sábado, 4 de novembro de 2017

Nietzsche: O Nascimento da Tragédia - Resumo comentado

Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

O primeiro livro do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche “O Nascimento da Tragédia”, originalmente “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”, na edição de 1872, ou “O Nascimento da Tragédia, ou helenismo e pessimismo” (1886), bem que poderia também ser intitulado “O Renascimento da Tragédia”, porque é disso de que se trata. Neste livro, Nietzsche, assim como todos os pensadores alemães do século XIX, idealiza um projeto de futuro para a nação alemã (a unificação da Alemanha ocorreu um ano antes da publicação do livro, em 1871); projeto esse que, anos mais tarde, em prefácio da mesma obra, será totalmente renegado por Nietzsche. (Nietzsche passará mesmo a ter ojeriza a tudo o que é alemão).

Nietzsche jovem
Nietzsche

Para entender “O Nascimento da Tragédia” é preciso levar em conta este pressuposto e ter em consideração que esta é uma obra filosófica escrita por um filólogo. É bom lembrar que, no século XIX, a filologia tinha a pretensão de, pela análise rigorosa dos textos antigos, compreender o espírito original de um povo, isto é, seu Zeitgeist. Através dos textos pré-socráticos, o filólogo Nietzsche formula um projeto nacional alemão ao qual não é nem o socialismo nem o capitalismo mas uma terceira via: a Era Trágica. O filósofo julga encontrar na tragédia a identidade autêntica do ser alemão há muito contaminada pela mundialização romana e seu decorrente ecletismo cultural, elevado ao cume na sociedade burguesa.

Todas as ideias fundamentais das obras posteriores de Nietzsche já estão em germe n’O Nascimento da Tragédia, como a ideia do homem trágico, antecessor do sobre-humano, além-homem ou super-homem (Übermensch); o repúdio ao socratismo (niilismo); afirmação da vida etc.

Mas não se vai muito longe na leitura d’O Nascimento da Tragédia se alguns pressupostos não forem observados, como já insinuei acima. O mais importante deles, no entanto, é a influência do filósofo Arthur Schopenhauer no jovem Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche demonstra admiração incondicional a Schopenhauer, ao ponto de transcrever longas citações daquele filósofo. Porém, já neste livro inaugural, é possível detectar um rompimento muito sutil e, ao mesmo tempo, drástico, em relação a meta filosófica schopenhaueriana, numa orientação radicalmente inversa, como se verá mais abaixo.

Julgo necessário, para dar algum subsídio a este resumo, fazer uma ou duas notas sobre a filosofia de Schopenhauer. (Leia também: Quincas Borba: Schopenhauer Tropical).

Assim como Nietzsche admirava Schopenhauer, Schopenhauer considerava Immanuel Kant o maior filósofo da Modernidade. Isso não o impediu de tecer críticas arrasadoras à filosofia de Kant. (Sobre Kant, escrevi um guia de leitura neste site). Em primeiro lugar, Schopenhauer acaba com o realismo kantiano ao afirmar que Kant não foi mais que um idealista radical, à maneira de um George Berkeley. Isso porque é extremamente obscuro na filosofia kantiana o como se dá a apreensão da realidade exterior ao sujeito cognoscente pelas categorias da intuição. Procurando respostas, Schopenhauer a encontra na 1ª. edição da “Crítica da razão pura”, isto é, na lei de causa e efeito, suprimida nas edições posteriores. Ou seja, é pelo efeito recebido na intuição que a coisa é dada espontaneamente à subjetividade transcendental. Todavia, dentro da arquitetura filosófica kantiana, a lei de causa-efeito deveria vir depois da intuição (pré-condição do entendimento), num segundo nível de abstração, nas categorias do entendimento, sendo contraditório estabelecê-la preliminarmente. Seria como colocar o carro adiante dos bois. Ora, sendo assim, não haveria um único acesso entre o sujeito e a coisa-em-si, e a realidade exterior, tal como ela é, em sua essência verdadeira e não aparente, só poderia ser deduzida idealmente, sem nenhuma garantia de realidade, por uma suposição extremamente frágil. Eis a cilada em que a filosofia kantiana preparou para si mesma: a objetividade não passa de fenômeno ou de representação imanente à subjetividade, sem fundo real. Neste caso, Kant não consegue sair da armadilha idealista pela qual sem sujeito não há objeto. Ao tentar levantar o véu de ilusões (Phainomenon), Kant descobriu apenas mais uma fantasia: a comprovação da existência da realidade exterior (Noumenon) ao sujeito. Vã ilusão. O mundo é representação.

Em suma, a consciência jamais pode conhecer o mundo nem tocar o seu âmago, sendo a coisa-em-si apenas uma hipótese forçada. É aqui que entra Schopenhauer. Este filósofo crítica o modo como Kant entende a intuição, demasiadamente abstrata. Schopenhauer propõe uma intuição concreta, sensível, situada no corpo, ao nível do inconsciente e irredutível ao princípio de razão, mas pela qual nos diz muito além do mundo como representação, isto é, a sua essência verdadeira, enquanto querer viver. Pela intuição, descobre-se que o que está por de trás do mundo fenomênico: a vontade. Esta descoberta é inferida, segundo nos diz Schopenhauer, da própria lavra kantiana, mais exatamente, da 3ª. antinomia, a da liberdade. Se a razão é limitada, não indo além das aparências e de suas próprias condições de conhecimento, na prática e para além da razão, a liberdade é a coisa-em-si, que move toda a cadeia de causa e efeito dos fenômenos empíricos.

(Tese da 3ª. antinomia kantiana: “A causalidade segundo leis da natureza não é a única da qual possam ser os fenômenos do mundo em conjunto. Para explicá-los é necessário admitir ainda uma causalidade mediante liberdade”).

