quarta-feira, 15 de março de 2023

"Eu versos eu" - (Parte 11) - Antologia

 

Antologia

31.

Mas a culpa não é minha

É também do impossível

Porque, às vezes, parece

Sempre ser possível

 

32.

Traí porque

O desespero

Seduziu

Meu coração

Com meigas

Palavras

 

Traí porque

A solidão

Empurrou

Meus sonhos

Num abismo

Sem fundo

 

Mas ainda

Sinto amor

Como uma pedra

Dentro do peito

 

33.

Meus versos

Jorram

Do meu peito

Inspiração

Brutal

Que me toma

À noite, à janela

Das estrelas

Na madrugada

Do sono

Que não vem

 

34.

Meus versos

Versos livres

Livres demais

 

35.

Meus versos

Prosa dissimulada

De poesia

 

36.

Meus versos

Qual seu valor

Para a literatura

Nenhum

Para mim

Incalculável

 

Pois são

Um pouco

De mim

 

37.

Intuição inspiração

Não é poesia

Tampouco um casal

De namorados

Como milhares de outros

É poesia

Tampouco um céu

À noite estrelado

Como milhares de outros

É poesia

Tampouco um bosque

De árvores floridas

Como milhares de outros

É poesia

Tampouco um mar

De ondas azuis

Como milhares de outros

É poesia

Tampouco isso

E todo que existe

Como milhares de outros

É poesia

É, todavia, poesia viva

Metamorfose de palavras

 

38.

Há poetas por profissão

Há poeta por pretensão

E há poetas

 

E há aqueles que escrevem coisas de si

Para si

 

Eu

 

39.

Piegas

Sou piegas

Romântico

Excessivamente

Mas medíocre

Não consegui ser

Pois a vida sempre

Me afastou do meio

Porém, não ser medíocre é fácil

Pois medíocre é sempre o outro

 

40.

Quando me decidi

Por escrever

Meus sentimentos

Em pensamentos

Em noites de insônia

Movido pela esperança

Em descobrir

Minha salvação

Em vestígios de lembrança

Entrei num labirinto escuro

Tateando paredes, o chão

Andando, a esmo

Numa espiral sem fim

Desespero

Foi só o que encontrei

A inconsciência me arrastou

Num mar tempestuoso

Fora de mim

Fora de tudo

Fora do mundo

quarta-feira, 8 de março de 2023

Lima Barreto contra o feminicídio no Brasil

 


Algum tempo atrás, influenciados pelo cientificismo antropológico de cunho racista do século XIX, alguns sociólogos brasileiros tentaram definir o “caráter” – entendido como uma natureza psicológica de fundo biológico e social – do povo brasileiro com a expressão “homem cordial”.

Segundo o conceito de cordialidade, diante do estrangeiro, notadamente, o comportamento do brasileiro se caracterizava pela excessiva gentileza, solicitude, submissão, amistosidade, fascinação, subserviência, adulação, humildade e um certo complexo de inferioridade.

Todavia, a conduta cordial não se dirigia a todo e qualquer estrangeiro, mas somente aos europeus, principalmente, ingleses, franceses e alemães, e também aos estadunidenses; tanto uns quanto outros distintos por um tipo físico caucasiano do norte da Europa.

O que a sociologia brasileira negligenciava, talvez até mesmo por causa de sua cordialidade, é que, dentro de uma escala de valores, tudo se passava como se o brasileiro ocupasse um lugar intermediário. Latino-americanos, africanos, indígenas e outras etnias “não brancas” sempre sofreram o desprezo e a indiferença da população brasileira em geral, muito embora esta tenha sido um produto de mestiçagem, envolvendo tais grupos étnicos, que tanto queria extirpar, através, como diria Darcy Ribeiro, da doutrina racista do branqueamento da raça, ainda hoje vigente sem o esmalte da institucionalidade.

É certo que um alemão contará no Brasil com uma recepção calorosa em todas as classes sociais e não terá dificuldades em fazer amigos – muitos amigos, aliás. Já um haitiano, por exemplo, será mal visto e tratado com preconceito, sendo excluído do menor convívio com brasileiros.

O conceito de cordialidade, entretanto, é mais largo, abrangendo uma conduta subalterna dos indivíduos perante a quem é percebido como superior na hierarquia social (o chefe, a autoridade, o patrão, o fazendeiro etc.), e ultrapassa a questão nacional ou racial (apesar de o fator econômico coincidir com o de raça e o branco ocupar o topo da pirâmide social).

Evidentemente, o homem cordial nunca passou de uma ficção teórica, já que o caráter biológico não pode ser empregado a um agente coletivo, como é o caso de um povo. A cordialidade é um conceito pseudocientífico ou, pelo menos, um falso conceito que esconde e dissimula o verdadeiro ethos do povo brasileiro, o qual pode ser realmente definido por um traço cultural extremamente enraizado nos hábitos e costumes da população: a cafajestagem.

