Mostrando postagens com marcador língua portuguesa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador língua portuguesa. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Conversa Afiadíssima e gênero textual

Até bem pouco tempo atrás, a internet era uma fonte bem pouco confiável de conhecimento e informação. Todavia, a imprensa convencional não oferecia alternativa satisfatória, dada a parcialidade dos órgãos de imprensa, dominados pelos monopólios de mídia. Na verdade, tais órgãos atuam sempre politicamente, visando mobilizar a opinião pública em geral na defesa dos interesses particulares – nunca expressos – das oligarquias representadas por estas grandes empresas.

Foto do Paulo Henrique Amorim

Ao conhecer o blog Conversa Afiada, percebi que havia ocorrido uma drástica mudança no conteúdo veiculado pela internet: um surpreendente e repentino salto de qualidade. O Conversa Afiada me levou a conhecer outros blogs, todos excelentes, como o Tijolaço, o Viomundo, entre outros, não necessariamente jornalísticos, mas relacionados à literatura, música, ciência etc. E a leitura assídua desses blogs me incentivou a fazer o Verso, Prosa & Rock’n’Roll. Não é à toa que Fernando Brito chamou Paulo Henrique Amorim de patrono da blogosfera.

A crítica do PH, o célebre e ansioso blogueiro, à imprensa merece uma reflexão, dentro da teoria da enunciação, pois o jornalismo se configura como um dos diversos gêneros discursivos. A teoria da crítica textual pressupõe a noção chave de “gênero”, abordado tanto por Mikhail Bakhtin como Luiz Antônio Marcuschi. Evidentemente, a importância do conceito ultrapassa o âmbito literário, pois, segundo Bakhtin, “entende-se por gênero não no sentido formalista, mas como zona e campo da percepção de valores e da representação do mundo” (BAKHTIN, p. 418). Portanto, o gênero é uma produção específica de comunicação, anterior ao diálogo e condicionada política, histórica e socialmente. Sendo produto de cultura, os gêneros são variados e abertos a inovações ou transformações, na mesma proporção em que se intensificam as relações dinâmicas e a complexidade social. Neste sentido, uma ou cada esfera específica produz um discurso com características próprias, o que implica as condições de uso e do contexto das diversas atividades humanas em jogo. A cristalização de um gênero discursivo se realiza a partir de enunciados concretos da prática em questão, supondo um estilo comum a uma determinada esfera e a estabilidade dos códigos da linguagem envolvidos. Por óbvio, um gênero não existe por si mesmo. As relações sociais pelas quais um gênero é produzido são bastante determinantes no processo de sua formação, muito embora estas também sejam condicionadas pelo gênero produzido.

Da inter-relação entre língua e práticas sociais é construído objetos do discurso que são ativados ou desativados ao longo do texto. Os discursos expressam uma intenção que nem sempre se mostra como tal e muitas vezes dissimula o próprio discurso. É exatamente o ponto fulcral do “gênero jornalístico”, cuja crítica é interditada por interesses ocultos dos atores envolvidos. Ora, o “gênero jornalístico” de modo algum busca criar uma representação linguística da realidade, ainda que se venda jornal sob a áurea da imparcialidade e objetividade. O jornalista é um funcionário, empregado por uma empresa, a quem deve satisfações; caso contrário, sua contratação seria inviabilizada ou a demissão seu destino mais provável. A relação patrão-empregado implica em coações avassaladoras e implícitas das quais acabam por marcar o “gênero jornalístico” de modo inescapável. Assim, não é fácil para o leitor filtrar na matéria a informação da manipulação social, haja vista a suposta isenção e neutralidade das quais se pretende o “gênero jornalístico”.

Em contrapartida, os blogs ofereceram um discurso jornalístico mais honesto, já que não escondem suas posições políticas. Por isso, a noção de fake news é equivocada. Afinal, boatos são usados como arma política desde Roma, senão, em tempos ainda mais antigos, antediluvianos. Além disso, como distinguir fake news de edições completamente tendenciosas feitas pela grande mídia? Somente os tolos ou hipócritas acreditam nessa bobagem. Cabe ao leitor uma atitude ativa diante da notícia, procurando sempre perscrutar os fatos, não se contentado com as aparências, e, daí, tirar suas próprias conclusões através do juízo bem formado (e informado).

Hoje, a internet e os blogs, como o Conversa Afiada, oferecem instrumentos para uma pesquisa inteligente perante os fatos, sem cair na alienação.

Bibliografia

MARCUSCHI, L. A. “Análise da conversação”. São Paulo: Editora Ática, 1999.

MARCUSCHI, L. A. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

BAKHTIN, M. “Os gêneros do discurso”. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.

BAKHTIN, M., “Questões de Literatura e de Estética”. São Paulo: Editora HUCITEC & UNESP, 1988.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Variação linguística: tu ou você?

Para realizar um trabalho em linguística do ponto de vista histórico é preciso antes considerar algumas limitações. O primeiro fator limitativo – e, certamente, o mais importante – é o da indisponibilidade e imperfeição dos registros, que não permitem um alcance preciso do objeto em questão. A linguística histórica, ao se defrontar em seu arcabouço com línguas muitas vezes desaparecidas, trabalha apenas com “vestígios”, isto é, indícios incompletos, normalmente relacionados à escrita ou inferidos hipoteticamente. A questão da oralidade ou da pronúncia resta-lhe como incógnita a ser decifrada por métodos indiretos, muitas vezes não propriamente linguísticos, e que jamais lhe concedem a exatidão do fenômeno a ser estudado. Isto pode ser observado em torno do latim que, a despeito do farto material disponível e da reconstituição científica bastante exitosa no que tange a uma suposta pronúncia (aproximada), inúmeros aspectos ainda permanecem lacunares, como, por exemplo, o modo de falar no cotidiano ou a forma denominada latim vulgar, que deu origem as línguas românicas. Ou seja, o linguista histórico não dispõe de registros orais como hoje são abundantes, tais como gravadores, discos, CDs etc.; o que faz de seu trabalho um tatear no escuro. Neste sentido, quando se trata da reconstituição de línguas antigas, devemos nos contentar com aproximações, as quais, entretanto, devem guiar o nosso entendimento a respeito do assunto.


Tendo em vista o fato do idioma português ser uma língua românica, isto é, originada do latim vulgar, o que sugere uma grande transformação ao longo do tempo, diante da variação bastante acentuada entre o Português de Portugal (PP) e Português Brasileiro (PB), não só do ponto de vista da prosódia como também da gramática, é razoável conjeturar um cenário futuro não só possível como provável em que o português falado no Brasil e em Portugal serão línguas distintas – embora muito linguistas já considerem essa hipótese como atual.

Dois exemplos bastante interessantes de distinção no português falado na maior parte do Brasil é a substituição dos pronomes “tu” por “você” e “nós” por “a gente”. É interessante notar que, no latim clássico, os pronomes pessoais do caso reto (ou pronomes substantivos) comportam-se tal como no português (PP), a saber, são quase sempre omitidos, haja vista a pessoa indicada ser inferida pela desinência verbal, não havendo, por isso, necessidade de citá-la. Todavia, o pronome é um elemento gramatical relevante, com função de substituir um nome ou substantivo, e, portanto, tem seu lugar na sintaxe latina e geralmente é usado de modo mais expressivo. Economicamente, porém, bastaria dizer, em Portugal, “foste à quinta de Manuel”, para saber de que se trata de “tu” e não de “você”.

Mas, no Brasil, além de, no geral, não se omitir o pronome, quase se aboliu o uso do “tu” ou, quando ainda em vigor, não é usado conforme a norma culta (p.ex.: “tu foi” etc.) – com raríssimas exceções nos estados do Rio Grande do Sul (excetuando Porto Alegre) e do Pará, salvo engano.

Assim, no caso de tu-você e nós-a gente ocorrem, atualmente, numa coexistência, com câmbios nas intensidades de uso, algumas idiossincrasias regionais e o total declínio do uso do “tu” e do “nós” em alguns segmentos sociais.

A gramaticalização, de acordo com o princípio da estratificação, pressupõe a coexistência entre novos e antigos valores ou usos, principalmente em seus estágios iniciais. No século XVIII, havia coexistência do uso do “vossa mercê” e do “você”. Restaria saber se ocorria maior ou menor incidência do uso destas duas formas e suas variações intermediárias “vossemecê”, “vosmecê”, “vosmicê”, “vossuncê” etc., que também deviam coexistir simultaneamente, conforme região, classe social, gênero, norma culta, língua coloquial, escrita, oralidade etc. Já o princípio da persistência indica a permanência das propriedades lexicais nas formas gramaticalizadas, como no caso de você.

Estas variações linguísticas em relação aos pronomes pessoais acarretam algumas consequências, como a variação você/tu; variações nos oblíquos (ex. uso de “te” para “você” e não para “tu” etc.); desaparecimento do “vós”, “teu”, “lhe” etc.; substituição do “nós” por “a gente”; “você” indeterminado; declínio na língua falada do pronome demonstrativo “este”, etc. etc. etc.

A título de curiosidade, façamos uma comparação da conjugação do verbo amar em latim, PP, PB (oral) e inglês.

Latim
Amo (ego)
Amas (tu)
Amat (se)
Amamus (nos)
Amatis (nos)
Amant (illos, illas)

PP
Eu amo
Tu amas
Ele/Ela ama
Nós amamos
Vós amais
Eles amam

PB
Eu amo
Você (Tu) ama
Ele/Ela ama
A gente ama
Vocês amam (ama)
Eles/Elas amam

Inglês
I love
You love
He/She/It loves
We love
You love
They love

Nota: Com o tempo, a omissão do pronome pessoal, subentendido na desinência verbal, como no Latim e no Português-Português, não será mais possível em Português-Brasileiro, o que o tornará muito semelhante à língua inglesa. 

sábado, 1 de junho de 2019

Variação linguística e neologismo

A linguagem é um sistema de comunicação inerente ao ser humano. Todo ser humano, a princípio, possui condições naturais de comunicação. Mas a linguagem não é apenas um aspecto da constituição natural humana, ela é também produto da cultura, portanto, um fenômeno social e histórico. Neste sentido, os indivíduos que vivem em sociedade, de uma maneira geral, têm competência linguística, isto é, através da fala, são capazes de compreender e serem compreendidos por seus interlocutores.


Todavia, a fala não é uma unidade homogênea. A linguagem pode se manifestar em diferentes níveis que vão desde a diversidade de idiomas até variações linguísticas dentro de um mesmo idioma. Assim sendo, a linguagem pode se revelar como um sistema abstrato de regras, não só gramatical como também semântico e fonológico, de modo extremamente variado e irredutível a uma normatização definitiva.

Dentro de um mesmo idioma, por exemplo, variações linguísticas podem ocorrer em diferentes regiões de um mesmo território nacional ou ainda no âmbito do próprio cotidiano, refletidos pela diferença de gênero, de idade, classe social, ou ainda numa escala espacial relativamente pequena e demarcada pela distinção metropolitana entre centro-periferia etc.

Ou seja, a natureza plástica da linguagem é múltipla e está em constante transformação. Diante disso, desenvolveu-se, geográfica e historicamente, em distintas culturas, uma língua padrão, cristalizada, também chamada de “norma culta”, geralmente advinda dos hábitos linguísticos praticados por grupos sociais dominantes ou socioculturais privilegiados, que, por seu prestígio, foi imposta aos demais grupos sociais como modelo uniforme, único e geral.

