Homero,
Odisseia
Análise: Odisseia - Canto 1: Telêmaco
O tema escolhido para uma reflexão deste breve comentário é a posição de prestígio social de Telêmaco, conferido pela “fama”, em relação ao seu pai, Odisseu, tal como é sugerido no Canto 1 da Odisseia.
Resumidamente,
o referido canto inicia com os deuses reunidos em assembleia. Zeus é
questionado pela queixa da deusa Palas Atena, por ter se esquecido de Odisseu.
A deusa lembra que o herói perdera-se a caminho de casa, o reino de Ítaca, após
a guerra de Troia. Odisseu furou o único olho do ciclope Polifemo, filho de
Posêidon e a ninfa Tóosa. Como vingança, o colérico Posêidon mantém Odisseu
longe da terra natal sem o destruir. Atena vai a Ítaca, onde encontra Telêmaco
desolado, por desconhecer o paradeiro do pai e, pela ausência deste, não se
sentir merecedor da fama dos heróis. A esposa de Odisseu, Penélope, é cortejada
pelos pretendentes, aos quais a julgam viúva, procurando esposá-la. Estes vivem
como parasitas no reino de Odisseu, jogando dados, embriagando-se e
banqueteando.
É preciso
salientar que, logo a partir do início do poema, Homero põe todas as cartas
sobre a mesa, sem esconder nenhum trunfo na manga. Além do presente único, puro
e perpétuo, onde tudo se passa em um primeiro plano, sem profundidade e
perspectiva, de que nos fala Erich Auerbach, sobre o estilo homérico, outra
característica apontada pelo teórico fica patente: a clareza. Portanto, nas
palavras do autor de Mimesis, reconhece-se: “(...) representar os
fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes,
claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. Não é diferente o
que se dá com processos internos também deles nada deve ficar oculto ou
inexprimido” (AUERBACH, 1976, p. 3). Esta célebre caracterização da poesia
homérica, por Auerbach, tinha por contraponto o Velho Testamento, dada as
raízes judaicas do teórico. Segundo o autor, o estilo parcimonioso do épico
hebraico, que, tendo por pressuposto um Deus oculto, sem rosto, dá margem à
perspectiva e profundidade dos fatos e da psicologia dos personagens, e
contrasta frontalmente com a riqueza sintática, vocabular, geográfica etc., do
estilo cristalino de Homero. Tal comparação ajuda-nos a compreender o estilo
homérico. “De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos
temporal e espacialmente, ligados entre si, em interstícios, num primeiro
plano; pensamentos e sentimentos exprimidos; acontecimentos que se desenvolvem
com muito vagar e com pouca tensão. De outro lado, só é acabado formalmente
aquilo que nas manifestações interessa a meta da ação; o restante fica na
escuridão” (Idem, p. 8 e 9).
Esta
caracterização estilística merece algumas considerações referentes ao contexto
sócio-cultural em que a tradição evidenciou. De modo inverso ao Velho
Testamento, conforme Auerbach, a função da poesia homérica não é a de expor a
verdade - histórica (arqueológica) - e, sim, o lazer, embora isso não destitua
seu caráter religioso. No caso dos hebreus, a verdade do passado mítico tinha
de ser real por causa da promessa de Deus, da Terra Prometida e do fim dos
tempos. Essa necessidade de realização não era pertinente para a teologia
helênica.
Se o
lazer era o catalisador da poesia homérica, seria importante caracterizar o
contexto da execução performática apropriado às configurações formais da épica
de Homero. Para nós modernos, situados no limiar do século XXI e de uma
possível “odisseia no espaço”, é muito difícil compreender o contexto cultural
da épica na Grécia arcaica. Para isso, seria necessário um exercício
imaginativo que se abstivesse de uma longa tradição da escrita e de recursos de
comunicação de alta tecnologia e extremamente recentes, como o rádio, o cinema
e a internet. Porque, para os antigos, da Idade do Bronze, essa realidade,
obviamente, era inimaginável. Estes dispunham apenas da palavra, isto é, da
oralidade, já que na época dos heróis, precedente a Homero, não havia escrita
na sociedade helênica; nem por isso deixaram de criar um repertório cultural
riquíssimo e sofisticado.
É neste
contexto que a figura enigmática de Homero e seus poemas têm de ser inseridas.
