sexta-feira, 1 de março de 2019

Camões vs Fernando Pessoa: Portugal

Resumo do texto “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, de Cleonice Berardinelli.

Por J. P. A. G.

Dois poetas: Luis Vaz de Camões e Fernando Pessoa. O primeiro, eclipsando as gerações vindouras, com sua obra poética insuperável; o segundo, “o proximamente-vindouro”, destinado a receber o fardo histórico e literário de superar o “ainda-primeiro”. Pessoa, um Super-Camões.


Esta é a difícil tarefa, talvez megalômana, que se autoproclama Fernando Pessoa, pela voz de seu heterônimo Álvaro Campos, a saber, subir ao panteão dos maiores, ao lado de Dante, Shakespeare e, obviamente, Camões. Sua vontade de superação, entretanto, não é desprezo pelo ainda maior poeta lusitano, mas profunda admiração.

Muito embora a obra poética de Fernando Pessoa não referencie diretamente Camões, a reverência ao maior poeta da língua portuguesa é manifesta na intertextualidade sem precedente e marcada pelo tom ufanista sem limites de Mensagem (século XX) ao épico fundador Os Lusíadas (século XVI). O paralelo, não evidente por si, seria fácil perceber se Fernando Pessoa mantivesse o título provisório em sua coletânea de poemas: Portugal. Salta à vista, todavia, o tema retratado por ambos os poetas; em Camões lê-se: “um amor da pátria não movido De prêmio vil, mas alto e quase eterno...”; em Pessoa: “um nacionalista místico, um sebastionista racional”.  

Dissipada a névoa que os separam de início, os paralelos tornam-se ainda mais evidentes. Camões segue a tradição épica e inicia seu poema in medías res, para depois invocar a musa da epopeia Calíope, então passa a palavra ao navegador Vasco da Gama, a quem cumprirá a tarefa de narrar o poema, exaltando o grandioso reino Português. Dentre todos os reinos europeus, Vasco glorifica Portugal a um interlocutor, o rei de Melinde: “Quase cume da cabeça”. Por outra forma, em Mensagem, Fernando Pessoa alude aos versos do grande clássico da literatura portuguesa: “rosto com que fita” o “Occidente”.

N’Os Lusíadas, Camões introduz uma passagem histórica, através da narrativa de Paulo da Vasco da Gama, remetendo as origens da nação lusitana aos símbolos e brasões de nacionalidade que seguem a tradição de Ulisses até a guerra de Reconquista. Em Mensagem, Fernando Pessoa também esboça uma genealogia mítica e também atribui às origens portuguesas o herói da Odisseia. A menção a este passado é um recurso usado por Camões para introduzir na longínqua nação portuguesa o herói Viriato, líder da resistência do povo lusitano aos conquistadores de Roma. Fernando Pessoa também recorda Viriato como o segundo castelo. Ambos os poetas fazem referência a D. Henrique, do condado Portucalense. Nesta passagem, há uma citação, em Mensagem, mais especificamente a epígrafe em latim Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum, ao início de Os Lusíadas: “armas e os barões assinalados”.

Tal qual seu compatriota, Fernando Pessoa não presta homenagem a Dona Tareja, esposa de D. Henrique, a primeira rainha de Portugal. Camões havia acusado-a de não saber ser boa mãe. Pessoa, porém, apenas a trata com indiferença.

Diante disso, nota-se uma ruptura com o nacionalismo laudatório, para aquilo que a autora, Cleonice Berardinelli, denomina de nacionalismo crítico, o que representa, no caso de Camões, um desvio conceitual da epopeia clássica.

Ainda traçando um paralelo intertextual entre Camões e Pessoa, em Os Lusíadas, o marco da fundação de Portugal dá-se com o reinado de Affonso Henriques, cantado em cinquenta e cinco oitavas. O poema de Fernando Pessoa é, no entanto, bem mais econômico e dispensa ao referido rei apenas dois quartetos, muito embora significativos. Camões também é mais perdulário ao descrever a dinastia real, enquanto Pessoa se detém a D. Diniz. E aqui a uma divergência entre os dois poetas. Camões canta a liberalidade de Affonso Henriques, marcada pelo progresso cultural. Já Pessoa traz à memória os epítetos de D. Affonso, omitidos por Camões, por meio de uma metáfora na qual indica o futuro de Portugal associado à terra e ao mar: rei trovador e rei lavrador.

Novamente, Camões e Fernando Pessoa diferem quanto à enumeração dos elementos da realeza, sendo o primeiro, como vimos, mais “generoso” e o segundo, “parcimonioso”. O alvo agora, em ambos, é D. João I e sua mulher Felipa, geradores da dinastia de Avis. Enquanto em Camões a figura de maior destaque é Inês, em Pessoa, dispensa-se atenção apenas a Tareja e Felipa, rainhas de impérios, às quais o poeta não emite qualquer juízo de valor. Fernando Pessoa também dedica especial atenção aos filhos de D. João I, notadamente, D. Sebastião. Mas, em ambos os poetas, nota-se uma história de fracasso relativa aos cinco irmãos. Camões, entretanto, limita-se ao sofrimento de D. Duarte, por ter o irmão, D. Fernando, cativo dos inimigos; a D. Pedro, poucas notas; a D. João, emudece; e a D. Sebastião, seu contemporâneo, o poeta o coloca a par dos deuses. Em Pessoa, porém, há algo de positivo nesse fracasso, enquanto “dever cumprido”, e que transparece nos celebres verso de “Mar portuguez”: “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”. A loucura aqui é um valor muito caro, o único que restou, já que o Império se desfez.

Divergem outra vez os grandes poetas. Para Camões, D. Manuel é patrono das navegações. Para Pessoa, D. João II.

Em “Mostrengo”, Pessoa aproxima-se bastante de Camões, no que se refere ao Gigante Adamastor. Neste sentido, segundo a autora, os dois poetas portugueses constroem seus versos “seguindo o roteiro dos reis” e, para ambos, o grande herói nacional é Nuno Álvares Pereira.

Neste ponto, a autora comentará o estilo de ambos os poemas, ao qual denomina “linha sinuosa descrita pelos dois poemas – ascendente, íngrememente descendente e, por fim, em ligeira ascensão”. Assim, ambos os poetas, mas em particular Fernando Pessoa, consagram os poemas a D. Sebastião.

José Régio chega atribuir ao poema Os Lusíadas o tema da aventura tresloucada do jovem rei em Alcácer Quibir, no intuito de conquistar o Quinto Império, O Império de Cristo na terra. Esse tom glorioso dedicado a D. Sebastião da dedicatória contrasta com o último canto, em tom bem mais pessimista, no qual o poeta lamenta a própria sorte. Então Camões acaba por realizar uma crítica abarcando toda a sociedade portuguesa. Segundo a autora, o final do poema transmite, ao tentar resgatar a inspiração das musas, uma sensação de “desalento, de desencanto”: os nautas já cumpriram sua missão. Enfim, o tom baixo do poema, imiscuído pela subjetividade do poeta, subverte o modelo da epopeia e coincide com a decadência das aspirações grandiosas de Portugal.

É, enfim, o idealismo desmedido, sebastianista, o tema central dos poemas, e pelo qual Fernando Pessoa irmana-se a Bandarra e Vieira nas profecias sobre o Encoberto e o Quinto Império. Portanto, há um desespero em Fernando Pessoa, compatível ao de Camões, que se observa na própria estrutura de Mensagem, como ao que é expresso no título “Nevoeiro”, dos versos finais, marcado por uma negatividade: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro”.

Segundo a autora, os maiores poetas portugueses apontam para uma solução: em Camões, real; em Pessoa, transcendental. “Dois poemas épicos – ou épico-líricos? - ‘de espécie complicada’, diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal”.

BERARDINELLI, Cleonice. “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”. In: Estudos Camonianos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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