Para realizar um trabalho em linguística do ponto de vista histórico é preciso antes considerar algumas limitações. O primeiro fator limitativo – e, certamente, o mais importante – é o da indisponibilidade e imperfeição dos registros, que não permitem um alcance preciso do objeto em questão. A linguística histórica, ao se defrontar em seu arcabouço com línguas muitas vezes desaparecidas, trabalha apenas com “vestígios”, isto é, indícios incompletos, normalmente relacionados à escrita ou inferidos hipoteticamente. A questão da oralidade ou da pronúncia resta-lhe como incógnita a ser decifrada por métodos indiretos, muitas vezes não propriamente linguísticos, e que jamais lhe concedem a exatidão do fenômeno a ser estudado. Isto pode ser observado em torno do latim que, a despeito do farto material disponível e da reconstituição científica bastante exitosa no que tange a uma suposta pronúncia (aproximada), inúmeros aspectos ainda permanecem lacunares, como, por exemplo, o modo de falar no cotidiano ou a forma denominada latim vulgar, que deu origem as línguas românicas. Ou seja, o linguista histórico não dispõe de registros orais como hoje são abundantes, tais como gravadores, discos, CDs etc.; o que faz de seu trabalho um tatear no escuro. Neste sentido, quando se trata da reconstituição de línguas antigas, devemos nos contentar com aproximações, as quais, entretanto, devem guiar o nosso entendimento a respeito do assunto.
Tendo em vista o fato do idioma português ser uma língua românica, isto é, originada do latim
vulgar, o que sugere uma grande transformação ao longo do tempo, diante da variação
bastante acentuada entre o Português de Portugal (PP) e Português Brasileiro
(PB), não só do ponto de vista da prosódia como também da gramática, é razoável
conjeturar um cenário futuro não só possível como provável em que o português
falado no Brasil e em Portugal serão línguas distintas – embora muito linguistas
já considerem essa hipótese como atual.
Dois exemplos bastante interessantes de distinção no português falado na
maior parte do Brasil é a substituição dos pronomes “tu” por “você” e “nós” por
“a gente”. É interessante notar que, no latim clássico, os pronomes pessoais do
caso reto (ou pronomes substantivos) comportam-se tal como no português (PP), a
saber, são quase sempre omitidos, haja vista a pessoa indicada ser inferida
pela desinência verbal, não havendo, por isso, necessidade de citá-la. Todavia,
o pronome é um elemento gramatical relevante, com função de substituir um nome
ou substantivo, e, portanto, tem seu lugar na sintaxe latina e geralmente é
usado de modo mais expressivo. Economicamente, porém, bastaria dizer, em
Portugal, “foste à quinta de Manuel”, para saber de que se trata de “tu” e não
de “você”.
Mas, no Brasil, além de, no geral, não se omitir o pronome, quase se
aboliu o uso do “tu” ou, quando ainda em vigor, não é usado conforme a norma
culta (p.ex.: “tu foi” etc.) – com raríssimas exceções nos estados do Rio
Grande do Sul (excetuando Porto Alegre) e do Pará, salvo engano.
Assim, no caso de tu-você e nós-a gente ocorrem, atualmente, numa coexistência, com câmbios nas
intensidades de uso, algumas idiossincrasias regionais e o total declínio do
uso do “tu” e do “nós” em alguns segmentos sociais.
A gramaticalização, de acordo com o princípio
da estratificação, pressupõe a coexistência entre novos e antigos
valores ou usos, principalmente em seus estágios iniciais. No século XVIII,
havia coexistência do uso do “vossa mercê” e do “você”. Restaria saber se
ocorria maior ou menor incidência do uso destas duas formas e suas variações
intermediárias “vossemecê”, “vosmecê”, “vosmicê”, “vossuncê” etc., que também
deviam coexistir simultaneamente, conforme região, classe social, gênero, norma
culta, língua coloquial, escrita, oralidade etc. Já o princípio da persistência indica a permanência das
propriedades lexicais nas formas gramaticalizadas, como no caso de você.
Estas variações linguísticas em relação aos pronomes pessoais acarretam
algumas consequências, como a variação você/tu; variações nos oblíquos (ex. uso
de “te” para “você” e não para “tu” etc.); desaparecimento do “vós”, “teu”, “lhe”
etc.; substituição do “nós” por “a gente”; “você” indeterminado; declínio na
língua falada do pronome demonstrativo “este”, etc. etc. etc.
A título de curiosidade, façamos uma comparação da conjugação do verbo
amar em latim, PP, PB (oral) e inglês.
Latim
Amo (ego)
Amas (tu)
Amat (se)
Amamus (nos)
Amatis (nos)
Amant (illos, illas)
PP
Eu amo
Tu amas
Ele/Ela ama
Nós amamos
Vós amais
Eles amam
PB
Eu amo
Você (Tu) ama
Ele/Ela ama
A gente ama
Vocês amam (ama)
Eles/Elas amam
Inglês
I love
You love
He/She/It loves
We love
You love
They love
Nota: Com o tempo, a omissão do pronome pessoal, subentendido na desinência verbal, como no Latim e no Português-Português, não será mais possível em Português-Brasileiro, o que o tornará muito semelhante à língua inglesa.
Nota: Com o tempo, a omissão do pronome pessoal, subentendido na desinência verbal, como no Latim e no Português-Português, não será mais possível em Português-Brasileiro, o que o tornará muito semelhante à língua inglesa.
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