Algumas questões são bastante conhecidas, como a tradição aristotélica dos
gêneros literários, que consagrou a épica à narrativa de homens superiores e
feitos heroicos. Também os recursos da forma poética, em Homero, para
transmissão oral, recentemente, foi muito estudada (Parry e Lord).
Evidentemente, alguns aspectos técnicos da poesia oral devem ser levados em
conta, até mesmo por questões de memorização e transmissão da extensa narrativa
em versos que ganharam, por isso, a conotação, ainda hoje, de grandeza sugerido
pelo adjetivo “homérico”. Algumas dessas fórmulas são muito conhecidas, como a
métrica da composição em hexâmetros datílico, abundância de epítetos,
repetições, estruturas circulares ou anelares etc.
Porém,
estas questões passam ao largo da recepção da audiência durante a performance
na execução da épica no universo sócio-cultural da Grécia arcaica. De um modo
geral, o poema épico está ligado ao mito fundador formador de identidade de um
povo grego. Por isso as questões de performance, isto é, em que ocasiões as
canções eram recitadas, os registros de linguagem, os temas e as relações entre
o poeta e o público (FORD, 1997), devem ser também consideradas para a
caracterização formal do poema épico.
Sobre
isso, o próprio texto homérico fornece indícios significativos. A performance
não era executada numa situação estrita, bem marcada, como festas nacionais. Os
poemas eram recitados ou cantados por aedos profissionais em “rituais específicos
e ocasiões comunitárias” (idem), como casamentos, banquetes, simpósios,
festivais religiosos etc., tendo por finalidade o entretenimento, que davam o
tom de seu aspecto formal específico. Segundo Ford, os cantores apresentavam-se
sozinhos, acompanhados por instrumentos musicais de corda. Porém, tais
elementos não permitem conjecturas precisas. “Nem os contextos de performance,
nem os seus requisitos formais, portanto, nos ajuda com mais do que uma
definição geral da épica arcaica: podemos somente dizer que já em Homero era um
tipo de poesia tradicional não-mélica, que podia ser adaptada a muitas
situações, mas não se identificava especialmente com nenhuma e, assim, sem um
nome específico. O que mais obviamente distinguia a épica de outras formas
não-mélicas em metros iâmbicos e trocaicos foram os temas de que tratava”
(idem, p. 7).
O Canto 1
apresenta exemplo que bem poderia definir o contexto de performance associada à
tradição épica.
Depois de
se fartarem, os pretendentes dançam e Fêmio, o aedo, constrangido canta:
“ (...) Um serviçal
transfere a Fêmio a cítara pluribelíssima,
constrangido a cantar por quem tomara o paço.
(...) Calados, escutavam o cantor notável (...).
À câmara de cima chega a voz do aedo,
ouvida por Penélope, filha de Icário,
que desce da alta escadaria, não sozinha,
mas com as duas fâmulas sempre solícitas.
Diante dos pretendentes, a mulher divina
estanca rente ao botaréu do teto altíssimo,
encoberta por véu translúcido, dedáleo,
uma ancila postada à esquerda, a outra, à destra.
Pranteava ao se voltar para o cantor divino:
‘Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens
e de imortais que encantam as plateias, célebres.
Escolhe um deles, que, em silêncio, todos te ouvem
sorvendo o vinho: para o canto lutuoso
que dói no coração como um punhal bigúmeo;
o sofrimento incontornável me domina,
pois nunca deixo de rememorar o rosto de um herói,
cuja glória ecoa em Argos, na Hélade’.
(...) Voltaram-se ao deleite da poesia e dança,
à diversão que prenunciava o anoitecer,
e, enquanto divertiam-se, escurece a noite”.
Nota-se
que, neste caso, não há uma ocasião solene, de festividade nacional ou
comemorativa de uma data histórica, mas apenas descreve uma situação em que os
pretendentes, descontraídos, “passam o tempo” - sorvendo o vinho, jogando
dados, dançando - no palácio de Odisseu. Penélope, ao entrar em cena, chora e
lembra que o aedo Fêmio conhece um vasto repertório de temas épicos, tanto
referentes a um deus como a de um herói que, entre tantos, poderia ser Aquiles
ou mesmo Odisseu: “Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens e de imortais
que encantam as plateias, célebres. Escolhe um deles (...)”. A atitude da
plateia é de atenção: calados, em silêncio, todos te ouvem. Aqui,
parece caracterizar bem o contexto de performance da épica.
Nesta
passagem, confirmando Ford, também pode se perceber que Fêmio é um aedo
profissional, especializado no gênero épico, portanto, inspirado por uma Musa,
“que celebra a fama dos homens de antanho” (Hesíodo, citado por Ford). O fato
de ele conhecer muitos feitos de homens e de imortais demonstra
uma espécie de “divisão de trabalho”, definida pelas Musas, entre os poetas e
cantores, que também tocavam instrumentos musicais durante a apresentação. O
cantor épico cantava a glória (kléos) dos grandes feitos e heróis do passado.
No que
concerne ao fato aludido por Auerbach, em sua distinção entre o épico grego e o
hebraico, de Homero ser um mentiroso - “As que nos contaram Hesíodo e Homero -
esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, são esses que fizeram para os
homens essas fábulas falsas que contaram e continuam a contar”, diz Sócrates,
em “A República”, de Platão - pode ser bastante relativizado. Se a promessa do
Deus dos hebreus tornava imprescindível a veracidade factual dos heróis do passado,
para o passado lendário, no caso da épica homérico essa não pode ter apenas um
caráter de ficção, haja vista que Sócrates foi condenado por corromper a
juventude. No entanto, não me sinto autorizado a entrar num terreno de tão
difícil problemática, acerca das distinções teológica de culturas estranhas
umas às outras. Mas Homero, quando invoca as Musas, simplesmente se deixa falar
por elas, tal como uma revelação. O fato é que, segundo Ford, a invocação das
Musas pelo aedo buscava conferir um sentido de “verdade” que marcadamente
caracterizava a forma da poesia épica, porém, não só ela. A introdução do Canto
1 é bem significativa:
“O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas
errâncias, destruída Tróia, urbe sacra,
as muitas cidadelas e homens cuja mente
escrutinou, as muitas dores que amargou
no mar a fim de preservar o próprio alento
e a volta aos sócios. Não os salva, desejoso
embora: a insensatez – pueris! – os vitimou,
pois Hélios hiperônio lhes recusa a luz
da volta, morto o gado seu que eles comeram.
Começa desse ponto o canto, musa olímpica!”
Para resumir, o lugar
e a relação formal da épica com a realidade sócio-cultural subjacente a ela,
Ford escreve que a “épica grega arcaica deve ser, portanto, definida por termos
formais, temáticos e retóricos. Consistia numa longa canção executada por um
solista em uma recitação rítmica; e narrava com autoridade das Musas os feitos
dos deuses e dos heróis antigos. Os temas tratados na épica, os “caminhos” que
poderia tomar, eram extensos, mas categoricamente circunscritos numa concepção
mítica de uma idade de ouro há muito perdida. As histórias eram apresentadas
dramaticamente e sem pistas explícitas sobre como aplicá-las à vida do público”
(Ford, p. 17).
Estas considerações,
em que a glória (kléos) estruturava a narrativa dos feitos heróicos,
ensejam uma reflexão sobre o personagem central do Canto 1, o jovem Telêmaco.
Telêmaco é objeto de polêmica entre os estudiosos de Homero, por ser um
adolescente. Mais especificamente sobre Telêmaco, “a caracterização dessa
figura tem suscitado uma série de discussões, pela sua condição de jovem
prestes a entrar na idade adulta: Telêmaco, ao contrário dos outros heróis
homéricos que desempenham papéis de destaque, não é um homem feito” (MALTA).
Para alguns, o filho
de Odisseu é um personagem sui generis no panorama de
personagens estáticos da poesia homérica, pois apresenta uma evolução. Para
outros, ao contrário, o desenvolvimento em Telêmaco já estava pressuposto em
sua caracterização, não diferindo em essência dos demais personagens. Malta
questiona a estaticidade dos principais personagens homéricos e sugere um meio
termo entre essas duas posições. No caso de Telêmaco, o autor argumenta uma
transição da infância para a idade adulta, suscitada pela visita de Atena.
“Podemos afirmar então que a intervenção de Atena tem dois propósitos
principais: estimular, através do furor e da reflexão incutidos, que Telêmaco
abandone a passividade e se torne um realizador de atos e palavras; e fazer com
que essa sua nova postura resulte na obtenção de seu kléos pessoal,
que é uma confirmação do seu kléos familiar. Essa transformação, por sua vez
(em curso na “Telemaqueia” e consolidada na segunda metade do poema),
confunde-se com a sua passagem da infância para a idade adulta, com o
estabelecimento de novas exigências e expectativas” (idem, p. 90). A idade
adulta deve ser consagrada, para Telêmaco, pela fama que deve igualar ou
superar a fama paterna.
O mote central se
desenvolve numa cena típica de recepção. A deusa Atena disfarçada no
estrangeiro Mentes, rei dos táfios, é recebida no palácio por Telêmaco, que
realiza toda a etiqueta de hospedagem. Nisso, Atena relembra, a Telêmaco,
Odisseu, afirmando que este vive, e que seu retorno significaria a vingança dos
pretendentes de Penélope, que, como autênticos parasitas, desonram o lar do
herói de Troia. Para mostrar familiaridade, a deusa conta o episódio das
flechas envenenadas envolvendo Anquíalo, pai de Mentes, e Odisseu. A princípio,
Telêmaco titubeia, talvez pela sua imaturidade, e chega a pôr em dúvida até
mesmo sua filiação consanguínea a Odisseu quando indagado por Atena. Sua
lembrança do pai não é física mas de seus feitos, de sua coragem. A deusa, por
outro lado, retruca que o jovem assemelha-se muito, fisicamente, a Odisseu, e
que não é da vontade dos deuses que linhagem deste caia em esquecimento. A
incerteza mediante ao paradeiro de Odisseu impele Telêmaco a acreditar que ele
não é merecedor de sua glória, mas, antes, da dor como legado de seu pai.
Atena, então, para lhe incutir coragem, cita o exemplo de Orestes e o instrui Telêmaco
a buscar notícias de Odisseu em Pilo e Esparta para, a partir disso, também
conquistar sua própria fama. Ao partir, Atena manifesta sua divindade ao voar
como uma pomba. O limitado leque de opções de Telêmaco, em relação aos
pretendentes, resultam em apenas uma saída: matá-los, porque é exatamente este
fim que lhe será reservado se por acaso um pretendente casar com sua mãe.
Fragmento do discurso
de Atena:
“(...) O jovem deve obter na Pilo multiareada
e Esparta alguma informação do pai que volta.
Que a expedição o afame entre os mortais de estirpe!”
(...)
Se ouvires que ele vive e que retorna a Ítaca,
suporta a dura espera, mesmo se de um ano,
mas se ouvires que já morreu, erige um túmulo
tão logo chegues, ricas oferendas fúnebres,
muitíssimas, concede, e um novo esposo à mãe!
Quando não mais houver questão pendente, indaga
a ti mesmo, rumina o coração e a mente
sobre o modo melhor de eliminar em casa
a corja de chupins, se à bruta ou se iludindo-os.
Deixa de criancices que não és criança!
Ignoras que o divino Orestes se afamou
em toda Grécia ao trucidar o algoz do pai,
Egisto, homem ladino, matador do herói?
Pois te equiparas a ele em porte e vigor físico:
hão de louvar os pósteros o teu rompante!
os pósteros irão louvar o teu rompante!”
De fato,
há mudança nítida de postura em Telêmaco. O filho de Odisseu era inseguro e
taciturno perante os pretendentes. No final, discursa destemido, surpreendendo
até mesmo sua mãe. Sabe-se que não é mais uma criança e que, para se tornar
adulto e digno de sua ascendência nobre, deve buscar sua própria fama. A visita
de Atena é este ponto de inflexão, ao lembrar-lhe da estirpe de Odisseu.
BIBLIOGRAFIA
AUERBACH,
E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
FORD, A.
Epic as genre. In: MORRIS, I.; POWELL, B. (Org.) A new companion to Homer.
Leiden: Brill, 1997, p. 396-414.
HOMERO,
Odisseia, (Tradução: Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34, 2014.
MALTA, A.
A linguagem fora de controle: o discurso de Agamênon no Canto 2 da Ilíada.
Ordia Prima, v. 8, p. 25-49, 2011.
Que análise incrível!
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