O domínio da “norma culta” está no nível da performance e não se confunde com a competência linguística que, como se afirmou acima, diz respeito à capacidade de se comunicar de qualquer ser humano. O uso “correto” de uma língua por uma dita “elite” poder gerar exclusão e preconceito linguístico diante das demais variações linguísticas relacionadas a grupos sociais marginalizados.

Desnecessário entrar em pormenores aqui sobre o quanto a língua padrão é artificial e não acompanha a dinâmica de uma realidade tão heterogênea e contraditória como são as sociedades humanas.

A linguagem coloquial, deste modo, se aproxima muito mais da natureza móvel da língua e está aberta a todo tipo de criações, que vão, com o tempo, configurando-a tanto do ponto de vista fonológico como da sintaxe e da morfologia. Em termos morfológicos, estas mudanças podem ser verificadas através de processos de formação de palavras ou de criação neológica.

Sem dúvida, a criação de neologismo é um fenômeno muito mais comum do que pode parecer num primeiro momento. Contudo, esta criação não é aleatória e independente de paradigmas linguísticos de uma determinada língua. Portanto, o processo de formação de neologismo pode ser compreendido e caracterizado sob uma perspectiva científica nos termos da linguística.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Transitividade verbal pela abordagem funcionalista


O presente texto discute a transitividade dos verbos – notadamente os verbos transitivos diretos – tanto do ponto de vista semântico como de sua organização estrutural na oração (sintaxe) e, sob este contexto, suas implicações na sala de aula, tendo por pressuposto e fundamento teórico a linguística cognitivo-funcional. Para isso, foram analisados quarto narrativas faladas e escritas extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade de Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998).

É importante salientar que a linguística cognitivo-funcional além de se deter sobre gêneros do discurso abrange também a questão da pragmática dos discursos, portanto, do uso de que se faz da língua, principalmente, ao nível da fala, que é muito distinta da norma prescritiva convencionada pela gramática tradicional e centrada na escrita. Isto quer dizer que a fala é muito mais “anárquica” e distante do modelo prototípico estabelecido, como, por exemplo, no caso dos verbos transitivos diretos, estruturado em sujeito + verbo + objeto direto.

Para a abordagem funcionalista, o gênero discursivo em questão depende do contexto discursivo-pragmático, isto é, de sua funcionalidade no discurso em diferentes ocasiões, situações e ambientes, nível cultural dos falantes etc., pela qual se infere positiva ou negativamente a transitividade de um verbo.

Na gramática tradicional a transitividade é uma propriedade de um verbo e daí os elementos da oração coocorrem. Já para a linguística funcional, especificamente a de matriz norte-americana, de autores como Givón, Bybee, Hopper, Thompson e Chafe, a transitividade é uma propriedade contínua de toda a oração, ou seja, das várias relações entre o verbo e seus argumentos que especificam sua transferência conforme suas particularidades em toda oração. Disso resulta que dez parâmetros sintáticos podem ser inferidos: quantidade dos participantes; cinese; aspecto (perfectivo ou não perfectivo); pontualidade do verbo; intencionalidade; agentividade do sujeito; polaridade (afirmativa ou negativa); modalidade da oração (modo realis ou irrealis); ao afetamento; e a individuação do objeto.

Tendo-se em vista esses parâmetros, os autores do artigo retomam a questão anteriormente sugerida, das relações sintático-semânticas da oração, e desdobram os aspectos sintático e semântico da transitividade. Neste sentido, do ponto de vista sintático, a transitividade apresenta dois argumentos do verbo: o sujeito (S), que é o agente de uma determinada ação, e o objeto direto (OD), que é paciente, ou seja, afetado pela ação do sujeito. Semanticamente, a transitividade prototípica é definida pelas propriedades do agente, do paciente e do verbo na oração. Deste modo, a transitividade exige um argumento que completa o verbo caracterizando-a. Caso contrário, quando o verbo carrega um sentido autossuficiente, ocorre o evento intransitivo.

Tal definição prototípica é posta em cheque na manifestação discursiva quando elementos pragmáticos, não expressos no discurso, alteram significativamente a estrutura sintática e semântica da transitividade.

Na oração, o verbo (predicativo) é tomado como elemento fundamental e pode ser acompanhado de um elemento nominal. Assim, os verbos podem assumir um caráter prototípico quando realizam ações de um agente ou fugir do padrão quando o sujeito não cumpre o papel de agente.

Após este aprofundamento teórico da função semântica e sintática do evento transitivo, os autores analisam variações em alguns dados quantitativos de ocorrência da estrutura argumental dos verbos transitivos, levando-se em conta a) os verbos transitivos acompanhados de objeto direto nominal ou oracional, b) o objeto direto implícito no texto e c) os verbos de ação-processo acompanhados de objeto indireto ou direto. Dos resultados obtidos, os autores comprovam que nem sempre há uma correspondência entre estrutura argumental semântica e sintática, observando-se também uma maior maleabilidade na valência dos elementos distintos de uma oração que podem aumentar ou diminuir de status conforme os motivos discursivo-pragmáticos e/ou cognitivos.

Através dos dados também se efetuou uma classificação dos verbos em quatro categorias – ação, processo, ação-processo e estado – e verificou, quantitativamente, a maior ou menor ocorrência das respectivas ocorrências.

Importa salientar aqui que, tanto na fala como na escrita, nos verbos, de uso mais frequente, no caso daqueles de ação-processo, não houve um afastamento do ponto de vista semântico tampouco sintático da estrutura transitiva prototípica. O mesmo evento não ocorreu em relação às categorias de verbos de ação, de processo e de estado, que se desviaram da estrutura transitiva prototípica S + V + OD.

Segundo os funcionalistas, isso se explica porque o padrão gramatical pode também ser explicado pela estrutura discursiva. Neste caso, “os verbos são armazenados no léxico com molduras (frames) que determinam quais argumentos são obrigatórios ou opcionais”. Ou seja, as estruturas mais convencionais fornecem molduras que serão alicerces de outras construções por onde o falante escolhe os elementos que serão maximizados ou rebaixados.

Em seguida, os autores formulam uma proposta didática para o ensino fundamental e médio e analisam pormenorizadamente uma narrativa recontada nos termos conceituais expostos acima, visando tornar o ensino de gramática mais compreensível.

Em suma, os estudos da Linguística Cognitivo-Funcional têm demonstrado que a língua natural é muita mais organizada num fluxo continuun do que numa estrutura rígida de fronteiras bem demarcadas. Tal contribuição pode ser muito relevante para o aprendizado no ensino médio da gramática da língua portuguesa e de suas idiossincrasias do português brasileiro (PB).

FURTADO DA CUNHA, M. A. & BISPO, E. B. Relações sintático-semânticas da oração. In: Roza Palomanes; Angela Marina Bravin. (Org.). Práticas de ensino do português. 1ed.São Paulo: Contexto, 2012.

domingo, 25 de março de 2018

Gênero feminino – substantivo

J. P. A. Gonçalves

Gênesis 2:20 – “Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Todavia não se encontrou para o homem alguém que o auxiliasse e lhe correspondesse”


O elemento mais fundamental da formação da linguagem é o nome. A linguagem nada mais é do que um conjunto articulado de nomes. Nomeia-se tudo: seres, entidades, objetos, coisas, concretas ou abstratas, lugares, relações, ações, qualidades, quantidades etc.

A palavra, como ensina Saussure, é um signo arbitrário. Portanto, o nome é uma convenção, social, cultural e historicamente engendrada. Nada diz em si mesmo. Por exemplo, “ (nǚ) não significa nada para um falante de língua portuguesa. Na China, todos sabem que é “mulher”.

O nome só ganha sentido quando está referenciado a um conteúdo externo à linguagem e reconhecido por uma comunidade linguística comum.

No princípio, Adão só podia apontar os animais. Deus, no entanto, lhe deu a faculdade de nomeá-los e Adão nomeou todos os animais em um único dia com nomes que lhes correspondiam exatamente; a cada espécie um nome. Estes nomes eram universais e idênticos aos seres indicados – aqui faço uma alusão de passagem à teoria do conhecimento de Walter Benjamin. Mas não havia ninguém que chamasse Adão pelo nome que de fato era.

Foi Eva que lhe deu nome: homem.

Adão não tinha sexo antes de Eva, pois é a condição de mulher que define a condição de homem.

Foi a mulher que inventou o gênero e fez do homem homem. Não o homem enquanto ser genérico, uma ficção – o homem não é o homem nem a mulher é o homem. Mas o fez enquanto ser humano, tão humano e tão igual a ela própria, tão humana.

Adão, que comeu do fruto proibido, culpou Eva por sua fraqueza, não assumindo assim sua responsabilidade. Eva, mais honesta, confessou sua falta. Ambos, iguais em pecado, mas não em dignidade, foram expulsos do jardim do Éden.

Muito mais tarde, a linguagem, que era um espelho da realidade, foi perdida com a construção da Torre de Babel.

O signo passou a ser arbitrário e através da força bruta, o homem dominou a mulher e a fez escrava! Passou então a ditar, e ditar, e ditar, e ditar... fazendo da palavra sua imagem e semelhança.

A mulher, após século de escravidão, se rebelou e fez do gênero feminino sua força e identidade, e a cada dia vem conquistando mais e mais liberdade, inclusive de dar nomes!

No mundo atual, as mulheres nomeiam as coisas como elas de fato são: a poeta, a presidenta, a poderosa etc.

Todavia, a linguagem precisa ser revolucionada, ainda.

As palavras, apesar de serem signos arbitrários, têm sexo. Assim, “panela” é feminino; “carro”, masculino etc.

O gênero na língua é meramente gramatical, estabelecido por convenção, em sociedades patriarcais. Por isso, a primazia do masculino.

Na gramática, o gênero nem sempre se conhece por sua significação ou terminação.

- Quanto à significação, o gênero feminino é dado conforme o sexo do ser referenciado, seres humanos ou animais:

Mulher, Roberta, menina, poeta, santa, meretriz, gata, leoa, presidenta etc.

- Ou o gênero é meramente gramatical:

Mesa, cadeira, televisão, luz etc.

SUBSTANTIVOS FEMININOS

- Todos os substantivos que admitem o artigo “a” pertencem ao gênero feminino.

A mulher, a águia, a grua, a pitonisa etc.

- Quanto à significação, são femininos:

a) Nomes de mulher ou ocupação por elas exercida:

Margarida, Lilian, Beatriz, escritora, presidenta etc.

b) Nome de animais do sexo feminino.

Égua, pata, cadela etc.

c) A maioria das árvores frutíferas e de flores:

Laranjeira, rosa, margarida etc.

d) Nome de cidades e ilhas nas quais a cidade e a ilha estão subtendidas:

Fortaleza, Campinas, Ilha Bela, Ilha das Canárias etc.

- Quanto à terminação em geral, os nomes terminados em -a átonos:

Menina, flauta, águia, cadeira etc.
Exceções: clima, dia, planeta etc.

- Geralmente, são femininos os substantivos abstratos terminados em -ão:

A comunicação, a solução, a opinião etc.

- Os substantivos que designam pessoas e animais se flexionam em gênero e apresentam, em geral, duas formas diferentes.

