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terça-feira, 8 de abril de 2025

Confissões de Santo Agostinho: A Miséria Humana à Luz da Misericórdia Divina

 A cena retrata Santo Agostinho ajoelhado em um ambiente escuro e sombrio, representando o peso de sua miséria interior e o estado de sua alma antes da conversão. Seu rosto expressa angústia, mas também um anseio sincero por redenção. Ao fundo, uma luz dourada desce do alto — símbolo da misericórdia divina — iluminando sua figura em contraste com as trevas ao redor.  A luz assume uma forma sutilmente angelical, sugerindo a presença divina que acolhe, guia e transforma. Atrás dele, sombras de pecados passados — representadas por figuras turvas e distorcidas — se dissipam lentamente com a chegada da luz. Um livro aberto repousa ao lado de Agostinho, representando as Escrituras e o momento crucial em que ele ouve a voz dizendo "Toma e lê".  A composição combina elementos clássicos e simbólicos para transmitir a jornada interior de Agostinho: da escuridão do ego à luz da graça. A paleta de cores mistura tons escuros (cinzas, marrons) com raios dourados e brancos, reforçando o contraste entre miséria e misericórdia.

Introdução

Confissões de Santo Agostinho é uma das obras mais influentes da literatura cristã e da filosofia ocidental. Escrita no final do século IV, essa autobiografia espiritual rompe com os padrões literários da Antiguidade ao apresentar não apenas a trajetória de uma vida, mas um verdadeiro itinerário da alma em busca de Deus. Muito além de uma simples narrativa pessoal, trata-se de uma meditação teológica e existencial que revela as inquietações humanas mais profundas: o desejo por sentido, a luta contra os vícios, a sede de verdade e a esperança de redenção.

Agostinho não pretende apenas contar sua história — ele escreve como quem ora. Cada palavra é dirigida a Deus, em forma de súplica, louvor ou confissão. Essa estrutura confessional, inédita em sua época, é um convite à introspecção, ao reconhecimento sincero da própria fragilidade e à abertura da alma diante da graça divina. Em suas páginas, o leitor se depara com um homem dilacerado entre o orgulho e a humildade, entre o pecado e a virtude, entre o mundo e o espírito.

A obra se desenvolve a partir de uma profunda consciência da miséria humana. Agostinho mostra que, afastado de Deus, o ser humano vive mergulhado na ignorância, no erro e na desordem moral. Ele narra com franqueza sua juventude marcada por desejos desenfreados, vaidade intelectual e rebeldia espiritual. Mas longe de buscar autopiedade ou justificar seus pecados, ele os reconhece com dor e reverência, entendendo que somente a misericórdia divina poderia ter transformado sua história.

É nesse contraste entre miséria e misericórdia que reside o núcleo vital da obra. O leitor percebe que a salvação não nasce do esforço humano isolado, mas do encontro com um Deus que ama incondicionalmente e se inclina para levantar aquele que caiu. Agostinho não esconde suas falhas — ele as ilumina à luz da graça, mostrando que o passado, por mais sombrio que tenha sido, pode ser redimido quando entregue nas mãos de Deus.

A beleza das Confissões está justamente na sinceridade do relato. Agostinho se despede da superficialidade e mergulha nas profundezas da alma. Seus dilemas não são apenas religiosos, mas universais: quem sou eu? Por que erro mesmo sabendo o que é certo? O que me move a buscar o que destrói? O que é a felicidade e onde posso encontrá-la? Tais questões, mesmo séculos depois, permanecem atuais, tocando leitores de diferentes crenças e formações.

Além disso, o texto é marcado por uma densidade filosófica e espiritual que desafia e enriquece. Agostinho tece reflexões sobre o tempo, a memória, a liberdade, o mal, a vontade, a natureza de Deus e a condição humana. Tudo isso entrelaçado com sua experiência íntima de conversão, que culmina no célebre momento em que, atormentado e em lágrimas, ouve uma voz infantil dizendo: “Toma e lê”. Ao abrir as Escrituras, ele encontra uma passagem que o impele à mudança radical de vida.

Neste artigo, exploramos justamente esse aspecto transformador da obra: como Santo Agostinho revela a condição miserável do ser humano afastado de Deus e como, por meio de sua experiência pessoal, ele demonstra que só a graça e a misericórdia divinas podem redimir a alma caída. Seu testemunho transcende os séculos e continua a inspirar, consolar e confrontar. Ele nos ensina que, por mais perdida que uma alma esteja, nunca é tarde para se voltar à Verdade.

