caminho = 19

1 + 9 = 10 (coincide com dez versos)

Pedra = 7 = 3 + 1 + 3

Nota-se o número 1 no meio.

b) Momento da subjetividade

Neste momento, há também repetição de “nunca me esquecerei” e um momento central:

Nunca me esquecerei
desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei...

Nota-se, também de passagem, que “desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas” está no meio das duas ocorrências de “nunca me esquecerei”.

c) Momento da objetividade e da subjetividade

Intercalando-se os dois momentos se obtêm esta estrutura:

Objetividade – Subjetividade - Objetividade

1. No meio do caminho tinha uma pedra
2. tinha uma pedra no meio do caminho
3. tinha uma pedra
4. no meio do caminho tinha uma pedra.

5. Nunca me esquecerei
(meio) desse acontecimento 6. na vida de minhas retinas tão fatigadas.
7. Nunca me esquecerei
(...)
...no meio do caminho
8. tinha uma pedra
9. tinha uma pedra no meio do caminho
10. no meio do caminho tinha uma pedra.

Ou ainda:

1. No meio do caminho tinha uma pedra
2. tinha uma pedra no meio do caminho
3. tinha uma pedra
4. no meio do caminho tinha uma pedra.

Meio: Eu lírico poético (Sujetividade)

1. ...no meio do caminho
2. tinha uma pedra
3. tinha uma pedra no meio do caminho
4. no meio do caminho tinha uma pedra.

É possível ainda pensarmos num verso oculto ou três estrofes possíveis em busca da simetria:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra (verso oculto)
(meio) Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Assim:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra (Eu lírico) no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Três estrofes)
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
(meio) na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que

no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

O que nos pode sugerir na divisão irregular entre duas estrofes (quarteto e sextilha) uma pausa, ou melhor, um momento de silêncio, antecipando o momento da subjetividade.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
(SILÊNCIO)
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Para finalizar, a pedra no meio do caminho não é vista pelo poeta como um fato corriqueiro, da vida cotidiana, mas como um “acontecimento” inesquecível e de dimensões extraordinárias. Este acontecimento inesquecível e extraordinário, a pedra no meio do caminho, aparece na vida das retinas fatigadas do poeta. O que podemos supor, de um lado, que tudo não passou de ilusão ou devaneio poético. Ou, por outro, de que há um grau de impessoalidade enorme ao se transferir impressões subjetivas da sensação visual para um órgão da anatomia humana, como se este fosse um objeto (retina) separado e “estranho” ao próprio sujeito, justamente no momento de maior subjetividade do poema.

3ª. ETAPA

É interessante destacar a escolha lexical pelo poeta, que não é fortuita.

Em “no meio do caminho tinha uma pedra”, Drummond se utiliza do termo coloquial “tinha” para se referir que existia (ou havia) uma pedra no meio do caminho.

Em sentido oposto, no sexto verso, o poeta se vale de uma palavra mais rebuscada, dentro da norma culta, “fatigadas”, ao invés do usual cansadas.

Também é interessante notar o desvio na expressão “minhas retinas”, ao invés de “minhas vistas”, caracterizando-se um caso de sinédoque, quando se toma a parte pelo todo.

“Retina” (do latim retina, “rede”) é a membrana interna do globo ocular onde, como numa máquina fotográfica, os sinais visuais são captados invertidos (“de ponta-cabeça”), antes de serem decodificados pelo cérebro.

Além disso, é possível pensar em duas figuras de pensamento no verso “na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Hipérbole – quando se aumenta ou diminui a realidade das coisas (retina ao invés de olhos) – e prosopopeia – quando se dá voz a animais ou vida a objetos inanimados (vida das retinas fatigadas). Ora, a vida não está nas retinas, que não é independente do todo, e, sim, no organismo inteiro.

4ª. ETAPA

"Tudo que era sólido desmancha no ar" (Karl Marx)

Ao analisarmos e estabelecermos relações entre as etapas acima, percebemos no poema sempre uma frustração na busca pela simetria ou harmonia, interrompida por lapsos, desvios ou dissonâncias. Assim, o título, que, por meio de uma presença, anuncia uma ausência; duas estrofes irregulares (quarteto e sextilha ao invés de duas quintilhas); versos com sílabas em numeração par (4, 10 e 12) e um verso, o sexto, em numeração ímpar (13 sílabas); rimas que não são senão repetição de palavras (pedra-pedra; caminho-caminho), uma má rima (-nho/-nto) e um verso branco; um verso quebrado, “tinha uma pedra”, no meio de um continuum que segue um padrão alternado; o deslocamento e contraste semântico da maneira usual de falar ou escrever, entre a norma culta e a coloquial; o mundo invertido na percepção do poeta que se aliena de si mesmo em seu próprio corpo, o qual lhe aparece como outro; a realidade objetiva posta em xeque pela subjetividade; etc.