Se eu, enquanto indivíduo, sou apenas fenômeno, pois assim me represento pelo entendimento, mas posso intuir um querer viver em mim, como liberdade e vontade (coisa-em-si, númeno), então, por analogia, posso presumir que tudo que existe e se manifesta fenomenicamente também é, fundamentalmente, vontade. Ou seja, há uma metafísica (literalmente: além da física) em Schopenhauer, algo como o espírito da matéria na filosofia de Francis Bacon ou, mais acertadamente, a Ideia, a unidade e a multiplicidade em Platão. ("Schopenhauer", de Thomas Mann, 17o. de nossa lista de eBooks). Ou ainda, uma “infrafísica”, una é indistinta, sob o múltiplo incontável dos fenômenos individuais, como causa primeira e eterna (atemporal), totalmente avassaladora. O mundo é vontade.

A vontade é una e se manifesta ao entendimento em coisas individuais (principium individuationis). Numa analogia tomada da filosofia oriental por Schopenhauer, a vontade é o oceano, enquanto as coisas individuais, as ondas em sua superfície. Mas o mundo fenomênico, diz o filósofo, é semelhante ao estado de natureza hobbesiano, uma guerra de todos contra todos. O universo é caótico e está em conflito permanente, onde todas as coisas lutam ferozmente para subsistir. A vontade é este impulso onipotente que nos faz ir de encontro a alguma coisa, sem sabermos porquê e sem poder controlar. É o desejo que depois de saciado torna-se tédio para depois tornar-se desejo novamente e, assim, inesgotavelmente. Donde se conclui que deixar-se estar à mercê da vontade é muito doloroso.

É bem conhecida a aproximação da filosofia de Schopenhauer às religiões orientais. Tal aproximação é muito pertinente. A máxima budista pode nos ensinar muita coisa sobre a meta filosófica schopenhaueriana. Vejamos: 1) Tudo é dor; 2) A dor nasce do desejo; 3) A dor se extingue com a extinção do desejo (Siddhartha Gautama). É bem disso de que se trata a filosofia de Schopenhauer: um antídoto contra a vontade. E esse antídoto é a arte. A vontade sublimada na arte, eis o ideal ascético de Schopenhauer.

Aqui o ponto fulcral d’O Nascimento da Tragédia. Nietzsche aceita o fundamental em Schopenhauer, mas não a sua conclusão. Sem citar nomes, Nietzsche renega o “budismo filosófico” contido na filosofia schopenhaueriana.

A verdadeira arte, para Nietzsche, é justamente aquela que, não apenas aceita, mas deseja os efeitos da vontade, por mais dolorosos que sejam. Nietzsche identifica esta arte na tragédia grega e no estilo de vida do homem heleno pré-socrático.

A arte em Nietzsche não é apenas uma esfera de uma especialidade, restrita a entendidos ou eruditos, mas a própria vida. Viver tragicamente é fazer da vida uma obra-prima e, por conseguinte, afirmar a vida.

Para efeitos didáticos, dividi o meu resumo em quatro tópicos, conforme os aforismos que estruturam o livro: Item 1 – 4: Caracterização da tragédia: o apolíneo e o dionisíaco; Item 5 ao 10: A origem da tragédia ou genealogia da tragédia; Item 10 ao 15: O suicídio da tragédia ou “o homem teórico”; e Item 16 ao 25: O renascimento da tragédia.

Como a minha intenção inicial não era publicar este resumo e, sim, para estudo próprio, não me preocupei em transcrever nas citações trechos do livro de modo ipsis litteris, e por isso registram, talvez, um grau bastante grande de interpretação minha, motivo pelo qual não indiquei as páginas. Também não sei exatamente até que ponto fiz das palavras de Nietzsche minhas palavras. Este resumo foi escrito a três anos atrás e, como disse, não tinha intenção de publicá-lo. Por isso, peço desculpas também pelo estilo apressado e um pouco descuidado do texto.

Item 1 – 4: Caracterização da tragédia: o apolíneo e o dionisíaco

Nietzsche recorre à ciência estética para tratar das questões fundamentais acerca da existência – ou, se se quiser, da verdade da vida – e da essência do mundo (“coração do mundo”), pois, segundo o autor, “só enquanto fenômeno estético é que a existência e o mundo surgem legitimados” [ou ainda: “só como fenômeno estético é que a existência e o mundo encontram uma legitimação eterna”]. Para isso, o autor vai buscar no mundo helênico um “modelo” de reflexão (para os dilemas de sua época – atualidade), dado que os gregos tornavam inteligíveis as doutrinas misteriosas e profundas da sua visão artística, não por meio de conceitos, mas pelas figuras claras do seu mundo de deuses. Portanto, o que está em jogo aqui é algo do imponderável e inacessível ao pensamento racional vinculado ao entendimento, ao qual só pode ser compreendido pela via direta da manifestação artística. Sendo assim, sempre de acordo com o Nietzsche, os gregos lidavam com os mistérios da existência e do mundo (ensinamentos secretos) de forma direta, ou intuitiva, não conceitual, e, daí, representavam na forma de seus deuses as questões mais cruciais da existência. Pode se dizer então, que é das profundezas mais íntimas da natureza que surgem impulsos ou poderes artísticos, sendo o artista um “imitador” dessas potências. Daí que a natureza ou as manifestações fisiológicas do corpo humano são consideradas a fonte desses impulsos artísticos. Para os gregos antigos, a arte expressava uma monstruosa oposição, da qual Apolo e Dioniso apareciam como divindades antagônicas, fonte dos impulsos artísticos. Apolo está associado às artes plásticas e à poesia épica; enquanto Dioniso, à música – arte não-imagética (também a poesia lírica). Estes deuses estão em constante “divergência aberta, provocando-se para criar novos nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra arte só aparentemente supera; até que finalmente, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática” (Nietzsche).

Para nos aproximarmos mais do significado da duplicidade de Apolo e Dioniso enquanto manifestações artísticas e fisiológicas, Nietzsche propõe a seguinte analogia: o impulso apolíneo está para o sonho assim como o dionisíaco, para o êxtase. O sonho é uma representação que busca estabelecer uma redenção consoladora no coração do mundo, essencialmente caótico e contraditório. O sonho, assim como a realidade fenomênica, é o véu de Maya de que falava Schopenhauer, ou antes, o véu das ilusões, e encobre ou sublima o estarrecedor, o Uno-primordial (verdadeiro existente), conferindo, ao mesmo tempo, unidade individual através da aparência, isto é, do principium individuationis. Na verdade, o sonho é uma aparência na aparência (a realidade fenomênica), a outra metade da vida, e ainda mais importante que a vigília, porque é “uma satisfação mais elevada do apetite primevo da aparência” (Nietzsche). Foi durante o sono que surgiu, pela primeira vez, o magnífico mundo dos deuses. O escultor via as figuras sobre-humanas e o poeta interpretava os sonhos. Já Dioniso (Baco para os romanos) é o deus da embriagues, da música e da dança. O voluptuoso elemento dionisíaco rasga o véu de Maya e quebra o princípio de individuação; o individuo, sob a influência da bebida narcótica ou da chegada da primavera, se dissolve, numa auto-alenação, misturando-se numa união que não reconhece limites entre outras pessoas, a natureza e o Uno-primordial. Sua manifestação é recorrente a todos os povos do mundo antigo, desde a Ásia Menor, Babilônia e Roma, outrora denominados pelos gregos de povos bárbaros (não civilizados), e aparece nas suas festas orgiásticas, nas quais todos os valores são transfigurados e toda uma ordem social é invertida: o escravo se torna senhor e o senhor, escravo etc. (Hoje, com muitas reservas, o “carnaval” pode ser um exemplo comparativo).

Na época de Nietzsche, Dioniso era um deus tardio no panteão grego (atualmente, essa concepção é refutada).  Dioniso vinha do oriente e, a princípio, deve ter causado muito espanto na sociedade helênica. Na verdade, a consciência apolínea – homérica e “ingênua” – cobria com um véu o mundo dionisíaco. Este, de fato, já lhe era familiar, na guerra dos Titãs. A vitória dos deuses olímpicos sobre o tenebroso mundo titânico foi como um desabrochar de rosas num espinheiro. Segundo Nietzsche, a chave da montanha mágica do Olimpo está na terrível lição dada por Sileno ao rei Midas, o sábio companheiro de Dioniso. Eis a sabedoria de Sileno: Melhor seria nem ter nascido, não ser nada, já que um dia tem de se partir! O grego conheceu os temores e horrores de existir (Nietzsche). A existência dos deuses do Olimpo – tão humanos! – surge como um espelho transfigurador, como algo a ser desejado (a imortalidade), como vida a ser vivida. O que nos quer dizer o elemento apolíneo, no seu prazer na contemplação, é esquecer completamente o dia, os constrangimentos da vida cotidiana. O sonho é um anestésico da dor primordial que é único fundamento do mundo, e a serenidade indolor é o simbolismo da arte apolínea. As fronteiras do indivíduo deviam ser meticulosamente preservadas na obsessão da medida e do autoconhecimento. Eis que surge então Dioniso e revela novamente que toda a beleza está assentada sobre o subsolo do sofrimento e no conhecimento. Assim, o desmesurado da natureza, o desmedido dionisíaco mostra-se como verdade, a contradição: o apolíneo foi aniquilado. A reação apolínea será o Estado dórico e a arte dórica.

Nietzsche então caracteriza quatro períodos artísticos (fase mais antiga da história helênica): idade do bronze (titano-maquia); mundo homérico, esplendor ingênuo; torrente invasora do dionisíaco; e arte dórica. Porém, Nietzsche põe sérias dúvidas com relação a “serenidade” dos gregos que foi legada para a posteridade, e aponta um período na arte grega, anteriormente expresso como um miraculoso ato metafísico da vontade helênica de conciliação dos elementos apolíneo e dionisíaco: a tragédia ática e o ditirambo dramático.

Apesar de chamar Rafael de ingênuo, Nietzsche usa o quadro Transfiguração
 para representar o impulso apolíneo (acima) e o dionisíaco (abaixo)

Item 5 ao 10: A origem da tragédia ou genealogia da tragédia

A partir daqui, Nietzsche vai situar os elementos que constituem as origens da tragédia: “aproximamo-nos agora do verdadeiro objetivo da nossa investigação” (Nietzsche). Nietzsche contrapõe, à poesia épica de Homero, o poeta lírico Arquíloco, que teria unido poesia e música, ou melhor, introduzido a canção popular na literatura, e é, considerado pelo filosofo, como um artista dionisíaco. O processo de composição da poesia lírica é elucidado, segundo Nietzsche, por Schiller, que antes do ato da criação poética se preparava através de um estado de ânimo musical. Novamente Nietzsche refuta a ciência estética que entende o poeta lírico como um transbordar de subjetividade que inunda, contaminando, todo o mundo objetivo. Para Nietzsche, o artista lírico já abdicou de sua subjetividade quando se fez artista dionisíaco, pela música, ao se tornar um só ao Uno-primordial. (A música é uma repetição do mundo, ou melhor, do Uno-primordial). Assim, o “eu” (lírico) – essa pequena palavra – não passa de uma ilusão apolínea que expressa dor e contradição, em imagens e símiles, do coração do mundo. Curiosamente, não há aqui um sentido pejorativo de alienação, ao contrário, é a auto-alienação que caracteriza a lírica: fusão do poeta com o artista primordial do mundo, tornando-se, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. (Nota: Salvo engano, o termo “alienação” foi empregado por mim como antídoto do principium individuationis).