Mulher – homem
Filha – filho
Rainha – rei
Presidenta – presidente
Leoa – leão
Égua - cavalo

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Como usar o dito cujo sem errar

Hoje em dia, quase nenhum falante de português-brasileiro usa mais o pronome relativo “cujo”. Ultimamente, entre nós, o “que” se tornou uma espécie de tapa-buracos para tudo, tanto na modalidade oral, como também na escrita. Porém, nem sempre o “que” resolve toda a parada e seu uso exagerado não é recomendável, pelo menos estilisticamente. Em certos contextos, prova de redação ou concurso público, a norma culta faz-se necessário e é bom estar preparado para usar bem o “dito cujo”.



No blog Verso, Prosa & Rock’n’Roll, ensinaremos a usar o “dito cujo” de uma maneira que você não vai errar mais.

1. Começamos pela origem do tal “cujo”, que vem do latim cuius e era usado pelos romanos do mesmo modo como usamos o nosso “cujo”.

Aliás, cada um faz o que bem entender com o “cujo”, desde que faça direito, para não se arrepender depois.

2. O “dito cujo” pertence a classe de palavras dos pronomes.

a) O pronome é palavra que substitui ou modifica um nome. Exemplo:

- A cachorrinha comeu toda a ração.
- Ela comeu toda a ração.

Os pronomes podem ser pessoais, possessivos, demonstrativos etc.

b) O “dito cujo”, assim como o “que”, é um pronome relativo.

Relativo é de relação, ou seja, relaciona ou substitui um termo já expresso, chamado antecedente, na oração.

?????????????

Calma! Chegaremos lá...

Vejamos como o relativo funciona com o abusado “que”.

- Entrou na sala o homem de chapéu que eu vi no dia de ontem.

O “que” se refere ao/ ou repete o termo antecedente “o homem de chapéu”:

- Entrou na sala o homem de chapéu. Eu vi o homem de chapéu ontem.

Portanto, o uso do pronome relativo é uma estratégia inteligente para construir frases sem precisar repetir o mesmo termo.

ATENÇÃO! O “CUJO” NÃO É SINÔNIMO DE “QUE”!!!

- O político que eu não votei foi preso.
- O político cujo eu não votei foi preso. [O político cujo político eu não votei...].

Apesar da minha sincera intenção, a frase está ERRADA, e deu no que deu.

NUNCA FALE OU ESCREVA DA FORMA ACIMA!!!

Também é ERRADO: cujo qual, cujo que etc.

c) A função do “cujo” na oração é de genitivo, isto é, indica ideia de posse, e sempre relaciona dois substantivos diferentes, o termo antecedente e o termo consequente. O termo antecedente, que vem antes do “cujo”, é sempre o possuidor, e o consequente, a coisa possuída.

Para facilitar o “dito cujo”, este relativo sempre substitui as palavras dono de, dona de, donos de, donas de; dele, dela, deles, delas; que tem, que tinha etc., subtendidas na oração.

- O homem cujo carro vermelho...
- O homem dono do carro vermelho...
- O homem do carro vermelho... (O carro vermelho é dele, do homem)
- O homem que tem o carro vermelho...

d) O “dito cujo” flexiona em gênero (masculino e feminino) e número (singular e plural):

- cujo, cuja, cujos e cujas.

Sendo assim, dispensa o artigo depois dele.

ERRADO: cujo o, cuja a, cujos os e cujas as. (NUNCA FAÇA ISSO!!!)

ERRADO: à cuja – pois não cabe a crase, já que o artigo feminino já está flexionado no cuj-a.

e) O “dito cujo” sempre concorda com o substantivo consequente.

- A moça cujo livro comprei...
- A moça cuja roupa comprei...

f) Finalmente, o uso do “dito cujo” deve respeitar a regência verbal, o que faz com que pode ou não haver preposição antes dele.

A regência é tema que tem a ver com a transitividade dos verbos.

Os verbos transitivos diretos são aqueles que necessitam de um objeto direto para completar o seu sentido, isto é, dispensam uma preposição entre o verbo e o objeto:

- Eu amo você = Eu amo o quê? Eu amo quem? Você.

Os verbos transitivos indiretos são aqueles que necessitam de um objeto indireto para completar o seu sentido, isto é, há preposição entre o verbo e o objeto:

- Eu preciso de você = Eu preciso de quê? Eu preciso de quem? De você.

Mas não se preocupe com isso, no dia a dia, quase sempre acertamos a regência verbal, pois ninguém diz, por exemplo, “eu acredito você”, mas “eu acredito em você”, etc.


Observação: Não confundir os artigos a, o, as, os com preposições.
Mas se você ainda está achando tudo isso um pouco complicado, os exemplos abaixo vão dissipar todas as suas dúvidas.

Lembre-se, pintou uma dúvida, preste bem atenção na lógica da estrutura das frases tal como nós analisamos a seguir e depois tente repetir a mesma operação. Vai dar certo!

A
Verbo “saber”, no caso transitivo direto:
Gosto muito deste compositor cujas músicas sei todas.
Gosto muito deste compositor. As músicas dele, eu sei todas.
Gosto muito deste compositor. Eu sei todas as músicas dele.
Gosto muito deste compositor. Eu sei as músicas dele.

B
 Verbo “saber”, no caso transitivo indireto: 
O jornal de cujas notícias eu já sabia muito antes acabou falindo.
O jornal acabou falindo. As notícias dele, eu já sabia de muito antes.
O jornal acabou falindo. Eu já sabia das notícias dele muito antes. (de + as)

C
Qual será o animal cujo nome a autora não quis escrever?
Qual será o animal? O nome dele [do animal] a autora não quis escrever.
Qual será o animal? A autora não quis escrever o nome dele.

D
No colégio tive muitos amigos, de cujos nomes nem me lembro mais.
No colégio tive muitos amigos. Dos nomes deles, nem me lembro mais. 
No colégio tive muitos amigos. Nem me lembro dos nomes deles. (d+os = dos) 

E
O homem, cuja inteligência é superior, vai destruir o planeta.
O homem vai destruir o planeta. A inteligência dele é superior.
O homem vai destruir o planeta. É superior a inteligência dele.

