Resumo do texto “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, de Cleonice Berardinelli.
Por J. P. A. G.
Dois poetas: Luis Vaz de Camões e Fernando Pessoa. O primeiro, eclipsando as gerações vindouras, com sua obra poética insuperável; o segundo, “o proximamente-vindouro”, destinado a receber o fardo histórico e literário de superar o “ainda-primeiro”. Pessoa, um Super-Camões.
Esta é a difícil tarefa, talvez
megalômana, que se autoproclama Fernando Pessoa, pela voz de seu heterônimo
Álvaro Campos, a saber, subir ao panteão dos maiores, ao lado de Dante,
Shakespeare e, obviamente, Camões. Sua vontade de superação, entretanto, não é
desprezo pelo ainda maior poeta lusitano, mas profunda admiração.
Muito embora a obra poética de
Fernando Pessoa não referencie diretamente Camões, a reverência ao maior poeta
da língua portuguesa é manifesta na intertextualidade sem precedente e marcada
pelo tom ufanista sem limites de Mensagem (século XX) ao épico
fundador Os Lusíadas (século XVI). O paralelo, não evidente
por si, seria fácil perceber se Fernando Pessoa mantivesse o título provisório
em sua coletânea de poemas: Portugal. Salta à vista, todavia, o
tema retratado por ambos os poetas; em Camões lê-se: “um amor da pátria não
movido De prêmio vil, mas alto e quase eterno...”; em Pessoa: “um nacionalista
místico, um sebastionista racional”.
Dissipada a névoa que os separam de início,
os paralelos tornam-se ainda mais evidentes. Camões segue a tradição épica e
inicia seu poema in medías res, para depois invocar a musa da
epopeia Calíope, então passa a palavra ao navegador Vasco da Gama, a quem cumprirá
a tarefa de narrar o poema, exaltando o grandioso reino Português. Dentre todos
os reinos europeus, Vasco glorifica Portugal a um interlocutor, o rei de
Melinde: “Quase cume da cabeça”. Por outra forma, em Mensagem, Fernando Pessoa alude aos versos do grande clássico da
literatura portuguesa: “rosto com que fita” o “Occidente”.
N’Os Lusíadas, Camões introduz
uma passagem histórica, através da narrativa de Paulo da Vasco da Gama, remetendo
as origens da nação lusitana aos símbolos e brasões de nacionalidade que seguem
a tradição de Ulisses até a guerra de Reconquista. Em Mensagem,
Fernando Pessoa também esboça uma genealogia mítica e também atribui às origens
portuguesas o herói da Odisseia. A menção a este passado é um recurso usado por
Camões para introduzir na longínqua nação portuguesa o herói Viriato, líder da
resistência do povo lusitano aos conquistadores de Roma. Fernando Pessoa também
recorda Viriato como o segundo castelo.
Ambos os poetas fazem referência a D. Henrique, do condado Portucalense. Nesta
passagem, há uma citação, em Mensagem, mais especificamente a
epígrafe em latim Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum,
ao início de Os Lusíadas: “armas e os
barões assinalados”.
Tal qual seu compatriota, Fernando
Pessoa não presta homenagem a Dona Tareja, esposa de D. Henrique, a primeira rainha
de Portugal. Camões havia acusado-a de não saber ser boa mãe. Pessoa, porém,
apenas a trata com indiferença.
Diante disso, nota-se uma ruptura com
o nacionalismo laudatório, para aquilo que a autora, Cleonice Berardinelli,
denomina de nacionalismo crítico, o
que representa, no caso de Camões, um desvio conceitual da epopeia clássica.
Ainda traçando um paralelo intertextual
entre Camões e Pessoa, em Os Lusíadas,
o marco da fundação de Portugal dá-se com o reinado de Affonso Henriques,
cantado em cinquenta e cinco oitavas. O poema de Fernando Pessoa é, no entanto,
bem mais econômico e dispensa ao referido rei apenas dois quartetos, muito embora
significativos. Camões também é mais perdulário ao descrever a dinastia real,
enquanto Pessoa se detém a D. Diniz. E aqui a uma divergência entre os dois poetas.
Camões canta a liberalidade de Affonso Henriques, marcada pelo progresso
cultural. Já Pessoa traz à memória os epítetos de D. Affonso, omitidos por
Camões, por meio de uma metáfora na qual indica o futuro de Portugal associado
à terra e ao mar: rei trovador e rei lavrador.
Novamente, Camões e Fernando Pessoa
diferem quanto à enumeração dos elementos da realeza, sendo o primeiro, como
vimos, mais “generoso” e o segundo, “parcimonioso”. O alvo agora, em ambos, é
D. João I e sua mulher Felipa, geradores da dinastia de Avis. Enquanto em
Camões a figura de maior destaque é Inês, em Pessoa, dispensa-se atenção apenas
a Tareja e Felipa, rainhas de impérios, às quais o poeta não emite qualquer juízo
de valor. Fernando Pessoa também dedica especial atenção aos filhos de D. João
I, notadamente, D. Sebastião. Mas, em ambos os poetas, nota-se uma história de
fracasso relativa aos cinco irmãos. Camões, entretanto, limita-se ao sofrimento
de D. Duarte, por ter o irmão, D. Fernando, cativo dos inimigos; a D. Pedro, poucas
notas; a D. João, emudece; e a D. Sebastião, seu contemporâneo, o poeta o
coloca a par dos deuses. Em Pessoa, porém, há algo de positivo nesse fracasso,
enquanto “dever cumprido”, e que transparece nos celebres verso de “Mar
portuguez”: “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”. A loucura aqui é um
valor muito caro, o único que restou, já que o Império se desfez.
Divergem outra vez os grandes poetas.
Para Camões, D. Manuel é patrono das navegações. Para Pessoa, D. João II.
Em “Mostrengo”, Pessoa aproxima-se
bastante de Camões, no que se refere ao Gigante Adamastor. Neste sentido,
segundo a autora, os dois poetas portugueses constroem seus versos “seguindo o
roteiro dos reis” e, para ambos, o grande herói nacional é Nuno Álvares Pereira.
Neste ponto, a autora comentará o
estilo de ambos os poemas, ao qual denomina “linha sinuosa descrita pelos dois
poemas – ascendente, íngrememente descendente e, por fim, em ligeira ascensão”.
Assim, ambos os poetas, mas em particular Fernando Pessoa, consagram os poemas
a D. Sebastião.
José Régio chega atribuir ao poema Os Lusíadas o tema da aventura
tresloucada do jovem rei em Alcácer Quibir, no intuito de conquistar o Quinto
Império, O Império de Cristo na terra.
Esse tom glorioso dedicado a D. Sebastião da dedicatória contrasta com o último
canto, em tom bem mais pessimista, no qual o poeta lamenta a própria sorte. Então
Camões acaba por realizar uma crítica abarcando toda a sociedade portuguesa.
Segundo a autora, o final do poema transmite, ao tentar resgatar a inspiração
das musas, uma sensação de “desalento, de desencanto”: os nautas já cumpriram
sua missão. Enfim, o tom baixo do poema, imiscuído pela subjetividade do poeta,
subverte o modelo da epopeia e coincide com a decadência das aspirações
grandiosas de Portugal.
É, enfim, o idealismo desmedido,
sebastianista, o tema central dos poemas, e pelo qual Fernando Pessoa irmana-se
a Bandarra e Vieira nas profecias sobre o Encoberto e o Quinto Império.
Portanto, há um desespero em Fernando Pessoa, compatível ao de Camões, que se
observa na própria estrutura de Mensagem, como ao que é expresso no
título “Nevoeiro”, dos versos finais, marcado por uma negatividade: “Ó
Portugal, hoje és nevoeiro”.
Segundo a autora, os maiores poetas
portugueses apontam para uma solução: em Camões, real; em Pessoa,
transcendental. “Dois poemas épicos – ou épico-líricos? - ‘de espécie
complicada’, diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal”.
BERARDINELLI, Cleonice. “Os Lusíadas
e Mensagem: um jogo intertextual”. In: Estudos Camonianos. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário