Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
O primeiro livro do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche “O Nascimento da Tragédia”, originalmente “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”, na edição de 1872, ou “O Nascimento da Tragédia, ou helenismo e pessimismo” (1886), bem que poderia também ser intitulado “O Renascimento da Tragédia”, porque é disso de que se trata. Neste livro, Nietzsche, assim como todos os pensadores alemães do século XIX, idealiza um projeto de futuro para a nação alemã (a unificação da Alemanha ocorreu um ano antes da publicação do livro, em 1871); projeto esse que, anos mais tarde, em prefácio da mesma obra, será totalmente renegado por Nietzsche. (Nietzsche passará mesmo a ter ojeriza a tudo o que é alemão).
Nietzsche |
Para entender “O Nascimento da Tragédia” é preciso levar em conta este pressuposto e ter em consideração que esta é uma obra filosófica escrita por um filólogo. É bom lembrar que, no século XIX, a filologia tinha a pretensão de, pela análise rigorosa dos textos antigos, compreender o espírito original de um povo, isto é, seu Zeitgeist. Através dos textos pré-socráticos, o filólogo Nietzsche formula um projeto nacional alemão ao qual não é nem o socialismo nem o capitalismo mas uma terceira via: a Era Trágica. O filósofo julga encontrar na tragédia a identidade autêntica do ser alemão há muito contaminada pela mundialização romana e seu decorrente ecletismo cultural, elevado ao cume na sociedade burguesa.
Todas as ideias fundamentais
das obras posteriores de Nietzsche já estão em germe n’O Nascimento da Tragédia, como a ideia do homem trágico, antecessor
do sobre-humano, além-homem ou super-homem (Übermensch);
o repúdio ao socratismo (niilismo); afirmação da vida etc.
Mas não se vai muito longe
na leitura d’O Nascimento da Tragédia
se alguns pressupostos não forem observados, como já insinuei acima. O mais
importante deles, no entanto, é a influência do filósofo Arthur Schopenhauer no jovem Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche
demonstra admiração incondicional a Schopenhauer, ao ponto de transcrever longas citações daquele filósofo. Porém, já neste livro inaugural, é possível detectar um rompimento muito sutil e, ao mesmo tempo, drástico, em relação a meta filosófica schopenhaueriana, numa orientação radicalmente inversa, como se verá mais abaixo.
Julgo necessário, para dar
algum subsídio a este resumo, fazer uma ou duas notas sobre a filosofia de Schopenhauer. (Leia também: Quincas Borba: Schopenhauer Tropical).
Assim como Nietzsche admirava
Schopenhauer, Schopenhauer considerava Immanuel Kant o maior filósofo da
Modernidade. Isso não o impediu de tecer críticas arrasadoras à filosofia de
Kant. (Sobre Kant, escrevi um guia de leitura neste site). Em primeiro lugar, Schopenhauer acaba com o realismo kantiano ao afirmar
que Kant não foi mais que um idealista radical, à maneira de um George Berkeley.
Isso porque é extremamente obscuro na filosofia kantiana o como se dá a apreensão da realidade exterior ao sujeito cognoscente pelas categorias da intuição. Procurando respostas, Schopenhauer a encontra na
1ª. edição da “Crítica da razão pura”, isto é, na lei de causa e efeito, suprimida nas edições posteriores. Ou seja,
é pelo efeito recebido na intuição que a coisa
é dada espontaneamente à subjetividade transcendental. Todavia,
dentro da arquitetura filosófica kantiana, a lei de causa-efeito deveria vir
depois da intuição (pré-condição do entendimento), num segundo nível de
abstração, nas categorias do entendimento, sendo contraditório
estabelecê-la preliminarmente. Seria como colocar o carro adiante dos bois. Ora,
sendo assim, não haveria um único acesso entre o sujeito e a coisa-em-si, e a realidade exterior, tal como ela é, em sua essência verdadeira e não aparente, só poderia ser deduzida idealmente, sem nenhuma garantia de realidade, por uma suposição
extremamente frágil. Eis a cilada em que a filosofia kantiana preparou para si
mesma: a objetividade não passa de fenômeno ou de representação imanente à subjetividade, sem fundo real.
Neste caso, Kant não consegue sair da armadilha idealista pela qual sem sujeito não há
objeto. Ao tentar levantar o véu de ilusões (Phainomenon), Kant descobriu apenas mais uma fantasia: a comprovação da existência da
realidade exterior (Noumenon) ao
sujeito. Vã ilusão. O mundo é representação.
Em suma, a consciência
jamais pode conhecer o mundo nem tocar o seu âmago, sendo a coisa-em-si apenas
uma hipótese forçada. É aqui que entra Schopenhauer. Este filósofo crítica o
modo como Kant entende a intuição, demasiadamente abstrata. Schopenhauer propõe
uma intuição concreta, sensível, situada no corpo, ao nível do inconsciente e
irredutível ao princípio de razão, mas pela qual nos diz muito além do mundo
como representação, isto é, a sua essência verdadeira, enquanto querer viver. Pela intuição, descobre-se
que o que está por de trás do mundo fenomênico: a vontade. Esta descoberta é inferida, segundo nos diz Schopenhauer, da
própria lavra kantiana, mais exatamente, da 3ª. antinomia, a da liberdade. Se a
razão é limitada, não indo além das aparências e de suas próprias
condições de conhecimento, na prática e para além da razão, a liberdade é a coisa-em-si, que move
toda a cadeia de causa e efeito dos fenômenos empíricos.
(Tese da 3ª. antinomia
kantiana: “A causalidade segundo leis da natureza não é a única da qual possam
ser os fenômenos do mundo em conjunto. Para explicá-los é necessário admitir
ainda uma causalidade mediante liberdade”).
Se eu, enquanto indivíduo, sou
apenas fenômeno, pois assim me represento pelo entendimento, mas posso intuir
um querer viver em mim, como liberdade e vontade (coisa-em-si, númeno), então,
por analogia, posso presumir que tudo que existe e se manifesta fenomenicamente
também é, fundamentalmente, vontade. Ou seja, há uma metafísica (literalmente:
além da física) em Schopenhauer, algo como o espírito da matéria na filosofia
de Francis Bacon ou, mais acertadamente, a Ideia, a unidade e a multiplicidade
em Platão. ("Schopenhauer", de Thomas Mann, 17o. de nossa lista de eBooks). Ou ainda, uma “infrafísica”, una é indistinta, sob o múltiplo
incontável dos fenômenos individuais, como causa primeira e eterna (atemporal), totalmente avassaladora. O mundo é vontade.
A vontade é una e se
manifesta ao entendimento em coisas individuais (principium individuationis). Numa analogia tomada da
filosofia oriental por Schopenhauer, a vontade é o oceano, enquanto as coisas
individuais, as ondas em sua superfície. Mas o mundo fenomênico, diz o filósofo, é semelhante ao
estado de natureza hobbesiano, uma guerra de todos contra todos. O universo é
caótico e está em conflito permanente, onde todas as coisas lutam ferozmente para
subsistir. A vontade é este impulso onipotente que nos faz ir de encontro a
alguma coisa, sem sabermos porquê e sem poder controlar. É o desejo que depois de
saciado torna-se tédio para depois tornar-se desejo novamente e, assim,
inesgotavelmente. Donde se conclui que deixar-se estar à mercê da vontade é
muito doloroso.
É bem conhecida a
aproximação da filosofia de Schopenhauer às religiões orientais. Tal
aproximação é muito pertinente. A máxima budista pode nos ensinar muita coisa
sobre a meta filosófica schopenhaueriana. Vejamos: 1) Tudo é dor; 2) A dor
nasce do desejo; 3) A dor se extingue com a extinção do desejo (Siddhartha
Gautama). É bem disso de que se trata a filosofia de Schopenhauer: um antídoto contra
a vontade. E esse antídoto é a arte. A vontade sublimada na arte, eis o ideal
ascético de Schopenhauer.
Aqui o ponto fulcral d’O Nascimento da Tragédia. Nietzsche
aceita o fundamental em Schopenhauer, mas não a sua conclusão. Sem citar nomes,
Nietzsche renega o “budismo filosófico” contido na filosofia schopenhaueriana.
A verdadeira arte, para
Nietzsche, é justamente aquela que, não apenas aceita, mas deseja os efeitos da
vontade, por mais dolorosos que sejam. Nietzsche identifica esta arte na
tragédia grega e no estilo de vida do homem heleno pré-socrático.
A arte em Nietzsche não é
apenas uma esfera de uma especialidade, restrita a entendidos ou eruditos, mas
a própria vida. Viver tragicamente é fazer da vida uma obra-prima e, por
conseguinte, afirmar a vida.
Para efeitos didáticos,
dividi o meu resumo em quatro tópicos, conforme os aforismos que estruturam o
livro: Item 1 – 4: Caracterização da
tragédia: o apolíneo e o dionisíaco; Item 5 ao 10: A origem da tragédia ou genealogia da tragédia; Item 10 ao 15: O suicídio da tragédia ou “o homem teórico”;
e Item 16 ao 25: O renascimento da
tragédia.
Como a minha intenção inicial
não era publicar este resumo e, sim, para estudo próprio, não me preocupei em
transcrever nas citações trechos do livro de modo ipsis litteris, e por isso registram, talvez, um grau bastante
grande de interpretação minha, motivo pelo qual não indiquei as páginas. Também
não sei exatamente até que ponto fiz das palavras de Nietzsche minhas palavras.
Este resumo foi escrito a três anos atrás e, como disse, não tinha intenção de
publicá-lo. Por isso, peço desculpas também pelo estilo apressado e um pouco descuidado
do texto.
Item
1 – 4: Caracterização da tragédia: o apolíneo e o dionisíaco
Nietzsche recorre à ciência
estética para tratar das questões fundamentais acerca da existência – ou, se se
quiser, da verdade da vida – e da essência do mundo (“coração do mundo”), pois,
segundo o autor, “só enquanto fenômeno estético é que a existência e o mundo
surgem legitimados” [ou ainda: “só como fenômeno estético é que a existência e
o mundo encontram uma legitimação eterna”]. Para isso, o autor vai buscar no
mundo helênico um “modelo” de reflexão (para os dilemas de sua época – atualidade),
dado que os gregos tornavam inteligíveis as doutrinas misteriosas e profundas
da sua visão artística, não por meio de conceitos, mas pelas figuras claras do
seu mundo de deuses. Portanto, o que está em jogo aqui é algo do imponderável e
inacessível ao pensamento racional vinculado ao entendimento, ao qual só pode ser
compreendido pela via direta da manifestação artística. Sendo assim, sempre de
acordo com o Nietzsche, os gregos lidavam com os mistérios da existência e do
mundo (ensinamentos secretos) de forma direta, ou intuitiva, não conceitual, e,
daí, representavam na forma de seus deuses as questões mais cruciais da
existência. Pode se dizer então, que é das profundezas mais íntimas da natureza
que surgem impulsos ou poderes artísticos, sendo o artista um “imitador” dessas
potências. Daí que a natureza ou as manifestações fisiológicas do corpo humano
são consideradas a fonte desses impulsos artísticos. Para os gregos antigos, a
arte expressava uma monstruosa oposição, da qual Apolo e Dioniso apareciam como
divindades antagônicas, fonte dos impulsos artísticos. Apolo está associado às
artes plásticas e à poesia épica; enquanto Dioniso, à música – arte
não-imagética (também a poesia lírica). Estes deuses estão em constante
“divergência aberta, provocando-se para criar novos nascimentos cada vez mais
vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra arte só
aparentemente supera; até que finalmente, através de um miraculoso ato
metafísico da ‘vontade’ helênica, eles surgem acasalados e, neste acasalamento,
acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática”
(Nietzsche).