F
Era ela a mulher cuja beleza admirávamos.
Era ela a mulher. A beleza dela nós admirávamos.
Era ela a mulher. Nós admirávamos a beleza dela.

G
A planta a cujos benefícios ele recorrera era medicinal.
A planta era medicinal. Aos benefícios dela, ele recorrera.
A planta era medicinal. Ele recorrera aos benefícios dela.
A planta era medicinal. Ele recorrera a [cuj] os benefícios dela.

H
É esta a casa de praia cujas chaves ontem lhe entreguei.
É esta a casa de praia. As chaves dela ontem lhe entreguei.
É esta a casa de praia. Ontem lhe entreguei as chaves dela.

I
Conheço o juiz sob cuja proteção ficou a pobre criança.
Conheço o juiz. Sob a proteção dele ficou a pobre criança. 
Conheço o juiz. A pobre criança ficou sob a proteção dele.

J
Trata-se de um clube a cujos sócios me incluo há anos.
Trata-se de um clube. Aos sócios deles, eu me incluo há anos.
Trata-se de um clube. Eu me incluo aos sócios deles.

K
É a torre de cujo mirante se avista o mar.
É a torre. Do mirante dela se avista o mar.
É a torre. Avista-se o mar do mirante dela.

L
Aquela é a empresa a cuja diretora me refiro.
Aquela é a empresa. À diretora dela, me refiro.
Aquela é a empresa. Eu me refiro à diretora dela. (Crase)

M
Esta é a funcionaria com cujas ideias todos concordam.
Esta é a funcionaria. Com as ideias delas, todos concordam.
Esta é a funcionaria. Todos concordam com as ideias dela.

domingo, 30 de outubro de 2016

Presidenta ou presidente? Gênero não pode ser neologismo

Por Zarina Monti Airumã

A posse da ministra Carmem Lúcia ao posto da presidência do supremo tribunal federal gerou polêmica nas redes sociais. Isso porque ao ser interrogada sobre qual forma verbal gostaria de ser chamada, presidenta ou presidente, a ministra respondeu com empáfia: “Eu fui estudante e sou amante da língua portuguesa e acho que o cargo é de presidente, não é não?” Ato contínuo, a figura mais bizarra daquele “egrégio tribunal” (Nota 1), Gilmar Mendes, emendou: “Ontem até dizem que teve uma presidenta inocenta”.

(Nota 1: As aspas em “egrégio tribunal” não é porque acredito que a suprema côrte é um instrumento de justiça, mas que o judiciário brasileiro, por seu protagonismo político, pôs por terra, de uma vez por todas aqui no Brasil, a teoria dos três poderes de Montesquieu).

Após a declaração infeliz da presidente do stf Carmem Lúcia, houve uma enxurrada de comentários de internautas em fóruns de discussão que expunham, um atrás do outro, inúmeros registros da palavra presidenta em textos que iam desde Machado de Assis a Camilo Castelo Branco.

Já os fascistas, que exibem orgulhosamente uma ignorância atroz, embora se creem muito cultos (!!!), como era de se esperar, rejubilaram com a ministra.

Tal episódio, que poderia passar por trivial, esconde uma questão muito mais profunda do que parece.

Ao aproximarmos superficialmente da questão, a declaração de Carmem Lúcia demonstra, a princípio, que ela teria corrigido tardiamente Dilma Rousseff quando esta, ao ser eleita ao cargo da presidência da república, optou por ser chamada de presidenta, assim mesmo, no feminino.

Atravessando a superfície, numa análise mais detida da frase da atual presidente do stf, duas coisas sobressaem: primeiro, que ela, Carmem Lúcia, foi estudante (verbo no passado) e não é mais; e, segundo, que a ministra é uma amante bem infiel da língua portuguesa. Pois, além de manifestar uma visão simplista sobre a linguagem, rigorosamente, presidente não é cargo mas, sim, que preside [adjetivo] ou título [substantivo] de quem exerce o cargo da presidência. Como então o cargo não é presidente e, sim, função de quem preside, não acarretaria maiores constrangimentos dizer cargo de presidenta. Em o “cargo é de presidente”, o substantivo presidente está no genitivo regido pela preposição de antecedida pelo verbo ser, por significar possuidor do cargo. Logo, o cargo (é do ou é da) pertence ao presidente ou à presidenta. Pois é, ministra, achou errado!

Quanto a intervenção de Gilmar Mendes, vale o velho ditado: insistir em um erro é burrice.

Afora os deslizes gramaticais, se o cargo é de presidente, a mulher que o ocupa é, evidentemente, a presidenta.

De fato, a palavra presidenta é recorrente, na língua portuguesa, desde pelo menos o início do século XIX. (Ver referências no fim do texto). No francês, no espanhol e no galego, muito antes disso.

Se, no entanto, os anos de 1800 pareçam relativamente recentes, é bom lembrar que a generalização da palavra presidente como chefe de Estado também é recente. Data, obviamente, da vigência do presidencialismo.

A origem é latina e literalmente significa “estar à frente”. Os romanos, a partir da era cristã, utilizavam-na para designar genericamente governante de província ou outras funções na magistratura. Na república de Veneza, o vocábulo ganhou vitalidade, mas só a partir da independência dos EUA, no século XVIII, a partir de uma releitura idealizada da frugalidade romana, tornou-se de uso corrente o sentido supracitado.

(A título de curiosidade, o Dicionário de Etimologia da Língua Portuguesa Pedro Machado registra do ano de 1457, “calisto terceiro era presidente na Ygreja”, Desc. I, p. 545; e “havendo quinze anos, um mês e sete dias que presidia na Igreja de Deus”, Frei Bernardo de Brito, Monarquia Lusitana VI, cap. II, século XVI. “Presidência” data do século XVII. Ao que parece, o termo no português era empregado no jargão eclesiástico, para se referir ao papado).

Mas se para nós a palavra presidente no feminino causa estranheza, o que não ocorreria o mesmo com a palavra governanta, é porque o contexto social até os dias de hoje impediu a mulher de ocupar funções de liderança, como a presidência de qualquer coisa.

Isso porque a linguagem é um reflexo da composição social. Governanta, no caso, era uma funcionária que se empregava numa casa de família para educar crianças. Governante é o chefe de Estado, o mandatário, o comandante etc. O significante é o mesmo, mas o conteúdo ideologicamente distinto.

A mulher, nas sociedade patriarcais, sempre ocupou posições inferiores, geralmente ligadas a tarefas domésticas. Portanto, o respectivo contexto sociológico sempre determinou as distinções de gênero em sociedade, relegando aos escalões inferiores a condição da mulher, refletindo na linguagem, que foi forjada com o selo masculino. A neutralidade da linguagem, por isso, dissimula uma ideologia fortemente machista, de séculos e mais séculos de violência, dominação e opressão.

Ora, em um mundo em que até bem pouco tempo as mulheres tiveram de se organizar e lutar por seus direito, como sufrágio universal, ou seja, conquistar o direito de votar em um presidente (!!!), o grande equívoco foi acreditar que a presidenta Dilma Rousseff teria inventado um neologismo, criado para marcar o ineditismo do fato de uma mulher se tornar autoridade máxima da república.

No Brasil, por exemplo, dos 36 presidentes, apenas um é mulher: Dilma Rousseff. (Nota-se a desinência masculina marcando coletividade ou sempre dissimulada pela neutralidade). Assim, como a palavra presidenta poderia soar bem aos ouvidos acostumados a ouvir palavras denominando homens sempre mandando em tudo? Como poderia a palavra presidenta ser de uso disseminado se, até bem pouco tempo atrás, as mulheres sequer podiam votar?

Mas, ainda que presidenta fosse um neologismo, seria extremamente justificável a novidade ortográfica, e a recusa em chamá-la pelo termo, apoiando-se numa suposta ortodoxia, por parte de setores reacionários, indica apenas uma tendência social refratária a mudanças.

Ainda assim, muitos saíram em defesa da presidente do supremo tribunal, argumentando que o stf não era ambiente para experiencialismos linguísticos, como o uso de neologismos. (Como se aquele ambiente fosse uma casa respeitável!)

Nada mais falacioso.

Ora, em termos rigorosos, qual palavra da língua portuguesa não é neologismo? Ou alguém acredita em um etéreo mundo das ideias de palavras e regras gramaticais puras, eternas, e imutáveis?

Na verdade, como é bem sabido, a língua portuguesa é, como todas as línguas neolatinas, derivada do latim vulgar, isto é, o latim mal falado, popular, contaminado por barbarismos e estrangeirismos, e de maneira alguma é a flor do Lácio; é um de seus filhos bastardos.

Toda a língua tem uma natureza plástica, contraditória, mutável. Se não fosse assim, os europeus e os indianos ainda falariam o mesmo idioma, o indo-europeu.

A língua portuguesa não é diferente. Ela se transformou, ao longo do tempo (diacronia), está em constante variação (sincronia) e será uma língua distinta no futuro. Tal fenômeno é bem conhecido entre os linguistas e é inevitável.

Mas não é preciso ir tão longe. O neologismo “você”, por exemplo, formado por aglutinação do pronome de tratamento “vossa mercê”, hoje é tão “natural” que nenhum gramático, por mais purista ou saudosista que seja, interditaria o seu uso sob pena de cometer erro gravíssimo.

Portanto, a norma culta é uma ficção. Um arquétipo que só encontra respaldo nos livros de gramática. Funciona como um lastro e, de certa forma, como um segregador social quando alguma circunstância obriga o seu uso, geralmente restrito à escrita, em provas de concurso público, editoras etc.

No dia a dia, entretanto, assim como no trânsito, ninguém respeita as regras (gramaticais). Porém, diferentemente do trânsito, onde as infrações das normas podem acarretar acidentes gravíssimos, o estrito cumprimento da gramática normativa inviabilizaria a plena fluência da comunicação, já que a fala é regida por outras leis.

Há, sem dúvida, um descompasso entre a gramática e a língua viva. Aquela sempre chega atrasada e de tempos em tempos tem de ser atualizada, ou melhor, corrigida pelo uso coloquial!

Um caso clássico disso foi imortalizado por Oswald de Andrade no poema Pronomiais: “Dê-me um cigarro; Diz a gramática; do professor e do aluno; E do mulato sabido; Mas o bom negro e o bom branco; Da nação brasileira; Dizem todos os dias; Deixa disso camarada; Me dá um cigarro”. Hoje, a gramática se rendeu ao uso vulgar e consagrou como correto a colocação pronominal um tanto idiossincrática do brasileiro, que outrora ou em terra lusitana seria pecado gramatical (Nota 2).

(Nota 2: O referido pronome de tratamento “você” também foi assimilado normativamente pela gramática portuguesa, embora no português brasileiro ocasionou um grande estrago, com a supressão da segunda pessoa, bem como sua respectiva conjugação verbal, que caiu em desuso, a desestabilização dos demonstrativos “este” e “esse” etc.).

Aliás, um dos primeiros exercícios do curso de linguística é mostrar como os defensores da norma culta cometem erros grosseiros de português. Os exemplos são numerosos. Tais exercícios, além de proporcionar boas gargalhadas em sala de aula, é uma espécie de batismo de fogo para os estudantes, que são alertados a atentarem para a complexidade da língua, de evitar preconceitos linguísticos, eivados por questões de classe social, regionais, de gênero etc.

Mas o que subjaz toda esta discussão, no entanto, é uma questão política e não linguística.

Quando Dilma Rousseff foi eleita, ela procurou no vernáculo (e encontrou) uma designação que melhor qualificava o fato, inédito no Brasil, de um mulher comandar a presidência da república. Tal ato estava repleto de simbolismo, demarcava o empoderamento da mulher em posições tradicionalmente reservadas a homens.

A palavra presidenta, então, virou questão de honra para os conservadores. Estes sempre demonstraram má vontade e recusa em atender o pedido da presidenta. (Jamais tiveram a delicadeza de um Lewandowski). Chamavam-na reiteradamente de presidente, numa clara atitude provocativa e afrontosa. Mais do que um representante dos Partidos dos Trabalhadores, o que lhes causava ojeriza era o fato de uma mulher chegar ao poder.

Por isso, Carmem Lúcia ao optar pela forma supostamente neutra, no entanto, carregada de sentidos implícitos machistas, escreveu mais uma passagem vergonhosa, dentre muitas, na anedótica história brasileira, fazendo jus ao complô de conspiradores golpistas que, ao assaltarem o poder, rebaixaram todas as mulheres (e negros também) a cargos de segundo escalão no governo.

Carmem Lúcia abdicou de sua condição de mulher.

Ao querer de modo sutil humilhar Dilma, a ministra acabou por patentear solenemente toda a sua mediocridade. Com seu cinismo maldoso, apenas exibiu a prepotência dos tolos.

Dilma passou incólume pelo escândalo de corrupção que atingiu todos os partidos, inclusive o Partido dos Trabalhadores. Ela se tornou um incômodo para a classe política. Foi vítima de um pacto nacional pela corrupção que envolveu os três poderes, todas as instituições brasileiras, os setores empresariais e a própria sociedade.

As manifestações e os panelaços não eram, afinal, contra a corrupção; eram contra a corrupção de um partido, contra um projeto de poder de longa duração, contra a “ditadura comunista”, contra a “revolução bolivariana”, contra o Foro de São Paulo, contra a PEC das domésticas etc., etc., etc.

A missão dos usurpadores foi trazer de volta a paz dos corruptos. A sociedade civil, numa atitude cúmplice, de quem também age nas sombras, se comportou como o avestruz, que põe a cabeça dentro de um buraco para não ver o perigo.

A estrutura social do Brasil mais parece com a do Ancien Régime. Os ricos e poderosos isolados do resto do povo, numa espécie de Palácio de Versalhes de cristal, inventaram um Estado que é um Leviatã às avessas.

Antes de terminar, gostaria de mencionar que o radical da palavra ministro vem da palavra latina “mininus”, isto é, pequeno, parvo, menor.

A associação fortuita do nome de Carmen Lucia ao do grande escritor Machado de Assis é a maior glória que poderia ter sido alcançada pela atual presidente do stf, ainda que tal associação abra um abismo entre eles e revele a monumental pequenez da ministra.

Num país em que Josés Dias são elevados à categoria de sumidades intelectuais (vide FHC), não é difícil de entender MINIstros como Carmem Lúcia.

Carmem Lúcia ou Machado de Assis é uma questão de escolha. É uma decisão cultural e ao mesmo tempo política, entre o retrocesso e os avanços sociais. Eu fico com Machado de Assis. Mas também com Clarice Lispector, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Laura Esquivel, Emily Brontë, etc. ,etc., etc.

Em tempo: numa pesquisa rápida na internet, separei alguns registros de presidenta. Todos estão linkados e podem ser encontrados nos seguintes sites: “Discórdia Gramatical” (excelentes artigos) e “dicionarioegramatica.com” (um prato cheio para que gosta de estudar a língua portuguesa):

Diccionario portatil portuguez-frances e francez-portuguez (1812), de Domingos Borges de Barros, diplomata e senador brasileiro (p. 347): Presidenta, s.f. président.

Gazeta de Lisboa registra, numa edição de 1818: uma corveta chamada “Presidenta”.

Historias de meninos para quem não for creança, de António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira (1835), faz menção a uma marquesa como “presidenta”:

Otim literario em fórma de soliloquios, de José Agostinho de Macedo, tomo III (1841): “(...) e a presidenta das gritadoras da escólas de Athenas…”

Revista Popular de Lisboa (1851) também se referia à “presidenta” de uma reunião.

Archivo pittoresco  (1858), jornal de Lisboa: “Como presidenta ia a madre Maria Espírito Santo (...)”

Dicionário Caldas Aulete (1881) de Antônio Feliciano de Castilho.

Tradução da obra As Sabichonas (Les Femmes Savantes), do dramaturgo francês Molière, por meio do escritor português Antonio Feliciano de Castilho, em 1872: “Mais gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153); “Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230).

Dicionário de Português-Alemão de Michaëlis (1876).

O Universo Ilustrado (1878) menciona “presidenta”.

Anos depois, no Brasil, Machado de Assis utilizaria o vocábulo em Memórias Póstumas de Brás Cubas(publicada pela primeira vez em 1881): “Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as cousas de um modo administrativo”.

Dicionário Cândido de Figueiredo (1899): "Presidenta, f. (neol.) mulher que preside; mulher de um presidente. (Fem. de presidente.)"

Vocabulário oficial da língua portuguesa, elaborado em 1912 por Gonçalves Viana.

Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras desde a sua primeira edição, em 1932; no Dicionário da Academia Brasileira de Letras; e estava já no primeiro Vocabulário Ortográfico sancionado pela Academia de Lisboa, de Portugal, em 1912 (o vocabulário integral pode ser acessado aqui).

Vocabulário do português por Rebelo Gonçalves (1966).