Neste sentido, parece haver sempre no poema um jogo de oposições, no qual oscila, num vai e vem incessante e repetitivo, deixando-se sempre alguma sobra ou coisa fora de lugar:

- ausência-presença
- concreto-abstrato
- microcosmo-macrocosmo
- reta-círculo
- cheio-vazio
- fluidez-obstrução
- imprecisão-exatidão
- certeza-incerteza
- previsível-imprevisível
- pequeno-grande
- infinito-finito
- comum-extraordinário
- par-ímpar
- exterior-interior
- igual-diferente
- harmonia-dissonância
- objetividade-subjetividade
- sujeito-objeto
- norma culta (padrão)-linguagem coloquial
Etc.

Este jogo de oposição nos dá conta de que estamos diante de uma realidade altamente fluida, movediça, em constante transformação, o que parece estar de acordo com o que vimos mais acima: nada podemos saber ao certo neste mundo difuso, só temos uma única certeza: o meio. O resto está fora de lugar.

O problema é que não sabemos onde é exatamente o meio. O que nos remete à questão colocada por Nicolau de Cusa, na Idade Média, e retomada por Blaise Pascal, sobre o centro do Universo (infinito) estar em toda a parte e a circunferência em nenhuma.

Assim, o meio é uma presença tão indefinida quanto aquilo que está em seu lugar. O meio é, rigorosamente, uma ausência, está em todo lugar e, ao mesmo tempo, em nenhum.

No poema, a ausência do meio é o meio pelo qual se manifesta a verdadeira presença: a pedra.

A nossa análise, entretanto, demonstrou a pedra e o Eu lírico poético ambos situados bem no centro ou no meio do poema. Objetivamente, a pedra; subjetivamente, o Eu lírico. Conclui-se daí que o Eu lírico e a pedra coincidem no meio, o que nos remete a uma identificação entre ambos, pelo menos em relação à posição.

Geometricamente, o Eu lírico é a pedra (refletida na retina) e vice-versa – já que dois corpos, segundo as leis da física, não ocupam o mesmo lugar no espaço.

Há, contudo, um terceiro fator complicador implícito nesse meio físico: o centro realmente subjetivo do Eu lírico identificável apenas em “nunca me esquecerei”, e que aparece entre as duas objetividades: realidade (objetiva) e retina (subjetiva). Existe uma pedra no meio do caminho e existe a imagem refletida e invertida dessa pedra no meio do caminho numa retina, de onde o Eu lírico assiste a um acontecimento, para ele, inesquecível e, daí, extraordinário.

O Eu lírico é esta tênue camada definida por uma negatividade: nunca me esquecerei.

Recurso bastante semelhante à dúvida metódica de Descartes, pela qual, por meio da redução ou negação, se descobre o cogito, isto é, ‘penso, logo existo”, no poema de Drummond, o Eu lírico é a única certeza: esquecer é desaparecer.

Altamente reflexivo, diante de uma realidade passageira, na qual se coloca uma interrogação de ordem intelectual, o Eu lírico se afirma pela memória em um mundo instável e volátil.

O que nos faz retomar a pergunta central: o que é a pedra? A pedra existe?

Tal como a pedra filosofal dos alquimistas, que podia transformar qualquer metal em ouro, a pedra de Drummond transforma um fato corriqueiro em um problema ontológico. Pois bem, a pedra é um ardil para se tocar nos problemas da existência. (Segundo Carl Gustav Jung, em Psicologia e Religião: "Não existe praticamente qualquer dúvida de que não poucos, entre aqueles que a buscavam, se convenceram de que a natureza da pedra é o si mesmo humano. (...) A pedra era um mundus minor como o próprio ser humano, ou seja, de certo modo, uma imagem interior do cosmo que, entretanto, se estende não em uma amplidão imensurável, e sim em uma profundidade imensurável, isto é, do pequeno ao infinitamente pequeno"). O infinitamente pequeno é incomensuravelmente grande, porque infinito: o ser. Damos voltas e mais voltas e não saímos do mesmo lugar: nós mesmos. 

Então, o que é a existência?

Vimos mais acima que a pedra era o imprevisto, o inesperado.

Entretanto, a pedra sempre se repete ao longo do meio do caminho, que é infinito.

Ler o poema é caminhar por esse infinito fadado a repetir imprevistos, que, afinal de contas, são bastante previsíveis.

Portanto, imprevistos sempre acontecem. Talvez, nossa única certeza objetiva: esperamos sempre o inesperado (o futuro).

Todavia, ainda temos um problema. A pedra não é apenas um imprevisto dentre milhares de outros, e, sim, um acontecimento extraordinário, que traz marcas inesquecíveis ao poeta, que, a julgar pelas retinas cansadas, é uma pessoa experiente e que já viu muitas coisas no mundo.

Ora, um acontecimento extraordinário e inesquecível não pode ser tratado como um simples imprevisto do cotidiano. Um acontecimento extraordinário é um acontecimento que raramente acontece.

O que lhe confere um caráter extraordinário à pedra é que a pedra é singularmente uma pedra.

E cada pedra que surge no caminho é tão extraordinária quanto à primeira.

A pedra é a pedra é, logicamente, a mesma e, ao mesmo tempo, outra. O um que é múltiplo.

Isso faz da pedra, a qual nunca deixou de ser uma pedra, uma outra coisa que não uma pedra.

Pedra é pedra, tautologia que na sua igualdade repete e produz o diferente (Ver nossa análise de “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa).

Sem dúvida, um simples acontecimento é tão prenhe de significações que pode nos provocar uma meditação tão profunda sobre nós mesmos que só é compreensível, não por meio de palavras ou pela razão, mas somente pelo silêncio.

Eis o ponto central do poema. A existência é tão extraordinária que não temos respostas sobre a sua questão. Logo, é o silêncio que define a existência.

CONCLUSÃO

Apesar de o tema vulgar, ao mesmo tempo, tratado com certa eloquência, ou mesmo o tom de galhofa modernista do poema, avesso às convenções literárias tradicionais, e do qual não escapam da crítica nem o poeta nem o ofício de escritor de poesia, Drummond deixa em aberto uma liberdade infinita de interpretação no poema, contra tudo o que ensina a crítica literária.

O poema poder ser uma simples piada e nesse caso Drummond nos prega uma peça.

Podemos rir e virar a página. Mas a piada pode ficar sem graça e nos conduzir a uma reflexão mais profunda.

Heidegger indaga sobre o ser do ente pedra, ao qual o coloca imediatamente diante de uma questão de natureza muito mais radical: o que é o ser que questiona o ser do mundo? Ou melhor, o que é o dasein (ser-aí, pre-sença, ser-no-mundo, ser humano)? O filósofo da floresta negra responde: tempo.

Mas, para mim, o poeta trata das dificuldades do verdadeiro amor em se realizar e, assim, eu poderia repetir Shakespeare:

for aught that I could ever read,
Could ever hear by tale or history,
The course of true love never did run smooth;

“Em todas as histórias e romances que eu pudesse ter ouvido me contarem, a trajetória de um amor verdadeiro nunca transcorreu em caminhos suaves” (Trad.: Beatriz Viégas-Faria).

Pois bem, a pedra é o ponto de partida para o poeta falar sobre uma questão central: a existência.

É disso de que se trata. O poema fala da existência, dos ciclos da vida, das contradições (noite e dia, quente e frio, harmonia e dissonância etc.), de como algo vulgar é tão repleto de significados e remete a indagações que não podem ser respondidas nunca: o mistério da vida, o eterno retorno, as origens, o ser, o amor etc.

Na vida, nossos sonhos nunca coincidem com a realidade e, no entanto, a vida e realidade coincidem num sonho, extraordinário. Além disso, não podemos ter muitas expectativas grandiosas ou gloriosas sobre os acontecimentos da vida. O cotidiano é sempre medíocre, mesquinho, irrisório; mas há sempre beleza nele, a paixão e o amor, por exemplo. Neste sentido, o escárnio de Drummond é o mesmo de Oscar Wilde: “A vida é muito importante para ser levada a sério”. Esta é a força do poema.

A perplexidade diante do Universo, a falta de sentido da vida, a condição miserável da existência, os imprevistos do cotidiano, os obstáculos do amor etc., só fazem sentidos em nossas lembranças.

Uma pedra é apenas uma pedra e o quanto isso pode nos ensinar.

Não há de se ter grandes expectativas e buscar um sentido nas alturas de uma metafísica inalcançável em torno da existência. A vida é como uma pedra no meio do caminho, sem explicações e sem porquê, e isso é o que é de fato extraordinário e inesquecível.

Eis a sua ridícula verdade.


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Jean Pires é autor:








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