Assim, entre os gregos, ou a linguagem imita aparência (poesia épica) ou imita a música (canção popular, poesia lírica). Segundo Nietzsche, o impulso dionisíaco é o substrato da música e da poesia popular. A melodia é o que é de primeiro e mais universal, e procura objetivamente uma aparência onírica que exprime textualmente como poesia; “a melodia lança a sua volta centelhas de imagens” (Nietzsche). De certo modo, a melodia intensifica a imagem que, não podendo ficar indiferente ao poder da música, manifesta em sua transfiguração a verdade dionisíaca (contradição e dor primordial do Uno-primordial). Portanto, a poesia lírica imita exteriormente, por meio de imagens e conceitos, a música, a qual aparece como vontade, não de modo totalmente contemplativo (estético), isento de vontade (inestético ou não arte). Eis o fenômeno lírico: “como gênio apolíneo, interpreta a música através de imagens do querer, enquanto ele próprio, totalmente liberto da avidez da vontade, é puro e imaculado olho solar” (Nietzsche). Porém, o sentido mais profundo da música não pode ser comunicado pela linguagem, que só pode estar junto dela, em seu exterior.

Seguindo os passos da tragédia, Nietzsche enfatiza que, conforme a tradição, no início a tragédia era apenas coro, sem representação dramática. Nietzsche afirma que para os modernos sempre foi desconcertante como a tradição identificava a origem da tragédia ao coro, algo que nunca foi bem compreendido. Nietzsche refuta a ideia de que o coro estaria associado a uma instância constitucional de representação da participação popular (democracia no sentido moderno!), pois, além de os gregos não conhecerem, na era da tragédia, tal formação política, tal concepção seria um sacrilégio a origem religiosa do coro. Também Nietzsche recusa a proposta de Schlegel no qual o coro seria como um “espectador ideal” que acredita estar vendo diante da cena uma realidade empírica e não uma obra de arte. O que é um absurdo, porque espectador, ideal ou não, pressupõe um espetáculo que não existia na origem da tragédia (coro em si). Para Nietzsche, a melhor interpretação do coro da tragédia é a de Schiller. Este escritor entende o coro como uma muralha viva que protege, do mundo real, o chão ideal e a sua liberdade poética. A definição de Schiller é como um antídoto contra a veneração do conceito de natural e do real (século XIX): “a introdução do coro é o passo decisivo pelo qual se declara aberta e lealmente guerra a todo e qualquer naturalismo na arte (‘pseudo-idealismo’ de Goethe e Schiller)”. A tragédia não suportava “efetuar uma penosa retratação servil da realidade” (Nietzsche). O mundo representado pela tragédia não era uma simples fantasia, mas gozava da credibilidade dos deuses olímpicos. O grego civilizado se sentia suspenso pelo coro satírico. Mas não só ele, o Estado e sociedade também. E abolido todos os limites e fronteiras do indivíduo, unido a um sentimento que “reconduz ao coração do mundo”, “a vida, no fundo das coisas, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” (Nietzsche), apesar das mudanças da aparência fenomênica (consolo metafísico). “É nesse coro que o heleno se conforta, correndo o risco de ansiar por uma negação budista do querer, mas ele é salvo pela arte e através da arte salva-se nele: a vida” (Nietzsche).

Nietzsche interpreta Hamlet neste sentido, contestando a interpretação corrente, que o analisa como um homem reflexivo e indeciso diante das múltiplas possibilidades a seguir. Na verdade, Hamlet, de modo análogo ao estado de êxtase do homem dionisíaco, lança um olhar à essência das coisas (“horrenda verdade”), sentindo náusea diante do absurdo da vida, sabendo que não pode mudá-la (a essência): “o conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso esta velado pela ilusão. (...) na consciência da verdade o homem vê agora apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser” (sabedoria de Sileno - Nietzsche). Só a arte pode curar e transformar o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: o sublime e o cômico.

Perseguindo os rastros da tragédia, Nietzsche constata que no início da tragédia não havia separação entre público e coro: “tudo era um grande e sublime coro de sátiros bailando” (Nietzsche); e faz uma contraposição entre o sátiro (proto-imagem do homem) e a civilização. Ou dito de um modo kantiano, o sátiro está para a coisa-em-si como a mentira da civilização, para o fenômeno. O sátiro barbudo é um arauto da sabedoria profunda da natureza (“símbolo da onipotência sexual da natureza”, Nietzsche), enquanto o pastor idílico, nostalgicamente forjado, é uma caricatura ilusória ou um simulacro da natureza inventado pelo homem civilizado e moderno. Ao contrário, o heleno aceita a verdade dionisíaca, e a tentativa de comparar o pastor com o sátiro não é senão uma tentativa afetada e artificial.

A separação dos espectadores dionisíacos e dos encantados servidores dionisíacos se dá muito posteriormente. Então, Nietzsche busca explicar como do coro trágico se desdobrou o drama. Primeiro, faz uma alusão ao verdadeiro poeta, que escreve por metáforas e não por conceitos. A metáfora é uma imagem substitutiva que está na frente do poeta, que “vive cercado de figuras que vivem e atuam diante dele” (Nietzsche). Segundo o filósofo, a poesia não está fora do mundo e, portanto, não é uma abstração, ao gosto dos modernos, pois se falamos de modo abstrato quando falamos de poesia é porque estamos acostumados a maus poetas. É isso que diferencia, em termos dionisíacos, a poesia da dramaturgia, enquanto fenômeno estético: “a faculdade de ver incessantemente um jogo vivo e de viver rodeado de hostes de espíritos, é-se poeta; impulso de metamorfosear e passar a falar de dentro de outros corpos e almas, é-se dramaturgo” (Nietzsche). Portanto, o coro vê a si mesmo transformado e atuando como um personagem (protofenômeno dramático).

O coro ditirâmbico é composto por atores inconscientes, uma multidão enfeitiçada, numa verdadeira renúncia de suas individualidades, tornando-se “servidores intemporais de seu deus, vivendo fora do tempo e fora de todas as esferas sociais” (Nietzsche). E desse êxtase dionisíaco, o drama é a sua transfiguração em imagens apolíneas, falando com todo simbolismo da dança, da música e da palavra. Dioniso sai do coro e entra em cena mascarado, na figura de Apolo, como herói épico. Nesse sentido, a tragédia é uma contradição estilística: “linguagem, cor, mobilidade, dinâmica do discurso entram, de um lado, na lírica dionisíaca do coro e, de outro, no onírico mundo apolíneo da cena, como esferas completamente distintas de expressão” (Nietzsche).

Agora, na minha opinião, chegamos a um dos momentos mais importantes do livro. Nietzsche vai definir brilhantemente o cerne do trágico. A princípio, observa que a superfície da tragédia é marcada pela clareza do diálogo sofocliano. Essa clareza é comparada ao fenômeno óptico de olhar o sol e depois ver manchas escuras que são como um curativo dos olhos. Porém, na caracterização da tragédia, Nietzsche inverte a natureza do fenômeno. Na tragédia, as manchas são claras [a dita serenidade dos gregos], porque o olhar se fixou na escuridão, ou melhor, numa “noite medonha” do saber dionisíaco. O que Nietzsche está dizendo é que há uma dialética [negativa] inerente ao conhecimento. Conhecer a verdade é transgredir a natureza, é dominá-la, voltando-se contra ela. O conhecimento é ao mesmo tempo a perdição de quem conhece: “a sabedoria [dionisíaca] é um horror antinatural, que aquele que pelo seu saber precipita a natureza no abismo da destruição, há de experimentar em si próprio a desintegração da natureza” (Nietzsche). Aqui, Nietzsche utiliza-se do exemplo de Édipo, o decifrador de enigmas, que, ao “desatar o nó processual”, descobre-se culpado e autor de crimes que são verdadeiras aberrações contra a natureza [prever o futuro, incesto e patricídio]. No entanto, Édipo, em sua “glória de passividade”, é redimido [em “Édipo em Colono”], numa transfiguração infinita – que são como as manchas luminosas que surgem do abismo a que se voltou o olhar. Outro exemplo, porém de sentido inverso, ou seja, como um exemplo de “glória na atividade”, é o de “Prometeu acorrentado”, de Ésquilo. No mito, o titã Prometeu ensina aos seres humanos a dominar o fogo e por isso é punido por Zeus. O fogo é o símbolo da cultura nascente, é quando os seres humanos adquirem autonomia em relação aos deuses: “o homem, alçando-se ao titânico, conquista por si a sua cultura e obriga os deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem na mão a existência e os limites dela” (Nietzsche). Segundo Nietzsche, Ésquilo tem um profundo sentimento de justiça ao equiparar deuses a seres humanos e colocá-los ambos sob o pêndulo do destino [Moira]. Através da sabedoria [da dominação da natureza] os seres humanos se igualam aos deuses, não sem sofrer as consequências disso. O que está por trás de tudo isso é, na verdade, o sofrimento das dores da individuação, do indivíduo que aspira ao titânico, ao autoconhecimento [apolíneo], das medidas e da justiça, e ao mesmo tempo sua dissolução nas profundezas da essência contraditória do mundo. É interessante que Nietzsche compara estes dois mitos [Édipo e Prometeu], de origem ariana [indo-europeia], ao mito semítico do pecado original. No paraíso, só havia uma restrição a Adão e Eva: comer o fruto proibido da árvore do conhecimento. Assim, entre os semitas, o pecado é atribuído à mulher, ou às qualidades [supostamente] femininas, como a curiosidade, que são tidas como negativas. Já entre os Arianos há uma certa positividade na transgressão e no sacrilégio. Na tragédia, o elemento apolíneo aparece como uma máscara [manchas luminosas] que transfigura a essência verdadeira do mundo que só é de fato conhecida pelo perturbador elemento dionisíaco. O castelo de areia é desmanchado pelas ondas sucessivas da maré dionisíaca.

(Gostaria de notar um possível paralelo do item 9 [exposto no parágrafo acima] com a passagem de “Ulisses” do livro “Dialética do esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer).

Portanto, na tragédia Apolo fala por Dioniso. As máscaras, dos personagens, representam o processo doloroso da individuação do qual o herói épico se debate e se vê emaranhado; mas, tão logo, o feitiço da individuação é enfim rompido, por uma unidade restabelecedora própria do elemento dionisíaco. A música [“pressentimento nostálgico de um mundo metafísico”, Nietzsche] ressignifica o mito olímpico decadente (tornado dogmático, histórico e pragmático: fim das religiões, segundo Nietzsche), ao qual chega a seu contendo mais profundo, libertando Prometeu, desde então, aliado de Zeus. Porém, o apogeu da tragédia é ao mesmo tempo seu fim: “após esta última florescência, suas flores murcham” (Nietzsche). A tragédia morre nas mãos de Eurípedes.

Item 10 ao 15: O suicídio da tragédia ou “o homem teórico”

Não há espaço para a individualidade na tragédia grega; ao contrário, a individualidade é marca do cômico. Na infância, Dioniso foi despedaçado pelos titãs e, a partir disso, padece do mal da individuação. Mas a individuação é, na verdade, a fonte de todo sofrimento e o dever da arte é romper com o seu feitiço: o culto público da tragédia e sua música, entre os gregos. É o culto dos mistérios indizíveis, inacessíveis à razão. Porém, um movimento contrário marca o fim de todas as religiões: “Os pressupostos míticos sistematizados sob os olhos severos e racionais de um dogmatismo ortodoxo, como uma suma acabada de eventos históricos” (Nietzsche). Nas artes dramáticas, o suicídio da tragédia se dá pelas mãos de Eurípedes, com a nova comédia ática.

Eurípedes leva o homem vulgar (o burguês), da vida cotidiana, ao palco que, por afinidade, compreende bem o que os personagens dizem. Não há mais mistérios, tampouco segredos, tudo é revelado por um dialogo cristalino e o expectador é habilitado a fazer juízos sobre o enredo dramático. Eurípedes representa a mediocridade burguesa que aspira status político: a mentalidade do escravo chega ao poder, a mentalidade, não o escravo. É o que Nietzsche chama de serenojovialidade grega, isto é, fuga a um gozo confortável; “como se nunca tivesse existido um século VI, com seu nascimento da tragédia, com seus Mistérios, seu Pitágoras e Heráclito: não podem ser explicados por uma tal serenojovialidade” (Nietzsche).

Mas, diferentemente de Ésquilo ou Sófocles, Eurípedes se sente superior ao público e às massas. Eurípedes respeita apenas dois expectadores, que, tal como ele, não entendiam a tragédia: um deles era ele próprio, como pensador e não poeta. Eurípedes assistiu as peças de seus antecessores e percebeu nelas alguma coisa de incomensurável e profundidade enigmática, uma infinitude de fundo, duvidosas soluções éticas, que devia ser corrigida, ou melhor, esclarecida. Para Eurípedes, o entendimento estava na gênese de toda a criação artística e devia predominar na obra de arte, isto é, os impulsos apolíneos em detrimento de Dioniso. O outro expectador era Sócrates (que na República de Platão expulsa os poetas da polis). E Sócrates só assistia as peças de Eurípedes.

Assim como Penteu, de as Bacantes, Eurípides resistiu a Dioniso mas, por fim, após sucumbir ao poder de Dioniso, tenta se redimir do estrago que já tinha sido feito por ele. O apolíneo era o domínio da tendência socrática na arte, que devia encantar com o prazer na aparência e ser representado em tons realistas: “o socratismo estético cuja suprema lei é tudo deve ser inteligível para ser belo” (Nietzsche). Esta é a função do prólogo em Eurípedes, tirar toda a dúvida sobre a realidade do mito. Eurípedes pode ser comparado ao primeiro poeta sóbrio em meio a beberrões. Em suma, Eurípedes: poeta do socratismo estético; socratismo: princípio assassino da tragédia.

Sócrates é o precursor de uma nova cultura, arte e moral (que Nietzsche vai chamar mais tarde de niilismo). O instinto se converte em crítica, sob a égide da lógica e do conceito, portanto, da ciência. Tudo aquilo que não pode ser medido, classificado e explicado não deve ser considerado. Em Sócrates, é proibido olhar para os abismos dionisíacos: “arte trágica nunca diz a verdade e é dirigida àqueles que têm pouco entendimento” (Nietzsche). E ainda: “Platão, quando jovem poeta trágico, queimou seus poemas para se tornar discípulo de Sócrates” (Nietzsche). Segundo Nietzsche, é Platão, com seus diálogos socráticos, que fornece à posteridade o protótipo do romance. Para Platão, a arte é imitação da realidade empírica aparente, na qual, no entanto, não é senão uma aparência sombria da verdadeira realidade: o mundo das ideias. Ou seja, a arte ocupa um lugar menor em relação à episteme. Eis o ideal de ciência: corrigir o mundo, tal como ele é. Eis o otimismo socrático: “a dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a música da tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados, como simbolização visível da música, como o mundo onírico de uma embriaguez dionisíaco” (Nietzsche). No socratismo, o erro deve ser evitado e a verdade descoberta por detrás da aparência, através de conceitos, juízos e deduções, em busca da totalidade...

O suicídio da tragédia marca uma nova era, a do homem teórico. Sócrates é primeiro homem teórico, homem abstrato, o sacerdote da ciência. “Para Lessing, o mais honrado dos homens teóricos, importava-lhe mais a busca da verdade do que a verdade mesma: segredo fundamental da ciência, para desgosto dos cientistas” (Nietzsche).

Porém, a razão naufraga em sua própria ilusão: corrigir o mundo. O conhecimento racional não pode ir além de seus próprios limites tautológicos e navegar no oceano do imponderável. Da falência do projeto otimista irrompe o conhecimento trágico, do qual necessita da arte como proteção. Mas o trágico, hoje, só pode nascer do espírito da música.

Item 16 ao 25: O renascimento da tragédia

Aqui Nietzsche fala em esperança do ser alemão, utilizando-se, literalmente, da expressão renascimento da tragédia. Reiterando os argumentos, em oposição a todos aqueles que derivam a arte de um princípio único, Nietzsche propõe, como vimos, dois mundos artísticos, Apolo e Dioniso. Apolo: gênio transfigurador do principium individuationis: verdadeira redenção na aparência. Dioniso: grito de júbilo místico, rompendo o feitiço da individuação e abrindo caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas. Novamente, oposição entre as artes plásticas e a música. Foi Schopenhauer quem descobriu a música, diferentemente das demais artes fenomênicas, como reflexo da vontade, da metafísica, da coisa-em-si. Wagner asseverou sobre os princípios estéticos da música, não segundo a categoria de beleza, portanto, diferentes das artes figurativas.