Se você busca compreender os dilemas da alma humana, refletir sobre o sentido da existência e experimentar a força redentora do amor divino, Confissões de Santo Agostinho é uma leitura essencial. É uma obra que inquieta e transforma, que conduz da escuridão à luz — não por méritos humanos, mas pela ternura infinita de um Deus que chama, espera e perdoa.

A Obra e Seu Contexto Histórico

O que são as Confissões de Santo Agostinho?

Escritas entre 397 e 400 d.C., as Confissões são compostas por treze livros que misturam autobiografia, filosofia, teologia e oração. Agostinho, bispo de Hipona, narra sua juventude marcada pelo pecado, suas buscas intelectuais e espirituais e, por fim, sua conversão ao cristianismo.

A obra é considerada uma das primeiras autobiografias da história, e seu estilo confessional inaugura um novo modo de escrever sobre a experiência interior. Agostinho não escreve para exaltar seus feitos, mas para exaltar a graça de Deus que o resgatou de sua condição miserável.

A Miséria Humana: Um Olhar Profundo para Dentro

A condição do ser humano afastado de Deus

Agostinho descreve sua juventude como um tempo de perdição, marcado pela luxúria, vaidade e busca desenfreada por prazeres mundanos. Ele reconhece que, mesmo em seus momentos de aparente liberdade, era escravo de seus próprios desejos. Sua famosa frase — "Fiz-me para Ti, e inquieto está o meu coração enquanto não repousa em Ti" — sintetiza esse vazio existencial que só pode ser preenchido por Deus.

Exemplos da miséria humana nas Confissões:

  • A busca pelo prazer: Agostinho relata como caiu em comportamentos sexuais desordenados, vendo o corpo como instrumento de perdição quando mal orientado.
  • A vaidade intelectual: Mesmo sendo um brilhante orador e filósofo, Agostinho confessa que sua busca pela verdade era corrompida pelo orgulho.
  • A fuga de Deus: Durante muito tempo, evitou o cristianismo, preferindo doutrinas como o maniqueísmo, que lhe ofereciam explicações fáceis para o problema do mal.

A Misericórdia Divina: Caminho para a Redenção

Como Deus age na vida de Agostinho

O ponto central da narrativa é a ação da misericórdia divina na vida de um pecador. Agostinho mostra que a graça de Deus o acompanhou mesmo quando ele não a percebia. Deus o conduziu pacientemente até o momento da conversão — não por mérito próprio, mas por puro amor.

Marcos da misericórdia divina na narrativa:

1.   A figura da mãe, Santa Mônica: Sua perseverança em oração é retratada como um canal da misericórdia divina.

2.   O encontro com Santo Ambrósio: Foi um momento decisivo, pois Agostinho viu um cristianismo intelectual e profundo, diferente do que imaginava.

3.   A leitura das Escrituras: Agostinho relata como, ao abrir a Bíblia e ler Romanos 13, foi tocado profundamente e decidiu se converter.

Conversão: O Encontro Entre a Miséria e a Misericórdia

A transformação interior

A conversão de Agostinho é o ponto culminante das Confissões. É nesse momento que a miséria humana encontra a misericórdia divina de forma concreta. Ele reconhece que não é por suas forças que será salvo, mas pela ação de Deus em sua alma.

“Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei!” — Essa frase emblemática revela o lamento de quem viveu afastado de Deus, mas também a alegria do reencontro.

Lições Atuais das Confissões de Santo Agostinho

Mesmo escrita há mais de 1.600 anos, a obra de Agostinho continua atual. Ela nos convida a olhar para dentro de nós mesmos com honestidade, a reconhecer nossas limitações e a abrir o coração para a ação transformadora da misericórdia divina.

O que aprendemos com Agostinho?

  • Que a busca por sentido é inerente ao ser humano.
  • Que o pecado escraviza, mas a graça liberta.
  • Que a misericórdia de Deus é paciente, constante e poderosa.
  • Que ninguém está perdido demais para ser alcançado pela graça.

Perguntas Comuns Respondidas

O que significa a expressão "miséria humana" nas Confissões?

Refere-se à condição de fragilidade, erro e vazio do ser humano quando está distante de Deus. É um reconhecimento da própria limitação e da necessidade de algo maior.

Como Agostinho entende a "misericórdia divina"?

Para Agostinho, a misericórdia divina é o amor gratuito e imerecido de Deus, que perdoa, cura e transforma. É ela que dá sentido à vida e conduz o pecador à salvação.

As Confissões são apenas para cristãos?

Não. Embora profundamente cristã, a obra também interessa a leitores filosóficos, literários e existenciais, pois trata de temas universais: identidade, arrependimento, busca por sentido, e transformação interior.

Conclusão

Confissões de Santo Agostinho é uma jornada espiritual que mostra o ser humano em sua miséria e Deus em sua infinita misericórdia. É um testemunho pessoal e, ao mesmo tempo, um guia espiritual para todos aqueles que, em meio à dor, à dúvida ou à culpa, buscam uma nova vida.

Mais do que uma autobiografia, a obra é uma oração contínua, um louvor ao Deus que não desiste de seus filhos, mesmo quando eles se perdem. Em tempos de incerteza e superficialidade, reler Agostinho é reencontrar a profundidade da alma e a esperança que vem da graça.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Nietzsche e a filosofia trágica: características e resumo

Características e resumo.

O nome de Friedrich Nietzsche é sinônimo de um grande filósofo. No entanto, o impacto de seu trabalho inicial, "Filosofia na Era Trágica dos Gregos", é frequentemente ignorado. Este texto oferece uma perspectiva única sobre pensadores pré-socráticos. Ele também revela o desenvolvimento intelectual de Nietzsche e o seu fascínio pela Grécia antiga.

Que ideias a exploração de Nietzsche da filosofia pré-socrática pode nos oferecer hoje? Este artigo explora o contexto histórico, as influências e os conceitos que moldaram a compreensão de Nietzsche dos primeiros filósofos gregos.

Principais conclusões iniciais

  • A "Filosofia na Era Trágica dos Gregos" de Nietzsche oferece uma lente única através da qual podemos compreender os pensadores pré-socráticos;
  • O texto explora o clima histórico e intelectual que moldou o desenvolvimento filosófico inicial de Nietzsche;
  • A interpretação de Nietzsche sobre o pensamento grego antigo, particularmente a dicotomia apolínea e dionisíaca, teve uma profunda influência em suas obras posteriores;
  • Compreender o envolvimento de Nietzsche com a filosofia pré-socrática nos fornece uma contribuição valiosa sobre os fundamentos do pensamento ocidental;
  • A relevância das ideias de Nietzsche continua a ressoar no discurso filosófico contemporâneo.

O contexto histórico da obra inicial de Nietzsche

Para compreender o profundo impacto da filosofia de Friedrich Nietzsche, é preciso mergulhar no contexto histórico e cultural de seus primeiros escritos. Seus anos de formação foram definidos pelo tumultuado cenário político e social da Alemanha do século XIX. Além disso, o ambiente acadêmico na Universidade de Basel desempenhou um papel fundamental na formação de sua trajetória intelectual.

Clima político e social da Alemanha do século XIX

A Alemanha da juventude de Nietzsche era uma nação em transformação. A unificação da Alemanha em 1871, sob a liderança de Otto von Bismarck, marcou um ponto de virada significativo. Esta fora caracterizada pelo nacionalismo crescente, rápida industrialização e a ascensão de novas ideologias sociais e políticas. Esses fatores influenciaram profundamente as reflexões filosóficas de Nietzsche, como é evidente quando nos detemos no conhecimento de sua biografia.

Ambiente acadêmico na Universidade de Basel

A permanência acadêmica de Nietzsche na Universidade de Basel foi fundamental para seu crescimento intelectual. Esta estimada instituição ofereceu um ambiente escolar vibrante, onde ele interagiu com uma gama diversificada de acadêmicos. O estudo das línguas clássicas, da literatura e da filosofia foram importantíssimos na sua formação, abrindo terreno para suas incursões posteriores no pensamento pré-socrático e na influência da cultura grega antiga em sua perspectiva filosófica.

Influências sobre o jovem Nietzsche

Os anos de formação de Nietzsche foram forjados por um amplo espectro de pensadores e intelectuais. A visão de mundo pessimista de Arthur Schopenhauer impactou significativamente sua filiação filosófica. A percepção artística e a interpretação da tragédia grega de Richard Wagner também ressoaram profundamente nas investigações filosóficas de Nietzsche.flexivo.

Compreendendo a filosofia pré-socrática através das lentes de Nietzsche

Nietzsche ficou extremamente cativado pelos pensadores pré-socráticos. Ele compreendeu tais ideias como fundamentais para a evolução da filosofia ocidental. Sua interpretação da filosofia pré-socrática influenciou sua própria criação filosófica mas também trouxa novas luzes às origens da tradição histórica da filosofia.

Nietzsche acreditava que os pré-socráticos ofereciam uma compreensão profunda e intuitiva da existência humana. Ele ficou particularmente intrigado com as investigações dos pré-socráticos em relação à natureza da existência, ao papel do divino e da experiência humana.

"Os filósofos pré-socráticos não foram meramente os precursores da grandeza de Platão e Aristóteles, mas possuíam uma compreensão mais profunda e visceral da experiência humana."

Nietzsche analisou as obras de Tales, Anaximandro, Heráclito e Parmênides. Ele percebeu em seus ensinamentos uma meditação crua e não enviesada das questões fundamentais da existência. Essa perspectiva, ele acreditava, foi perdida no idealismo socrático e platônico posterior.

Por meio de sua filosofia e obras, Nietzsche visava reviver o espírito desses primeiros pensadores. Ele defendia um retorno a uma compreensão primitiva e intuitiva do mundo. Sua interpretação da filosofia pré-socrática era uma parte fundamental de sua filosofia mais ampla. Ela engendrou seu entendimento sobre a verdade, o individualismo e os limites da racionalidade.

O papel da cultura grega antiga no pensamento de Nietzsche

O impacto da cultura grega antiga na filosofia de Nietzsche é profundo. Sua obra é enraizada em uma apreciação das complexidades e contradições dessa civilização, concentrando-se na interação dos impulsos apolíneos e dionisíacos.

A dicotomia apolínea e dionisíaca

O conceito de Nietzsche da dicotomia apolíneo e dionisíaco é essencial em sua obra de juventude. Para Nietzsche, essa dualidade captura a essência da cultura grega. O apolíneo representa razão, ordem e o belo. Em contraste, o dionisíaco incorpora os aspectos dissonantes, extáticos e irracionais da existência humana.

Tragédia grega e percepção filosófica

A análise de Nietzsche da tragédia grega, especialmente as obras de Ésquilo e Eurípides, ofereceu-lhe profundos vislumbres filosóficos. Ele entendia esses dramas trágicos como um reflexo da tensão entre os instintos apolíneo e dionisíaco. Acreditava que reconciliar essas forças opostas era crucial não só para desenvolver sua filosofia como para propor um projeto de civilização para a humanidade.

O Conceito de Filosofia Trágica

A ideia de "filosofia trágica" de Nietzsche surgiu de seus estudos de filologia e da arte da Grécia antiga. Compreendia os gregos como tendo aceitado as contradições e o sofrimento inerentes à existência humana. E, a parir disso, teriam os gregos desenvolvidos uma visão trágica de mundo que era, ao mesmo tempo, bela e afirmativa da vida. Esse conceito de filosofiia trágica se tornou uma pedra angular do legado filosófico de Nietzsche.

Principais obras e conceitos filosóficos de Nietzsche

Friedrich Nietzsche impactou significativamente o pensamento ocidental. Seus primeiros trabalhos, influenciados pela filosofia grega antiga, prepararam o cenário para seus escritos influentes posteriores. Seus livros expressam uma tendência filosófica característica, tendo como ponto de partida uma conexão com pensadores pré-socráticos que ele tanto admirava.

Em O Nascimento da Tragédia , Nietzsche explora a dicotomia apolínea e dionisíaca, um aspecto central da filosofia nietzschiana. Este conceito, derivado de seu estudo da tragédia grega, destaca a tensão do racional, ordenado e cósmico (apolínico) com os aspectos dionisíacos emocionais, primordiais e caóticos da existência humana.

"O apolíneo representa os aspectos racionais, ordenados e belos da natureza humana, enquanto o dionisíaco representa o primitivo, o emocional e o extático".

Em seus escritos ulteriores, a jornada filosófica de Nietzsche continua a se desenvolver. Ele introduziu conceitos como o Übermensch (o “superman”, ou melhor, o “sobre-humano”) e o eterno retorno. Essas ideias, influenciadas pelo pensamento pré-socrático, desafiaram noções tradicionais de moralidade, verdade e condição humana.

O profundo impacto de Nietzsche na filosofia é inegável e lançou as bases para suas contribuições revolucionárias ao pensamento moderno. Ao examinar as conexões entre sua filosofia e seu fascínio pela filosofia pré-socrática, obtemos uma compreensão mais nítida de sua influência duradoura na filosofia contemporânea.

Características e resumo

Tales de Mileto: O Primeiro Filósofo Grego

Na vasta extensão da filosofia nietzschiana, Tales de Mileto se destaca como o filósofo grego inaugural. A perspectiva de Nietzsche sobre o papel de Tales em estabelecer as bases para a investigação científica nascente na Grécia antiga nos oferece considerações profundas sobre as origens da filosofia ocidental.

A água como substância primordial

A ideia inovadora de Tales de que a água é a substância fundamental da qual toda a vida emerge ressoou profundamente em Nietzsche. Este conceito abalou as concepções mitológicas predominantes dos gregos na Antiguidade, inaugurando uma perspectiva mais racional e empírica. Nietzsche viu nas teorias de Tales a forma nascente de uma abordagem metódica e baseada em evidências para entender o mundo.

Método científico na Grécia Antiga

O exame de Nietzsche das contribuições de Tales foi além de sua teoria da água como o elemento primordial. Ele também destacou a aplicação inovadora do método científico por Tales. Este método, caracterizado pela observação, hipótese e verificação empírica, foi precursor das descobertas no campo da astronomia, matemática e filosofia da natureza por pensadores gregos subsequentes.

"Tales, o primeiro filósofo, foi quem descobriu a primazia da água como substância fundamental da natureza, da qual todas as coisas derivam e na qual todas as coisas são finalmente resolvidas."

O profundo interesse de Nietzsche no legado intelectual de Tales de Mileto refere-se às ideias originais deste filósofo que prepararam o cenário para os extraordinários avanços filosóficos e científicos que se seguiriam na Grécia antiga.

Anaximandro e o conceito do infinito

Em seu exame dos primeiros filósofos gregos, Nietzsche foi particularmente atraído por Anaximandro, um pensador pré-socrático. Anaximandro introduziu o conceito de ápeiron, ou infinito. Suas contribuições filosóficas foram importantíssimas para influenciar o pensamento de Nietzsche e sua compreensão do desenvolvimento do pensamento grego antigo.

Nietzsche explorou a noção de ápeiron de Anaximandro, a qual descreve a substância original da qual todos os fenômenos surgem e para a qual retornarão. Essa ideia do infinito como base fundamental do universo intrigou Nietzsche. Ele a compreendeu como uma mudança radical em relação às teorias mais materialistas de seus predecessores.

"O primeiro princípio de todas as coisas é o ápeiron, que é eterno e sem idade, e que abrange e orienta todas as coisas."

A interpretação de Nietzsche sobre Anaximandro enfatizou o reconhecimento na transitoriedade e impermanência inerentes de todas as entidades. Nietzsche acreditava que essas entidades passam por um ciclo de nascimento, crescimento e eventual retorno ao infinito. Esse conceito se alinhava com as próprias perspectivas de Nietzsche sobre a existência e a eterna recorrência de todos os fenômenos.

Por meio das contribuições filosóficas de Anaximandro, Nietzsche ganhou uma compreensão mais profunda dos fundamentos do pensamento grego antigo e seu impacto no desenvolvimento da filosofia ocidental. Essa exploração do ápeiron e suas implicações influenciaram significativamente as obras de Nietzsche. Também moldou suas visões distintas sobre a humanidade e a natureza da realidade.

Heráclito: A Filosofia do Fluxo Eterno

O interesse de Nietzsche em Heráclito é bem conhecido em "A filosofia na idade trágica dos gregos". Heráclito ofereceu uma interpretação inovadora da realidade. Isso ressoou profundamente na produção filosófica de Nietzsche.

A Doutrina da Mudança Universal

A filosofia de Heráclito centra-se no fluxo eterno, a noção de que tudo está em constante mudança. Nietzsche viu isso como uma profunda percepção do dinamismo do universo. Heráclito via o mundo como uma entidade dinâmica e em constante mudança, com a mudança sendo a única constante.

O papel do fogo na filosofia heraclitiana

Heráclito usou o fogo como o fundamento para a mudança constante da realidade. A transitoriedade do fogo reflete o fluxo incessante da existência. Nietzsche, em seus livros, mergulhou no significado desse conceito. Ele o viu como um elemento poderoso de criação e destruição no mundo.

O estudo de Nietzsche da filosofia de Heráclito influenciou visceralmente seu próprio pensamento.

"Todas as coisas fluem, nada é permanente”; “tudo é móvel e nada permanece fixo"; “ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem” (...). (Heráclito, de Éfeso).

Parmênides e a Natureza do Ser

Na investigação de Nietzsche da filosofia grega antiga, Parmênides ocupa uma posição central. Este filósofo pré-socrático é celebrado por sua teoria da "natureza do ser" e suas ideias influenciaram significativamente o pensamento ocidental.

Parmênides postulou que "ser" é eterno, imutável e indivisível. Ele rejeitou a ideia de mudança ou devir, afirmando que a verdadeira realidade é estática. Essa postura, opondo-se à visão heraclitiana de um mundo em fluxo constante, impactou fundamentalmente o pensamento grego antigo.

"O ser é, e o não-ser não é."

Nietzsche reconheceu a profunda influência das teorias de Parmênides na filosofia ocidental. Ele interpretou a filosofia de Parmênides do ser como uma negação do dinamismo e da criatividade que Nietzsche tanto defendia. A filosofia de Nietzsche, da vontade de poder e do eterno retorno, contrastava fortemente com a realidade estática de Parmênides.

O envolvimento de Nietzsche com as teorias de Parmênides visava revelar as implicações e limitações mais profundas dessa importante filosofia. Sua propositura das ideias de Parmênides continua a influenciar nossa compreensão da evolução da filosofia ocidental. Também alimenta debates contínuos sobre a natureza da realidade.

O Impacto na Filosofia Moderna

A análise original de Nietzsche da filosofia pré-socrática influenciou significativamente os debates filosóficos contemporâneos e provocaram extensas discussões acadêmicas.

Interpretações Contemporâneas

Hoje, os estudiosos se aprofundam nas interpretações de Nietzsche de filósofos pré-socráticos como Tales, Anaximandro, Heráclito e Parmênides. Muitos veem paralelos entre as ideias de Nietzsche e o pós-modernismo, o existencialismo e a teoria crítica. Seu foco na linguagem, nos limites da racionalidade e na importância da experiência humana na busca da verdade que é construída sobre a mentira desafia o conhecimento tradicional e as concepções de realidade.

Relevância para o pensamento moderno

Os primeiros trabalhos de Nietzsche sobre a filosofia grega continuam relevantes e iluminam as preocupações da filosofia contemporânea. Sua crítica à metafísica ocidental e o prestígio reputado à "filosofia nietzschiana" influenciam pensadores que estudam questões que afetam a vida cotidiana, muito além dos muros da universidade. Sua perspectiva sobre o ser, a fluidez da identidade e o papel do poder na formação do nosso mundo continua a intrigar e entreter não apenas acadêmicos de todas as disciplinas mas um público leigo.

Característcas e resumo

Perguntas frequentes

Quem foi Friedrich Nietzsche?

Friedrich Nietzsche foi um renomado filósofo, crítico cultural e filólogo alemão do século XIX. Ele é celebrado por sua filosofia inovadora sobre a filosofia grega antiga e seus livros que desafiam crenças morais, religiosas e filosóficas tradicionais.

Sobre o que trata "A filosofia na época trágica dos gregos", de Nietzsche?

"A filosofia na época trágica dos gregos" é o segundo livro de Nietzsche. Ela se aprofunda nas ideias filosóficas dos pensadores pré-socráticos da Grécia Antiga. A interpretação de Nietzsche desses primeiros filósofos gregos influenciou significativamente não só a sua própria obra filosófica como também a compreensão dos elementos trágicos da existência humana.

Qual foi o contexto histórico dos primeiros trabalhos de Nietzsche?

Os primeiros trabalhos de Nietzsche, incluindo "Filosofia na Era Trágica dos Gregos", foram influenciados pelo clima político e social da Alemanha do século XIX. O ambiente acadêmico na Universidade de Basel, onde ele lecionou, também desempenhou um papel significativo. Figuras e eventos importantes durante esse período tiveram um impacto profundo no pensamento filosófico de Nietzsche.

Como Nietzsche interpretou a filosofia pré-socrática?

A perspectiva única de Nietzsche sobre a filosofia pré-socrática foi central para sua estrutura filosófica mais ampla. Ele analisou as ideias dos primeiros pensadores gregos, como Tales, Anaximandro, Heráclito e Parmênides. Nietzsche interpretou seus conceitos de uma forma que desafiou os entendimentos tradicionais da filosofia ocidental.

Qual foi o papel da cultura grega antiga no pensamento de Nietzsche?

A cultura grega antiga e suas tradições filosóficas tiveram uma profunda influência no pensamento de Nietzsche. Ele explorou a dualidade apolíneo-dionisíaca, o significado da tragédia grega e o conceito de filosofia trágica. Esses elementos moldaram suas próprias perspectivas filosóficas e o desenvolvimento de suas ideias.

Quais foram as principais obras e conceitos filosóficos de Nietzsche?

As principais obras de Nietzsche, como "O Nascimento da Tragédia", "Além do Bem e do Mal" e "Assim Falou Zaratustra", estavam profundamente enraizadas em seu estudo inicial da filosofia pré-socrática. Seus conceitos filosóficos centrais, incluindo a vontade de poder, o Übermensch e a crítica da moralidade tradicional, beberam na fonte do pensamento grego antigo.

Como Nietzsche interpretou as ideias de Tales de Mileto?

Nietzsche entendia Tales de Mileto, frequentemente considerado o primeiro filósofo grego, como uma figura de relevo no desenvolvimento do pensamento científico nascente. Ele explorou o conceito de Tales de água como a substância primordial e na aplicação do método científico na Grécia antiga. Nietzsche acreditava que isso teve um impacto amplo na trajetória da filosofia ocidental.

Qual era a perspectiva de Nietzsche sobre o conceito de infinito de Anaximandro?

A análise de Nietzsche da filosofia de Anaximandro, particularmente seu conceito de infinito (ápeiron), representou um aspecto importante de seu trabalho sobre o pensamento grego. A interpretação de Nietzsche das ideias de Anaximandro e sua significância na evolução do pensamento filosófico grego primitivo influenciou seu próprio desenvolvimento filosófico.

Como Nietzsche via Heráclito e sua filosofia do fluxo eterno?

Nietzsche era profundamente fascinado por Heráclito e sua filosofia do devir eterno. Ele explorou a doutrina de Heráclito da mudança universal e o papel simbólico do fogo em seu pensamento. Nietzsche viu esses elementos como essenciais no desenvolvimento das primeiras tradições filosóficas gregas.

Qual era a perspectiva de Nietzsche sobre Parmênides e a natureza do ser?

A interpretação de Parmênides por Nietzsche e seu conceito filosófico da natureza do ser foi um aspecto significativo de seus primeiros trabalhos filosóficos sobre filosofia grega. Nietzsche analisou as ideias de Parmênides e sua influência na trajetória do pensamento filosófico ocidental.

Qual é a importância duradoura da obra de Nietzsche sobre a filosofia grega na filosofia contemporânea?

Os primeiros trabalhos de Nietzsche sobre filosofia grega, incluindo "Filosofia na Era Trágica dos Gregos", fora de suma importância, pois suas interpretações únicas de pensadores pré-socráticos continuam a ser analisadas e debatidas ainda hoje. Em suma, a filosofia nietzschiana influenciou importantes intelectuais como Martin Heidegger, Michel Foucault, Gilles Deleuze, entre tantos outros.

terça-feira, 1 de junho de 2021

A essência da amizade em Cícero

Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim, sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema, música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia, a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso orador romano Cícero, não se vive sem amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir, como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente de fato por você uma amizade sincera:

Da Amizade

“Também apelo para a autoridade daquele que o oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato, transferidos.

“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.

“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes, os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.

“Não existe, com efeito, maior peste contra a amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.

“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo fato de ter sido praticado em favor do amigo.

“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer mal-estar.

“Portanto, não é a amizade que acompanha a utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.

“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram vazios de amizade.

“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles, encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais, apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das desgraças do amigo!

“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o amigo certo nas horas incertas’.

“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que o maior iguala-se ao menor.

“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)

“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.

“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de ‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e interesse ou de vantagem.

“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora, espontaneamente, da amizade.

“Como as coisas humanas são frágeis e caducas, devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”

(Cícero, Da Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)

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Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador, retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Lógica e teoria do conhecimento em Aristóteles

Começamos a exposição do sistema aristotélico com a sua lógica. Foi ele quem constituiu a lógica como ciência particular. Os seus escritos lógicos costumam ser designados pelo nome de “Organon” (isto é, “instrumento” para conseguir o conhecimento certo da verdade).

Aristóteles

No “Organon” se contém, em primeiro lugar, a sua doutrina das categorias. As categorias são os predicados mais gerais que podem ser atribuídos às coisas, quer dizer, as afirmações mais gerais possíveis acerca delas, e que como tais são também as determinações mais gerais (formas) do ser. Aristóteles enumera as seguintes categorias:

1ª Substância (por exemplo: homem, cavalo).

2ª Quantidade (quer dizer, a que responde à pergunta: que dimensões?).

3ª Qualidade (quer dizer, como está constituída? Por exemplo: vermelho).

4ª Relação (a que se refere? Por exemplo: maior do que este).

5ª Lugar (onde? Por exemplo: no mercado).

6ª Tempo (quando? Por exemplo: ontem).

7ª Ação (por exemplo: ele corta).

8ª Paixão (por exemplo: é cortado).

A estas se acrescentam, às vezes, duas outras categorias de caráter mais especial:

9ª Posição (por exemplo: está deitado, sentado).

10ª Estado (por exemplo: está armado).

Kant objetou, com razão, que esta tábua de categorias não está sistematicamente deduzida. Não obstante, graças ao seu pequeno escrito sobre as categorias, Aristóteles situou um problema lógico fundamental, e realizou uma tentativa valiosa para resolvê-lo.

Para Aristóteles, todo o conhecimento consiste na junção de conceitos para formar juízos, e depois na combinação de juízos para formar silogismos e demonstrações. Os juízos são para ele “verdadeiros” se corresponderem as relações reais; “falsos” se esse não for o caso. Por consequência, no juízo verdadeiro representamos como unido o que na realidade está unido, e como separado o que na realidade se encontra separado. Tratou como particular com mais vagar a doutrina do silogismo e a demonstração na sua “Analítica” (quer dizer, “decomposição” do pensamento). Expondo o mais completamente possível as diversas espécies de silogismos, que ainda hoje se encontram nos manuais tradicionais de lógica, julgou fornecer um instrumento importante (Organon) para a investigação em geral. Mas, de fato, nem ele próprio faz uso nas suas numerosas obras de organon, nem fui tão pouco muito frutífera esta enumeração das formas do silogismo para o posterior desenvolvimento do pensamento científico. Mais importante é a sua doutrina dos sofismas, que desenvolve no escrito “Refutações Sofisticas”. Ali encontramos valiosas contribuições para distinguir o verdadeiro pensamento do falso, e descobrir sofismas, generalizações infundadas, inversões inadmissíveis de silogismos verdadeiros, etc. Na sua "Tópica" (ao pé da letra: Doutrina dos “lugares” onde se encontra o que se pode dizer das coisas, quer dizer: doutrina dos “pontos de vista” da maneira de tratar as coisas) oferece Aristóteles instruções para a arte da discussão tão espalhada então nas escolas filosóficas. Não desdenha nesta obra nenhuma forma de conter, enganar e contradizer o adversário.

Para ele, o supremo princípio da prova, isto é, o princípio que nem pode ser demonstrado nem de tal carece, é o de contradição. Formula-o deste modo: “É impossível que a mesma coisa corresponda e não corresponda ao mesmo na mesma relação simultaneamente” (ou, em menos palavras: é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo). Com isto se afirmava que proposições como, por exemplo, a de Heráclito – “somos e não somos” - não podem ser verdadeiras.

Como imediata como sequência deste axioma supremo (cuja evidência se compreende sem mais nada), vinha um segundo axioma, o de que “uma qualquer coisa, ou deve ser afirmada, ou negado” (isto é, o princípio de terceiro excluído). Ambos os axiomas se resume neste princípio: “de duas afirmações (diretamente) opostas, só uma pode ser verdadeira, ou então uma tem que ser verdadeira e a outra falsa”. Mencionaremos igualmente o chamado princípio de identidade (“dizer que o que é e o que não é, é verdade”). Deste modo formulou conceitualmente Aristóteles as leis formais supremas da validade objetiva dos juízos, isto é, trouxe até à consciência clara normas de pensamento a que habitualmente os homens obedecem por instinto.

Na sua teoria do conhecimento, Aristóteles inclina-se para o empirismo, para a valorização da “experiência”, o que define como observação repetida e hábito adquirido graças a ela. Considera acima de tudo importante que os fatos sejam fixados por percepção e observação; mostra-se cauteloso perante a reflexão conceitual (a especulação, o raciocínio); pode se confiar nela quando os seus resultados forem confirmados pela observação. Não obstante, continua a crer (como Platão) que só possui “saber” real, isto é, conhecimento, aquele que vai do individual ao geral, e sabe aplicar depois o geral para ajuizar e manejar o singular (o qual é a obra da “arte”, isto é, do poder).

Sem dúvida, o próprio Aristóteles deu muita imperfeita realização a estas suas opiniões teóricas. Nas suas obras, ao lado de observações sutis, se encontra outras totalmente exatas e deficientes, que não podem encontrar desculpa, nem sequer na imperfeição dos antigos meios de observação; por exemplo, de que o número de dentes do homem é superior ao da mulher; que os corvos, pardais e andorinhas ficam brancos com o frio; que a procriação da perdiz se realiza graças a um hálito procedente do macho. Nestes casos, Aristóteles aceitou, sem dúvida, crenças populares, sem as submeter à crítica. Ainda de acordo com a opinião popular, prescindiu da distinção entre qualidades “primárias” e qualidades “secundárias”, já realizada por Demócrito.

Além disso, em Aristóteles a especulação supera de muito a observação. O seu espírito inventivo não se assustava nunca perante hipóteses mais ou menos arbitrárias. E como se esforçava ao mesmo tempo por estar de acordo, tanto quanto possível, com as crenças populares, não raras vezes defende opiniões que já tinham sido denunciados como preconceitos por filósofos anteriores. Encontraremos exemplos disso, sobretudo, na sua teoria da natureza.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).