Para nos aproximarmos mais
do significado da duplicidade de Apolo e Dioniso enquanto manifestações
artísticas e fisiológicas, Nietzsche propõe a seguinte analogia: o impulso
apolíneo está para o sonho assim como o dionisíaco, para o êxtase. O sonho é
uma representação que busca estabelecer uma redenção consoladora no coração do
mundo, essencialmente caótico e contraditório. O sonho, assim como a realidade
fenomênica, é o véu de Maya de que falava Schopenhauer, ou antes, o véu das
ilusões, e encobre ou sublima o estarrecedor, o Uno-primordial (verdadeiro existente),
conferindo, ao mesmo tempo, unidade individual através da aparência, isto é, do
principium individuationis. Na
verdade, o sonho é uma aparência na aparência (a realidade fenomênica), a outra
metade da vida, e ainda mais importante que a vigília, porque é “uma satisfação
mais elevada do apetite primevo da aparência” (Nietzsche). Foi durante o sono
que surgiu, pela primeira vez, o magnífico mundo dos deuses. O escultor via as
figuras sobre-humanas e o poeta interpretava os sonhos. Já Dioniso (Baco para
os romanos) é o deus da embriagues, da música e da dança. O voluptuoso elemento
dionisíaco rasga o véu de Maya e quebra o princípio de individuação; o
individuo, sob a influência da bebida narcótica ou da chegada da primavera, se
dissolve, numa auto-alenação, misturando-se numa união que não reconhece
limites entre outras pessoas, a natureza e o Uno-primordial. Sua manifestação é
recorrente a todos os povos do mundo antigo, desde a Ásia Menor, Babilônia e
Roma, outrora denominados pelos gregos de povos bárbaros (não civilizados), e
aparece nas suas festas orgiásticas, nas quais todos os valores são transfigurados
e toda uma ordem social é invertida: o escravo se torna senhor e o senhor,
escravo etc. (Hoje, com muitas reservas, o “carnaval” pode ser um exemplo
comparativo).
Na época de Nietzsche,
Dioniso era um deus tardio no panteão grego (atualmente, essa concepção é
refutada). Dioniso vinha do oriente e, a
princípio, deve ter causado muito espanto na sociedade helênica. Na verdade, a
consciência apolínea – homérica e “ingênua” – cobria com um véu o mundo
dionisíaco. Este, de fato, já lhe era familiar, na guerra dos Titãs. A vitória
dos deuses olímpicos sobre o tenebroso mundo titânico foi como um desabrochar
de rosas num espinheiro. Segundo Nietzsche, a chave da montanha mágica do
Olimpo está na terrível lição dada por Sileno ao rei Midas, o sábio companheiro
de Dioniso. Eis a sabedoria de Sileno: Melhor seria nem ter nascido, não ser
nada, já que um dia tem de se partir! O grego conheceu os temores e horrores de
existir (Nietzsche). A existência dos deuses do Olimpo – tão humanos! – surge
como um espelho transfigurador, como algo a ser desejado (a imortalidade), como
vida a ser vivida. O que nos quer dizer o elemento apolíneo, no seu prazer na
contemplação, é esquecer completamente o dia, os constrangimentos da vida
cotidiana. O sonho é um anestésico da dor primordial que é único fundamento do
mundo, e a serenidade indolor é o simbolismo da arte apolínea. As fronteiras do
indivíduo deviam ser meticulosamente preservadas na obsessão da medida e do autoconhecimento.
Eis que surge então Dioniso e revela novamente que toda a beleza está assentada
sobre o subsolo do sofrimento e no conhecimento. Assim, o desmesurado da
natureza, o desmedido dionisíaco mostra-se como verdade, a contradição: o
apolíneo foi aniquilado. A reação apolínea será o Estado dórico e a arte
dórica.
Nietzsche então caracteriza
quatro períodos artísticos (fase mais antiga da história helênica): idade do
bronze (titano-maquia); mundo homérico, esplendor ingênuo; torrente invasora do
dionisíaco; e arte dórica. Porém, Nietzsche põe sérias dúvidas com relação a
“serenidade” dos gregos que foi legada para a posteridade, e aponta um período
na arte grega, anteriormente expresso como um miraculoso ato metafísico da
vontade helênica de conciliação dos elementos apolíneo e dionisíaco: a tragédia
ática e o ditirambo dramático.
Apesar de chamar Rafael de ingênuo, Nietzsche usa o quadro Transfiguração para representar o impulso apolíneo (acima) e o dionisíaco (abaixo) |
Item
5 ao 10: A origem da tragédia ou genealogia da tragédia
A partir daqui, Nietzsche
vai situar os elementos que constituem as origens da tragédia: “aproximamo-nos
agora do verdadeiro objetivo da nossa investigação” (Nietzsche). Nietzsche
contrapõe, à poesia épica de Homero, o poeta lírico Arquíloco, que teria unido
poesia e música, ou melhor, introduzido a canção popular na literatura, e é,
considerado pelo filosofo, como um artista dionisíaco. O processo de composição
da poesia lírica é elucidado, segundo Nietzsche, por Schiller, que antes do ato
da criação poética se preparava através de um estado de ânimo musical.
Novamente Nietzsche refuta a ciência estética que entende o poeta lírico como
um transbordar de subjetividade que inunda, contaminando, todo o mundo
objetivo. Para Nietzsche, o artista lírico já abdicou de sua subjetividade
quando se fez artista dionisíaco, pela música, ao se tornar um só ao
Uno-primordial. (A música é uma repetição do mundo, ou melhor, do
Uno-primordial). Assim, o “eu” (lírico) – essa pequena palavra – não passa de
uma ilusão apolínea que expressa dor e contradição, em imagens e símiles, do
coração do mundo. Curiosamente, não há aqui um sentido pejorativo de alienação,
ao contrário, é a auto-alienação que caracteriza a lírica: fusão do poeta com o
artista primordial do mundo, tornando-se, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. (Nota:
Salvo engano, o termo “alienação” foi empregado por mim como antídoto do principium individuationis).
Assim, entre os gregos, ou a
linguagem imita aparência (poesia épica) ou imita a música (canção popular,
poesia lírica). Segundo Nietzsche, o impulso dionisíaco é o substrato da música
e da poesia popular. A melodia é o que é de primeiro e mais universal, e
procura objetivamente uma aparência onírica que exprime textualmente como
poesia; “a melodia lança a sua volta centelhas de imagens” (Nietzsche). De
certo modo, a melodia intensifica a imagem que, não podendo ficar indiferente
ao poder da música, manifesta em sua transfiguração a verdade dionisíaca
(contradição e dor primordial do Uno-primordial). Portanto, a poesia lírica
imita exteriormente, por meio de imagens e conceitos, a música, a qual aparece
como vontade, não de modo totalmente contemplativo (estético), isento de
vontade (inestético ou não arte). Eis o fenômeno lírico: “como gênio apolíneo,
interpreta a música através de imagens do querer, enquanto ele próprio,
totalmente liberto da avidez da vontade, é puro e imaculado olho solar” (Nietzsche).
Porém, o sentido mais profundo da música não pode ser comunicado pela
linguagem, que só pode estar junto dela, em seu exterior.
Seguindo os passos da
tragédia, Nietzsche enfatiza que, conforme a tradição, no início a tragédia era
apenas coro, sem representação dramática. Nietzsche afirma que para os modernos
sempre foi desconcertante como a tradição identificava a origem da tragédia ao
coro, algo que nunca foi bem compreendido. Nietzsche refuta a ideia de que o
coro estaria associado a uma instância constitucional de representação da
participação popular (democracia no sentido moderno!), pois, além de os gregos
não conhecerem, na era da tragédia, tal formação política, tal concepção seria
um sacrilégio a origem religiosa do coro. Também Nietzsche recusa a proposta de
Schlegel no qual o coro seria como um “espectador ideal” que acredita estar
vendo diante da cena uma realidade empírica e não uma obra de arte. O que é um
absurdo, porque espectador, ideal ou não, pressupõe um espetáculo que não existia na origem da tragédia (coro em si). Para
Nietzsche, a melhor interpretação do coro da tragédia é a de Schiller. Este
escritor entende o coro como uma muralha viva que protege, do mundo real, o
chão ideal e a sua liberdade poética. A definição de Schiller é como um
antídoto contra a veneração do conceito de natural e do real (século XIX): “a
introdução do coro é o passo decisivo pelo qual se declara aberta e lealmente
guerra a todo e qualquer naturalismo na arte (‘pseudo-idealismo’ de Goethe e
Schiller)”. A tragédia não suportava “efetuar uma penosa retratação servil da
realidade” (Nietzsche). O mundo representado pela tragédia não era uma simples
fantasia, mas gozava da credibilidade dos deuses olímpicos. O grego civilizado
se sentia suspenso pelo coro satírico. Mas não só ele, o Estado e sociedade
também. E abolido todos os limites e fronteiras do indivíduo, unido a um
sentimento que “reconduz ao coração do mundo”, “a vida, no fundo das coisas, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” (Nietzsche), apesar das mudanças
da aparência fenomênica (consolo metafísico). “É nesse coro que o heleno se
conforta, correndo o risco de ansiar por uma negação budista do querer, mas ele
é salvo pela arte e através da arte salva-se nele: a vida” (Nietzsche).
Nietzsche interpreta Hamlet
neste sentido, contestando a interpretação corrente, que o analisa como um
homem reflexivo e indeciso diante das múltiplas possibilidades a seguir. Na
verdade, Hamlet, de modo análogo ao estado de êxtase do homem dionisíaco, lança
um olhar à essência das coisas (“horrenda verdade”), sentindo náusea diante do
absurdo da vida, sabendo que não pode mudá-la (a essência): “o conhecimento
mata a atuação, para atuar é preciso esta velado pela ilusão. (...) na
consciência da verdade o homem vê agora apenas o aspecto horroroso e absurdo do
ser” (sabedoria de Sileno - Nietzsche). Só a arte pode curar e transformar o
absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: o
sublime e o cômico.
Perseguindo os rastros da
tragédia, Nietzsche constata que no início da tragédia não havia separação
entre público e coro: “tudo era um grande e sublime coro de sátiros bailando” (Nietzsche);
e faz uma contraposição entre o sátiro (proto-imagem do homem) e a civilização.
Ou dito de um modo kantiano, o sátiro está para a coisa-em-si como a mentira da
civilização, para o fenômeno. O sátiro barbudo é um arauto da sabedoria
profunda da natureza (“símbolo da onipotência sexual da natureza”, Nietzsche),
enquanto o pastor idílico, nostalgicamente forjado, é uma caricatura ilusória
ou um simulacro da natureza inventado pelo homem civilizado e moderno. Ao
contrário, o heleno aceita a verdade dionisíaca, e a tentativa de comparar o
pastor com o sátiro não é senão uma tentativa afetada e artificial.
A separação dos espectadores
dionisíacos e dos encantados servidores dionisíacos se dá muito posteriormente.
Então, Nietzsche busca explicar como do coro trágico se desdobrou o drama.
Primeiro, faz uma alusão ao verdadeiro poeta, que escreve por metáforas e não
por conceitos. A metáfora é uma imagem substitutiva que está na frente do
poeta, que “vive cercado de figuras que vivem e atuam diante dele” (Nietzsche).
Segundo o filósofo, a poesia não está fora do mundo e, portanto, não é uma abstração,
ao gosto dos modernos, pois se falamos de modo abstrato quando falamos de
poesia é porque estamos acostumados a maus poetas. É isso que diferencia, em
termos dionisíacos, a poesia da dramaturgia, enquanto fenômeno estético: “a
faculdade de ver incessantemente um jogo vivo e de viver rodeado de hostes de
espíritos, é-se poeta; impulso de metamorfosear e passar a falar de dentro de
outros corpos e almas, é-se dramaturgo” (Nietzsche). Portanto, o coro vê a si
mesmo transformado e atuando como um personagem (protofenômeno dramático).
O coro ditirâmbico é
composto por atores inconscientes, uma multidão enfeitiçada, numa verdadeira
renúncia de suas individualidades, tornando-se “servidores intemporais de seu
deus, vivendo fora do tempo e fora de todas as esferas sociais” (Nietzsche). E
desse êxtase dionisíaco, o drama é a sua transfiguração em imagens apolíneas,
falando com todo simbolismo da dança, da música e da palavra. Dioniso sai do
coro e entra em cena mascarado, na figura de Apolo, como herói épico. Nesse
sentido, a tragédia é uma contradição estilística: “linguagem, cor, mobilidade,
dinâmica do discurso entram, de um lado, na lírica dionisíaca do coro e, de
outro, no onírico mundo apolíneo da cena, como esferas completamente distintas
de expressão” (Nietzsche).
Agora, na minha opinião,
chegamos a um dos momentos mais importantes do livro. Nietzsche vai definir
brilhantemente o cerne do trágico. A princípio, observa que a superfície da
tragédia é marcada pela clareza do diálogo sofocliano. Essa clareza é comparada
ao fenômeno óptico de olhar o sol e depois ver manchas escuras que são como um
curativo dos olhos. Porém, na caracterização da tragédia, Nietzsche inverte a
natureza do fenômeno. Na tragédia, as manchas são claras [a dita serenidade dos
gregos], porque o olhar se fixou na escuridão, ou melhor, numa “noite medonha”
do saber dionisíaco. O que Nietzsche está dizendo é que há uma dialética
[negativa] inerente ao conhecimento. Conhecer a verdade é transgredir a
natureza, é dominá-la, voltando-se contra ela. O conhecimento é ao mesmo tempo
a perdição de quem conhece: “a sabedoria [dionisíaca] é um horror antinatural,
que aquele que pelo seu saber precipita a natureza no abismo da destruição, há
de experimentar em si próprio a desintegração da natureza” (Nietzsche). Aqui,
Nietzsche utiliza-se do exemplo de Édipo, o decifrador de enigmas, que, ao
“desatar o nó processual”, descobre-se culpado e autor de crimes que são
verdadeiras aberrações contra a natureza [prever o futuro, incesto e
patricídio]. No entanto, Édipo, em sua “glória de passividade”, é redimido [em
“Édipo em Colono”], numa transfiguração infinita – que são como as manchas
luminosas que surgem do abismo a que se voltou o olhar. Outro exemplo, porém de
sentido inverso, ou seja, como um exemplo de “glória na atividade”, é o de
“Prometeu acorrentado”, de Ésquilo. No mito, o titã Prometeu ensina aos seres
humanos a dominar o fogo e por isso é punido por Zeus. O fogo é o símbolo da
cultura nascente, é quando os seres humanos adquirem autonomia em relação aos
deuses: “o homem, alçando-se ao titânico, conquista por si a sua cultura e
obriga os deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem
na mão a existência e os limites dela” (Nietzsche). Segundo Nietzsche, Ésquilo
tem um profundo sentimento de justiça ao equiparar deuses a seres humanos e
colocá-los ambos sob o pêndulo do destino [Moira]. Através da sabedoria [da
dominação da natureza] os seres humanos se igualam aos deuses, não sem sofrer
as consequências disso. O que está por trás de tudo isso é, na verdade, o
sofrimento das dores da individuação, do indivíduo que aspira ao titânico, ao
autoconhecimento [apolíneo], das medidas e da justiça, e ao mesmo tempo sua
dissolução nas profundezas da essência contraditória do mundo. É interessante
que Nietzsche compara estes dois mitos [Édipo e Prometeu], de origem ariana
[indo-europeia], ao mito semítico do pecado original. No paraíso, só havia uma
restrição a Adão e Eva: comer o fruto proibido da árvore do conhecimento.
Assim, entre os semitas, o pecado é atribuído à mulher, ou às qualidades
[supostamente] femininas, como a curiosidade, que são tidas como negativas. Já
entre os Arianos há uma certa positividade na transgressão e no sacrilégio. Na
tragédia, o elemento apolíneo aparece como uma máscara [manchas luminosas] que
transfigura a essência verdadeira do mundo que só é de fato conhecida pelo
perturbador elemento dionisíaco. O castelo de areia é desmanchado pelas ondas
sucessivas da maré dionisíaca.
(Gostaria de notar um
possível paralelo do item 9 [exposto no parágrafo acima] com a passagem de
“Ulisses” do livro “Dialética do esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer).
Portanto, na tragédia Apolo
fala por Dioniso. As máscaras, dos personagens, representam o processo doloroso
da individuação do qual o herói épico se debate e se vê emaranhado; mas, tão
logo, o feitiço da individuação é enfim rompido, por uma unidade restabelecedora
própria do elemento dionisíaco. A música [“pressentimento nostálgico de um
mundo metafísico”, Nietzsche] ressignifica o mito olímpico decadente (tornado
dogmático, histórico e pragmático: fim das religiões, segundo Nietzsche), ao
qual chega a seu contendo mais profundo, libertando Prometeu, desde então,
aliado de Zeus. Porém, o apogeu da tragédia é ao mesmo tempo seu fim: “após
esta última florescência, suas flores murcham” (Nietzsche). A tragédia morre
nas mãos de Eurípedes.
Item
10 ao 15: O suicídio da tragédia ou “o homem teórico”
Não há espaço para a
individualidade na tragédia grega; ao contrário, a individualidade é marca do
cômico. Na infância, Dioniso foi despedaçado pelos titãs e, a partir disso,
padece do mal da individuação. Mas a individuação é, na verdade, a fonte de
todo sofrimento e o dever da arte é romper com o seu feitiço: o culto público
da tragédia e sua música, entre os gregos. É o culto dos mistérios indizíveis,
inacessíveis à razão. Porém, um movimento contrário marca o fim de todas as
religiões: “Os pressupostos míticos sistematizados sob os olhos severos e
racionais de um dogmatismo ortodoxo, como uma suma acabada de eventos
históricos” (Nietzsche). Nas artes dramáticas, o suicídio da tragédia se dá
pelas mãos de Eurípedes, com a nova comédia ática.
Eurípedes leva o homem
vulgar (o burguês), da vida cotidiana, ao palco que, por afinidade, compreende
bem o que os personagens dizem. Não há mais mistérios, tampouco segredos, tudo
é revelado por um dialogo cristalino e o expectador é habilitado a fazer juízos
sobre o enredo dramático. Eurípedes representa a mediocridade burguesa que
aspira status político: a mentalidade do escravo chega ao poder, a mentalidade,
não o escravo. É o que Nietzsche chama de serenojovialidade grega, isto é, fuga
a um gozo confortável; “como se nunca tivesse existido um século VI, com seu
nascimento da tragédia, com seus Mistérios, seu Pitágoras e Heráclito: não
podem ser explicados por uma tal serenojovialidade” (Nietzsche).
Mas, diferentemente de
Ésquilo ou Sófocles, Eurípedes se sente superior ao público e às massas.
Eurípedes respeita apenas dois expectadores, que, tal como ele, não entendiam a
tragédia: um deles era ele próprio, como pensador e não poeta. Eurípedes
assistiu as peças de seus antecessores e percebeu nelas alguma coisa de
incomensurável e profundidade enigmática, uma infinitude de fundo, duvidosas
soluções éticas, que devia ser corrigida, ou melhor, esclarecida. Para
Eurípedes, o entendimento estava na gênese de toda a criação artística e devia
predominar na obra de arte, isto é, os impulsos apolíneos em detrimento de
Dioniso. O outro expectador era Sócrates (que na República de Platão expulsa os
poetas da polis). E Sócrates só assistia as peças de Eurípedes.
Assim como Penteu, de as
Bacantes, Eurípides resistiu a Dioniso mas, por fim, após sucumbir ao poder de
Dioniso, tenta se redimir do estrago que já tinha sido feito por ele. O
apolíneo era o domínio da tendência socrática na arte, que devia encantar com o
prazer na aparência e ser representado em tons realistas: “o socratismo
estético cuja suprema lei é tudo deve ser inteligível para ser belo”
(Nietzsche). Esta é a função do prólogo em Eurípedes, tirar toda a dúvida sobre
a realidade do mito. Eurípedes pode ser comparado ao primeiro poeta sóbrio em
meio a beberrões. Em suma, Eurípedes: poeta do socratismo estético; socratismo:
princípio assassino da tragédia.
Sócrates é o precursor de
uma nova cultura, arte e moral (que Nietzsche vai chamar mais tarde de
niilismo). O instinto se converte em crítica, sob a égide da lógica e do
conceito, portanto, da ciência. Tudo aquilo que não pode ser medido,
classificado e explicado não deve ser considerado. Em Sócrates, é proibido
olhar para os abismos dionisíacos: “arte trágica nunca diz a verdade e é
dirigida àqueles que têm pouco entendimento” (Nietzsche). E ainda: “Platão,
quando jovem poeta trágico, queimou seus poemas para se tornar discípulo de
Sócrates” (Nietzsche). Segundo Nietzsche, é Platão, com seus diálogos
socráticos, que fornece à posteridade o protótipo do romance. Para Platão, a arte
é imitação da realidade empírica aparente, na qual, no entanto, não é senão uma
aparência sombria da verdadeira realidade: o mundo das ideias. Ou seja, a arte
ocupa um lugar menor em relação à episteme.
Eis o ideal de ciência: corrigir o mundo, tal como ele é. Eis o otimismo
socrático: “a dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a
música da tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que
cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados, como
simbolização visível da música, como o mundo onírico de uma embriaguez
dionisíaco” (Nietzsche). No socratismo, o erro deve ser evitado e a verdade
descoberta por detrás da aparência, através de conceitos, juízos e deduções, em
busca da totalidade...
O suicídio da tragédia marca
uma nova era, a do homem teórico. Sócrates é primeiro homem teórico, homem
abstrato, o sacerdote da ciência. “Para Lessing, o mais honrado dos homens
teóricos, importava-lhe mais a busca da verdade do que a verdade mesma: segredo
fundamental da ciência, para desgosto dos cientistas” (Nietzsche).
Porém, a razão naufraga em
sua própria ilusão: corrigir o mundo. O conhecimento racional não pode ir além
de seus próprios limites tautológicos e navegar no oceano do imponderável. Da
falência do projeto otimista irrompe o conhecimento trágico, do qual necessita
da arte como proteção. Mas o trágico, hoje, só pode nascer do espírito da
música.
Item
16 ao 25: O renascimento da tragédia
Aqui Nietzsche fala em
esperança do ser alemão, utilizando-se, literalmente, da expressão renascimento da tragédia. Reiterando os
argumentos, em oposição a todos aqueles que derivam a arte de um princípio
único, Nietzsche propõe, como vimos, dois mundos artísticos, Apolo e Dioniso.
Apolo: gênio transfigurador do principium
individuationis: verdadeira redenção na aparência. Dioniso: grito de júbilo
místico, rompendo o feitiço da individuação e abrindo caminho para as Mães do
Ser, para o cerne mais íntimo das coisas. Novamente, oposição entre as artes
plásticas e a música. Foi Schopenhauer quem descobriu a música, diferentemente
das demais artes fenomênicas, como reflexo da vontade, da metafísica, da
coisa-em-si. Wagner asseverou sobre os princípios estéticos da música, não segundo
a categoria de beleza, portanto, diferentes das artes figurativas.
A música é a arte dionisíaca
por excelência; esta aniquila a aparente individualidade que se desfaz em vida
eterna: “‘Nós acreditamos na vida eterna’ assim exclama a tragédia; enquanto a
música é a Ideia imediata dessa vida” (Nietzsche). O eterno prazer da
existência não está no fenômeno, nas aparências, mas por detrás dele, no uno
vivente, a vontade do mundo. A arte dionisíaca é um consolo para os horrores da
existência individual. A tragédia grega nasceu da música, da estruturação do
coro. Pouco importa a fala dos personagens, pois “o mito não encontra de
maneira alguma a sua objetivação adequada na palavra falada” (Nietzsche). São
os atos dos heróis que importam. O espírito da música, da lírica até a tragédia
ática, a verdade dionisíaca, pode se irromper a qualquer tempo. “Será que ela
não voltará a elevar-se um dia, como arte, para fora de sua profundeza
mística?” (Nietzsche).
Aqui entra em conflito a
ciência e o impulso da tragédia que pode brotar na sociedade alemã. Luta
terrível entre eternos contrários. “Só depois de conduzido a seu limite o
espírito da ciência e de aniquilada a sua pretensão de validade universal
mediante a comprovação desses limites, dever-se-ia nutrir esperança de um
renascimento da tragédia” (Nietzsche). Toda a esperança deve-se concentrar na
música, como resistência dionisíaca à potência do conceito. Mas não uma música
subordinada às imagens, ou melhor, música degenerada, pintura sonora, “pois o mito quer ser sentido intuitivamente como
exemplo único de uma universalidade e veracidade de olhos fitos infinito
adentro” (Nietzsche). A música deve exprimir o ser interno, a vontade mesma.
Por isso nada de imagens como tiro de canhões, marchas, trombetas para
representar uma guerra e outros tipos de recursos semelhantes que, na verdade,
empobrecem a fantasia. Pois tais representações empobrecem as próprias imagens.
Já em Sófocles começamos a
respirar o ar antecipador do mundo teórico. Em Eurípedes e a nova comédia
ática, há máscaras somente. “Onde foi parar o espírito [da música] formador de
mitos?” (Nietzsche). Quando o espírito da música não está mais na tragédia, já
não existe mais tragédia. No drama de Eurípedes o herói, depois de tantas provações,
é recompensado no final. O dramaturgo também inaugura o deus ex machina, como um substituto do enigma metafísico: “deus ex machina – deus das máquinas e
crisóis: forças dos espíritos naturais conhecidas e empregadas a serviço do
egoísmo superior, que acreditava numa correção do mundo pelo saber, de uma vida
guiada pela ciência; serenojovialidade ele diz para a vida: eu te quero, tu és
dignas de ser conhecida” (Nietzsche).
A vontade é insaciável, não
apenas deseja, satisfeito o desejo, sente tédio, até surgir um novo desejo, que
deve ser loucamente saciado, e assim sucessivamente. Como escapar deste girar
infinito? Como sublimar a força irresistível da vontade? Através do
conhecimento, a saída socrática. Ou através da arte (saída schopenhaueriana).
Ou a saída trágica, o consolo metafísico (nietzscheniana): aceitação da
vontade. Três modos de encarar a existência: cultura alexandrina (socrática),
helênica (nietzscheniana) ou budista (schopenhaueriana).
O homem teórico trabalha a
serviço da ciência moderna. Submete tudo a seu crivo, inclusive a arte. Fausto,
de Goethe, é o protótipo do homem teórico. Eis a meta do iluminismo: melhorar o
mundo através da razão (ciência). “Essa
cultura universal do saber se converte paulatinamente na ameaçadora exigência
de semelhante felicidade terrena alexandrina, no conjuro de um deus ex machina euripidiano”
(Nietzsche). A ciência conduz necessariamente ao socialismo, pois a injustiça é
um mal que pode ser reparado por uma organização social mais racional, em prol
da justiça social e da igualdade de todos. Nietzsche observa como o moralismo
imiscuído na dignidade e virtude do trabalho cai por terra quando confrontado
pela ciência: o trabalho é tão somente humilhante exploração e desumanização. E
os explorados, motivados pelo ideal de transformação conferido pela ciência,
também querem mudar a situação aviltante a que estão submetidos. A cultura
alexandrina (socrática) leva a uma contradição insolúvel, pois ela depende de
uma classe de explorados para subsistir. “A cultura alexandrina necessita de
uma classe de escravos para existir de forma duradoura: uma vez gasto o efeito
de palavras acerca da ‘dignidade da pessoa humana’ e da ‘dignidade do trabalho’,
vai pouco a pouco ao encontro de uma horripilante destruição (...) É terrível
uma classe bárbara de escravos que considera sua servidão uma injustiça e quer
se vingar por si e por gerações (...) Apelar para as religiões que se degeneram
e se transformam em religiões doutas?” (Nietzsche). O espírito otimista é o
germe da destruição da sociedade moderna e o homem teórico se assusta diante de
suas próprias consequências. O homem teórico continua “o eterno faminto
crítico, sem prazer nem força, o alexandrino, que é, no fundo, um bibliotecário
e um revisor, que está cego devido à poeira dos livros e os erros de impressão”
(Nietzsche).
Kant e Schopenhauer
representam uma vitória contra a cultura alexandrina; ambos mostraram os
limites da razão, que não pode se arrogar à universalidade, o tudo conhecer
absoluto. São estes dois filósofos que dão início à nova cultura trágica. Um
olhar destemido para além das aparências, do fenômeno, além do véu de Maya, para
o abismo terrível da existência na vontade. “Imaginemos uma geração a crescer
com esse destemor do olhar, matadores de dragões: dão as costas a todas as
doutrinas otimistas, a fim de viver resolutamente na completude e na plenitude:
homem trágico” (Nietzsche).
Nietzsche aprecia a música
de Palestrina mas é bastante polêmica sua visão sobre a ópera, identificada,
por ele, com a cultura socrática. A ópera, segundo Nietzsche, subordina a
música à palavra e é produto da cultura serenojovial alexandrina. Portanto,
relativa ao homem teórico, o leigo
crítico, não o artista. Na ópera, a música é escrava da aparência e da
retórica intelectual, moralizante, sendo também inestética, pois não é nem dionisíaca nem apolínea, mas eclética. A
ópera projeta uma nostalgia do idílio,
oriunda do humanismo renascentista, ao qual visava contrapor a ideia do pecado
original, e propunha uma visão otimista sobre o ser humano (homem primitivo
como artístico e bom por natureza). Através de sua crença idílica redentora e,
por conseguinte, de sua laicidade, a ópera pressupõe, erroneamente, a premissa
de que todo ser humano é um artista. Seu herói é o pastor. Em suma, a ópera
visa “livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito, graças ao
bálsamo da aparência, dos espasmos dos movimentos do querer” (Nietzsche). O
“homem bom primitivo” quer seus direitos: que perspectivas paradisíacas!
(Nietzsche)
O crítico de arte, nas
palavras de Nietzsche, “esse ser exigente e oco, incapaz de fruir”, é, por
excelência, o jornalista. O mundo socrático é o do bárbaro crítico, em oposição ao ouvinte
estético. Nietzsche critica a tendência moderna em que o estilo
jornalístico torna-se modelo de professores universitários como degeneração da
cultura e da arte em entretenimento. “O crítico chegava ao domínio do teatro e
do conceito, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte se
degenerava a ponto de virar objeto de entretenimento da mais baixa espécie”
(Nietzsche). Sob a égide do socratismo-alexandrino, o ideal do professor universitário
é o de se tornar jornalista. “O professor se movimenta (metamorfose) conforme o
estilo do jornalista, com a “leve elegância” dessa esfera (serenojovial e
culta)” (Nietzsche). Mas é uma cultura raquítica, que tem medo da verdadeira
arte. Nietzsche acusa os professores universitários, impregnados pelo
socratismo, por jamais terem compreendido o espírito grego, elucidado por ele
próprio, Nietzsche: a tensão entre Apolo e Dioniso. Nunca entenderam o lugar do
dionisíaco na arte. Nem Goethe nem Schiller foram capaz de entender o espírito
grego, “arrombar a porta da montanha mágica”. Nietzsche critica os efeitos
morais e pedagógico dos estetas em relação a tragédia; nada aprenderam da tragédia
como suprema arte. Não apenas na estética, também na organização político-social:
Dioniso é antipolítico e Apolo, fundador do Estado.
Em
nenhum outro tempo se tagarelou tanto sobre arte e considerou tão pouco a arte (Nietzsche).
O impulso dionisíaco começa
a renascer com o coral de Lutero e, depois, na música alemã, de Bach, Beethoven
e Wagner. “A música alemã: único espírito de fogo limpo, puro e purificador;
como a doutrina de Heráclito, se movem em dupla órbita circular todas as
coisas; tudo o que chamamos de cultura, educação, civilização terá que
comparecer perante o juiz Dioniso” (Nietzsche). Tal qual na filosofia, com Kant
e Schopenhauer. E na pintura, com Dürer. Eis o ponto central, Nietzsche se
utiliza do modelo grego pré-socrático para formular um projeto social e de nação.
“A música e a filosofia alemãs apontam para uma nova forma de existência, que
só podemos pressentir através de analogias helênicas” (Nietzsche). A tragédia
vai redimir o povo alemão da mundialização eclética e degenerada. “O tempo do
homem socrático passou: coroai-vos de hera, tomai o tirso na mão e não vos
admireis se tigres e panteras se deitarem, acariciantes, a vossos pés – agora:
ousai ser homens trágicos” (Nietzsche).
O renascimento da tragédia
pode ter como marco o nascer do ouvinte
estético. Nietzsche vai se dirigir somente àqueles que têm na música seu regaço materno e se vinculam às coisas quase
unicamente através de relações musicais inconscientes. O ouvinte se deixa
levar pelos impulsos dionisíacos e apolíneos, imerso no prazer do abismo mais
íntimo da vontade: “com a ajuda da música, tangivelmente visível, mergulhar até
os mais delicados mistérios das emoções inconscientes” (Nietzsche). E é na tragédia – no feio e no desarmônico –
que o mito vivifica a representação aparente e imagética, dissolvendo-a. A
dissonante música dionisíaca e sua dança orgiástica alçam a cumes de beleza
indescritível as aparências, que, potencializadas ao limite de si mesmas, no
ápice encontram sua própria negação. “A música é a autêntica Ideia do mundo; o
drama, somente o reflexo” (Nietzsche). Refugiando-se no incompreensível, enxerga-se
mais que nunca, de dentro para fora. O véu é rasgado e o princípio de individuação
é aniquilado. Este é o ideal da arte: “A difícil relação entre o apolíneo e o
dionisíaco poderia ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as
duas divindades: Dioniso fala a linguagem de Apolo e Apolo, por fim, fala a
linguagem de Dioniso: meta suprema da tragédia e da arte em geral” (Nietzsche).
“O mito trágico não nos diz
a realidade desse mundo fenomenal, mas: vede, vede bem! Esta é vossa vida!” (Nietzsche).
Jean Pires de Azevedo
Gonçalves é autor dos livros abaixo e disponíveis na seção e-BooksGrátis (link).
Muito bom o texto! Obrigado, me ajudou bastante na leitura do Nascimento da Tragédia!
ResponderExcluirBem colocado. Bastante útil.
ResponderExcluir