A cafajestagem nada tem a ver com o antropofagismo representado por uma figura mítica como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Nada tem de estético ou positivo, pois a cafajestagem é a essência abjeta que se manifesta no extremo oposto de sua própria aparência vil, a cordialidade, e pode se definida pela truculência covarde no trato com o igual ou o socialmente “inferior”, tradicionalmente, mulheres, crianças, empregados, índios, negros, pardos, trabalhadores e escravos...

É nesse aspecto que a mulher pode ser encarada como uma espécie de elemento universal, constituído por todas as categorias rebaixadas socialmente, cuja condição afetiva a coloca sob o domínio direto do cafajeste, que faz dela sua principal vítima.

O homem cordial depois de se rastejar de maneira asquerosa aos pés de seu superior, ao retornar para o lar se transforma em cafajeste, tal qual um Sr. Hyde à brasileira, e desconta toda sua frustração e seu ódio, não raro com agressões físicas, em cima da mulher, geralmente, sua esposa, namorada, filha, empregada doméstica, amante, prostituta etc. Atitude que não merece reprovação da vizinhança nem das instituições públicas. Ao contrário, o estereótipo do cafajeste, violento, dominador, mandão, machão e paternal, é valorizado por homens e mulheres como sinal de virilidade, em nada abalado pelo seu comportamento dócil e tíbio na esfera pública e hierárquica.

Na mentalidade tosca do cafajeste a mulher é cronicamente imatura, devendo, por isso, obediência absoluta ao homem e por ele tutelada. Em última análise, o cafajeste acredita deter do poder de vida e morte da mulher e que a ele cumpre decidir sobre o destino dela, para o bem ou para o mal – geralmente mais para o mal.

Soma-se a essa realidade a falta de cultura ostentada portentosamente pelo povo brasileiro que tanto escandalizou um intelectual da estatura de Otto Maria Carpeaux. Fruto do subdesenvolvimento histórico e do fosso abissal que separa as classes sociais, a ignorância é um problema na sociedade brasileira cuidadosamente mantido e preservado por anos de descaso intencional com o ensino e a escola pública. Até mesmo a riquíssima produção cultural do folclore brasileiro é descartada e substituída pela importação fácil de valores efêmeros oriundos da indústria cultural anglo-saxônica, fomentando ainda mais a boçalidade atroz do cafajeste, que no seu ínfimo repertório vocabular só sabe falar de futebol.

Acrescente-se ainda a impunidade que atravessa o país em todos os níveis, garantida por uma legislação que mais parece ter sido feita por um bando de salteadores, e teremos um coquetel explosivo.

Quem nunca ouviu alguém dizer a frase: “No Brasil não vale a pena ser honesto”. Pois é, não é à toa que no Brasil é mais fácil acabar com as leis trabalhistas e previdenciárias do que mudar uma vírgula do código penal. O que pode ser explicado pela índole escravagista de nossos legisladores e das máfias que governam o país e se beneficiam da impunidade. O fato da Suprema Corte reconhecer somente em 2021 (!!!) a inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra, artifício legal que inocentava os homens em casos de feminicídio, não é motivo nenhum para comemoração mas, sim, de manifestar profundo repúdio por tantos anos de cumplicidade do Estado com os crimes praticados em nome da honra masculina ferida.

O mais assustador de tudo isso é constatar a atualidade de um texto sobre violência contra a mulher escrito a mais de cem anos atrás. Trata-se de uma crônica de Lima Barreto, publicada em 1915, em que o autor termina o texto com a seguinte reprimenda: Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!

Lima Barreto é um dos escritores mais inteligentes e injustiçados da literatura brasileira e, não por acaso, foi preterido pela Academia Brasileira de Letras. (Entre tantos erros de Machado de Assis, talvez a ABL seja o maior deles: mera macaqueação da Academia Francesa). Sem saber, Lima Barreto poderia jactar-se de não carregar essa nódoa em sua biografia. A ABL não merece um Lima Barreto vestido com aquele fardão ridículo ocupando suas cadeiras, pois o literato em questão é grande demais para ela. Provido de uma lucidez e um espírito crítico sem igual em nossa literatura, Lima Barreto nunca foi um homem cordial, tampouco um cafajeste. Talvez, tenha sido esse o seu pecado capital, nesta invenção mal-ajambrada chamada Brasil.

O que nos serve de consolo, é saber que o resto do mundo não é melhor e que os países ditos de “primeiro mundo” só são melhores do que nós no quesito hipocrisia. Fora isso, são muito piores. O que não é desculpa para fecharmos os olhos para as mazelas do Brasil, dentre muitas, a violência contra a mulher.    

Por isto, neste 8 de Março, ninguém menos que Lima Barreto para abrilhantar nossas páginas, em que pese a carga negativa do tema em tela. O texto que vamos ler a seguir é mais do que didático e deveria ser leitura obrigatória a todos os brasileiros desde a mais tenra idade.

Não as matem

Lima Barreto

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio a morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão. O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus!

Vida urbana, 27/01/1915