A música é a arte dionisíaca por excelência; esta aniquila a aparente individualidade que se desfaz em vida eterna: “‘Nós acreditamos na vida eterna’ assim exclama a tragédia; enquanto a música é a Ideia imediata dessa vida” (Nietzsche). O eterno prazer da existência não está no fenômeno, nas aparências, mas por detrás dele, no uno vivente, a vontade do mundo. A arte dionisíaca é um consolo para os horrores da existência individual. A tragédia grega nasceu da música, da estruturação do coro. Pouco importa a fala dos personagens, pois “o mito não encontra de maneira alguma a sua objetivação adequada na palavra falada” (Nietzsche). São os atos dos heróis que importam. O espírito da música, da lírica até a tragédia ática, a verdade dionisíaca, pode se irromper a qualquer tempo. “Será que ela não voltará a elevar-se um dia, como arte, para fora de sua profundeza mística?” (Nietzsche).

Aqui entra em conflito a ciência e o impulso da tragédia que pode brotar na sociedade alemã. Luta terrível entre eternos contrários. “Só depois de conduzido a seu limite o espírito da ciência e de aniquilada a sua pretensão de validade universal mediante a comprovação desses limites, dever-se-ia nutrir esperança de um renascimento da tragédia” (Nietzsche). Toda a esperança deve-se concentrar na música, como resistência dionisíaca à potência do conceito. Mas não uma música subordinada às imagens, ou melhor, música degenerada, pintura sonora, “pois o mito quer ser sentido intuitivamente como exemplo único de uma universalidade e veracidade de olhos fitos infinito adentro” (Nietzsche). A música deve exprimir o ser interno, a vontade mesma. Por isso nada de imagens como tiro de canhões, marchas, trombetas para representar uma guerra e outros tipos de recursos semelhantes que, na verdade, empobrecem a fantasia. Pois tais representações empobrecem as próprias imagens.

Já em Sófocles começamos a respirar o ar antecipador do mundo teórico. Em Eurípedes e a nova comédia ática, há máscaras somente. “Onde foi parar o espírito [da música] formador de mitos?” (Nietzsche). Quando o espírito da música não está mais na tragédia, já não existe mais tragédia. No drama de Eurípedes o herói, depois de tantas provações, é recompensado no final. O dramaturgo também inaugura o deus ex machina, como um substituto do enigma metafísico: “deus ex machina – deus das máquinas e crisóis: forças dos espíritos naturais conhecidas e empregadas a serviço do egoísmo superior, que acreditava numa correção do mundo pelo saber, de uma vida guiada pela ciência; serenojovialidade ele diz para a vida: eu te quero, tu és dignas de ser conhecida” (Nietzsche).

A vontade é insaciável, não apenas deseja, satisfeito o desejo, sente tédio, até surgir um novo desejo, que deve ser loucamente saciado, e assim sucessivamente. Como escapar deste girar infinito? Como sublimar a força irresistível da vontade? Através do conhecimento, a saída socrática. Ou através da arte (saída schopenhaueriana). Ou a saída trágica, o consolo metafísico (nietzscheniana): aceitação da vontade. Três modos de encarar a existência: cultura alexandrina (socrática), helênica (nietzscheniana) ou budista (schopenhaueriana).

O homem teórico trabalha a serviço da ciência moderna. Submete tudo a seu crivo, inclusive a arte. Fausto, de Goethe, é o protótipo do homem teórico. Eis a meta do iluminismo: melhorar o mundo através da razão (ciência).  “Essa cultura universal do saber se converte paulatinamente na ameaçadora exigência de semelhante felicidade terrena alexandrina, no conjuro de um deus ex machina euripidiano” (Nietzsche). A ciência conduz necessariamente ao socialismo, pois a injustiça é um mal que pode ser reparado por uma organização social mais racional, em prol da justiça social e da igualdade de todos. Nietzsche observa como o moralismo imiscuído na dignidade e virtude do trabalho cai por terra quando confrontado pela ciência: o trabalho é tão somente humilhante exploração e desumanização. E os explorados, motivados pelo ideal de transformação conferido pela ciência, também querem mudar a situação aviltante a que estão submetidos. A cultura alexandrina (socrática) leva a uma contradição insolúvel, pois ela depende de uma classe de explorados para subsistir. “A cultura alexandrina necessita de uma classe de escravos para existir de forma duradoura: uma vez gasto o efeito de palavras acerca da ‘dignidade da pessoa humana’ e da ‘dignidade do trabalho’, vai pouco a pouco ao encontro de uma horripilante destruição (...) É terrível uma classe bárbara de escravos que considera sua servidão uma injustiça e quer se vingar por si e por gerações (...) Apelar para as religiões que se degeneram e se transformam em religiões doutas?” (Nietzsche). O espírito otimista é o germe da destruição da sociedade moderna e o homem teórico se assusta diante de suas próprias consequências. O homem teórico continua “o eterno faminto crítico, sem prazer nem força, o alexandrino, que é, no fundo, um bibliotecário e um revisor, que está cego devido à poeira dos livros e os erros de impressão” (Nietzsche).

Kant e Schopenhauer representam uma vitória contra a cultura alexandrina; ambos mostraram os limites da razão, que não pode se arrogar à universalidade, o tudo conhecer absoluto. São estes dois filósofos que dão início à nova cultura trágica. Um olhar destemido para além das aparências, do fenômeno, além do véu de Maya, para o abismo terrível da existência na vontade. “Imaginemos uma geração a crescer com esse destemor do olhar, matadores de dragões: dão as costas a todas as doutrinas otimistas, a fim de viver resolutamente na completude e na plenitude: homem trágico” (Nietzsche).

Nietzsche aprecia a música de Palestrina mas é bastante polêmica sua visão sobre a ópera, identificada, por ele, com a cultura socrática. A ópera, segundo Nietzsche, subordina a música à palavra e é produto da cultura serenojovial alexandrina. Portanto, relativa ao homem teórico, o leigo crítico, não o artista. Na ópera, a música é escrava da aparência e da retórica intelectual, moralizante, sendo também inestética, pois não é nem dionisíaca nem apolínea, mas eclética. A ópera projeta uma nostalgia do idílio, oriunda do humanismo renascentista, ao qual visava contrapor a ideia do pecado original, e propunha uma visão otimista sobre o ser humano (homem primitivo como artístico e bom por natureza). Através de sua crença idílica redentora e, por conseguinte, de sua laicidade, a ópera pressupõe, erroneamente, a premissa de que todo ser humano é um artista. Seu herói é o pastor. Em suma, a ópera visa “livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito, graças ao bálsamo da aparência, dos espasmos dos movimentos do querer” (Nietzsche). O “homem bom primitivo” quer seus direitos: que perspectivas paradisíacas! (Nietzsche)

O crítico de arte, nas palavras de Nietzsche, “esse ser exigente e oco, incapaz de fruir”, é, por excelência, o jornalista. O mundo socrático é o do bárbaro crítico, em oposição ao ouvinte estético. Nietzsche critica a tendência moderna em que o estilo jornalístico torna-se modelo de professores universitários como degeneração da cultura e da arte em entretenimento. “O crítico chegava ao domínio do teatro e do conceito, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte se degenerava a ponto de virar objeto de entretenimento da mais baixa espécie” (Nietzsche). Sob a égide do socratismo-alexandrino, o ideal do professor universitário é o de se tornar jornalista. “O professor se movimenta (metamorfose) conforme o estilo do jornalista, com a “leve elegância” dessa esfera (serenojovial e culta)” (Nietzsche). Mas é uma cultura raquítica, que tem medo da verdadeira arte. Nietzsche acusa os professores universitários, impregnados pelo socratismo, por jamais terem compreendido o espírito grego, elucidado por ele próprio, Nietzsche: a tensão entre Apolo e Dioniso. Nunca entenderam o lugar do dionisíaco na arte. Nem Goethe nem Schiller foram capaz de entender o espírito grego, “arrombar a porta da montanha mágica”. Nietzsche critica os efeitos morais e pedagógico dos estetas em relação a tragédia; nada aprenderam da tragédia como suprema arte. Não apenas na estética, também na organização político-social: Dioniso é antipolítico e Apolo, fundador do Estado.

Em nenhum outro tempo se tagarelou tanto sobre arte e considerou tão pouco a arte (Nietzsche).

O impulso dionisíaco começa a renascer com o coral de Lutero e, depois, na música alemã, de Bach, Beethoven e Wagner. “A música alemã: único espírito de fogo limpo, puro e purificador; como a doutrina de Heráclito, se movem em dupla órbita circular todas as coisas; tudo o que chamamos de cultura, educação, civilização terá que comparecer perante o juiz Dioniso” (Nietzsche). Tal qual na filosofia, com Kant e Schopenhauer. E na pintura, com Dürer. Eis o ponto central, Nietzsche se utiliza do modelo grego pré-socrático para formular um projeto social e de nação. “A música e a filosofia alemãs apontam para uma nova forma de existência, que só podemos pressentir através de analogias helênicas” (Nietzsche). A tragédia vai redimir o povo alemão da mundialização eclética e degenerada. “O tempo do homem socrático passou: coroai-vos de hera, tomai o tirso na mão e não vos admireis se tigres e panteras se deitarem, acariciantes, a vossos pés – agora: ousai ser homens trágicos” (Nietzsche).

O renascimento da tragédia pode ter como marco o nascer do ouvinte estético. Nietzsche vai se dirigir somente àqueles que têm na música seu regaço materno e se vinculam às coisas quase unicamente através de relações musicais inconscientes. O ouvinte se deixa levar pelos impulsos dionisíacos e apolíneos, imerso no prazer do abismo mais íntimo da vontade: “com a ajuda da música, tangivelmente visível, mergulhar até os mais delicados mistérios das emoções inconscientes” (Nietzsche).  E é na tragédia – no feio e no desarmônico – que o mito vivifica a representação aparente e imagética, dissolvendo-a. A dissonante música dionisíaca e sua dança orgiástica alçam a cumes de beleza indescritível as aparências, que, potencializadas ao limite de si mesmas, no ápice encontram sua própria negação. “A música é a autêntica Ideia do mundo; o drama, somente o reflexo” (Nietzsche). Refugiando-se no incompreensível, enxerga-se mais que nunca, de dentro para fora. O véu é rasgado e o princípio de individuação é aniquilado. Este é o ideal da arte: “A difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco poderia ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades: Dioniso fala a linguagem de Apolo e Apolo, por fim, fala a linguagem de Dioniso: meta suprema da tragédia e da arte em geral” (Nietzsche).

“O mito trágico não nos diz a realidade desse mundo fenomenal, mas: vede, vede bem! Esta é vossa vida!” (Nietzsche).


Jean Pires de Azevedo Gonçalves é autor dos livros abaixo e disponíveis na seção e-BooksGrátis (link).




2 comentários: