terça-feira, 15 de junho de 2021

Fecaloma punk rock: 20 anos de Rebelião Adolescente

Pode se dizer que o disco (CD) “Rebelião Adolescente” da banda Fecaloma é um marco na história do punk nacional, já que foi o primeiro, com uma tiragem de mil cópias, a trazer estampado o preço na capa – R$ 3,00 reais, o que equivalia, na época, a um dólar. Ademais, no encarte, a banda inusitadamente fazia uma prestação de contas, discriminando os custos de gravação, arte, prensagem etc., e que demonstrava o quanto era barato a produção de um CD independente – que era vendido pelo preço de 10 a 20 reais. (Bandas do mainstream chegavam a vender por 40 reais ou mais).

Rebelião adolescente, 20 anos

Embora incomum no Brasil, a prática surgiu nos anos 80 como uma reação à campanha antipirataria encampada pela indústria fonográfica, que, àquela altura, mirava suas munições contra a fita cassete, através da declaração de guerra: “A gravação caseira está acabando com a música – e é ilegal”. Muitas bandas e fanzines parodiaram o slogan. A banda anarcopunk holandesa The Ex acrescentou na advertência das gravadoras o sugestivo: “já não era sem tempo!”. A versão em cassete do EP In God We Trust, Inc, de 1981, do lendário Dead Kennedys, deixava virgem o lado B da fita, que vinha com a seguinte inscrição: “A gravação caseira está acabando com os lucros da indústria de discos!”, portanto, “deixamos um lado virgem para você fazer a sua parte”. Estampas de camiseta da banda punk californiana Rocket from the Crypt também alertavam, em tom sarcástico: “A gravação caseira está acabando com a indústria musical – e daí?!!!”. Porém, ainda mais emblemático foi o álbum Workers Playtime, de 1988, do compositor inglês de folk music e punk rock, Billy Bragg, que, além da mensagem “o capitalismo está acabando com a música”, fixava na capa o preço do disco em £ 4,99 e, logo abaixo, “não pague mais”.

Curiosamente, a iniciativa do Fecaloma não foi muito bem recebida na cena punk brasileira, sendo, inclusive, objeto de crítica. Um país pobre como o Brasil, vai entender...

Em homenagem aos 20 anos do lançamento do CD “Rebelião adolescente”, transcrevemos aqui integralmente o texto impresso na sua contracapa:

Rebelião adolescente

Não fiz 18 anos, não sou maior de idade, não fiz 21 anos, não alcancei a maioridade civil, deixem-me envelhecer dignamente. O que esperam de mim, que arrume um emprego, que passe 10 horas numa firma, saia para almoçar num restaurante self-service com um bando de chatos, entre numa faculdade, repita como um papagaio estúpido palavras do tipo mercado de trabalho, campo profissional, capacitação, (...), vista roupas sociais, beba cerveja com os amigos, fume um baseado, comprei um carro, um celular, tenha no bolso mil cartões de créditos, de banco, seguro de vida? Não mesmo! Não vou me corromper. Querem que eu faça parte da Ordem, que renuncie todas as minhas aspirações, esperanças, sonhos e utopias. Nunca! Não vou me render, desistir dos planos de rebelião da minha adolescência. Odeio arrogância do mundo adulto, a sua seriedade e má-fé. Odeio a frieza e a indiferença dos adultos, seu calculismo e desrespeito. Onde está aquele mundo de fantasia que me prometeram? Não existe. Só que eu acreditei. Por que me ocultar na verdade? Quando eu era criança nem a verdade podia destruir a minha felicidade, então porque não me disseram tudo? Não sou de guardar ressentimentos, mas não me obriguem a fazer parte do sistema. A minha adolescência é eterna, e a essência da minha revolta e crença na liberdade, a minha recusa ao mundo adulto. Conclamo a todos os adolescentes, à rebelião! À rebelião!

Não tenho medo das autoridades que me vigiam o tempo todo e me tratam como suspeito. Sou suspeito, sim, sou inimigo da sociedade, que é conivente a toda injustiça e crimes praticados pela ordem estabelecida. A hipocrisia das autoridades não me engana, sou seu eterno inimigo. Estou armado com ideias mais explosivas que mil dinamites juntas. Querem que eu faça 18 anos logo, para que assim eu possa responder penalmente, e justificarem com o meu “consentimento” uma eventual prisão. Mas não sou um criminoso comum, sou um revolucionário. Meu inimigo não são as pessoas humildes, estes são os das autoridades; meu inimigo é a ordem. Tenho espírito adolescente, a confusão não me é estranha, o tumulto é divertido, a esperança é um sonho.  À rebelião, adolescentes! À rebelião!

Sou inconformado com este mundo corrupto, se envelhecer é corromper-se, então eu não quero envelhecer. Não vou fazer 21 anos, conquistar minha Independência civil e oficializar a desonestidade. Jamais! Não quero sentir vergonha do passado, e quando eu estiver maduro arrepender-me de qualquer ato de covardia. Sou um revolucionário, não concordo com a indignidade e traição dos adultos que se entregam sem a menor resistência ao sistema. Entregam-se ao mercado de trabalho, ao campo profissional, à capacitação, à hipocrisia, sem sequer se importarem com o destino sombrio das milhares de pessoas excluídas da ordem. Não, sou um adolescente, detesto o trabalho como odeio a escola, amo a liberdade como adoro o recreio. Quero viver no futuro próximo, no mundo igualitário e livre, sem governo sem patrão. Conclamo à revolta, adolescentes! À rebelião!

Fecaloma

Começo do século XXI (2001).

terça-feira, 1 de junho de 2021

A essência da amizade em Cícero

Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim, sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema, música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia, a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso orador romano Cícero, não se vive sem amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir, como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente de fato por você uma amizade sincera:

Da Amizade

“Também apelo para a autoridade daquele que o oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato, transferidos.

“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.

“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes, os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.

“Não existe, com efeito, maior peste contra a amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.

“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo fato de ter sido praticado em favor do amigo.

“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer mal-estar.

“Portanto, não é a amizade que acompanha a utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.

“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram vazios de amizade.

“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles, encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais, apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das desgraças do amigo!

“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o amigo certo nas horas incertas’.

“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que o maior iguala-se ao menor.

“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)

“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.

“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de ‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e interesse ou de vantagem.

“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora, espontaneamente, da amizade.

“Como as coisas humanas são frágeis e caducas, devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”

(Cícero, Da Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)

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Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador, retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.