terça-feira, 15 de outubro de 2019

Squat - Okupa e o movimento punk: Ocupar e Resistir

O processo de urbanização durante e depois da Revolução Industrial gerou o fenômeno da crise habitacional quando enormes contingentes de camponeses expropriados de suas terras migraram para as cidades e tornaram-se trabalhadores assalariados e explorados que abarrotavam os cortiços insalubres dos bairros operários. Mais de duzentos anos depois, este cenário pouco se alterou. A crise da habitação acrescida à especulação imobiliária obstou ainda mais o acesso à moradia e grandes grupos sociais são cada vez mais forçados a ocupar imóveis desabitados em muitas cidades do mundo.

Fachada de ocupação
Okupa, em Barcelona.

A ocupação de imóveis, denominada squat ou okupa, como é conhecida na Espanha, começou a surgir em fins dos anos sessenta na Inglaterra, Alemanha e Holanda, não apenas como uma expressão de fatores da falta de moradia, mas também como prática de movimentos de contracultura, tais como o hippie e, mais tarde, o punk. Na década de 1960, uma parte significativa da intelectualidade e da classe média londrinas passou a se mudar para áreas centrais da cidade habitada pela classe operária, elevando o preço dos imóveis e, consequentemente, ocasionando a expulsão dos antigos moradores. Este processo de segregação e aburguesamento de bairros centrais e pauperizados ficou conhecido como gentrificação.

Fachada de ocupação
Squat, em Berlim
Os squats ou okupas, no entanto, tal como os conhecemos - a ocupação de propriedades vazias ou abandonadas por pessoas de baixa renda ou motivadas por ideários políticos - não foram muito significativos até o final dos anos 1960 e o início dos anos 70. A partir daí, de Amsterdã a Nairóbi, de Roma a Mumbai, de Praga a San Tiago, a luta por moradias decentes e acessíveis se somou a reivindicações de outra ordem, que iam além das pautas tradicionais da esquerda clássica, congregando segmentos sociais novos e emergentes no cenário político, tais como movimentos estudantis, direitos civis, Black Power, feminismo, LGBT etc., que, inspirados no filósofo francês Henri Lefebvre, exigiam também seu "direito à cidade".

LONDRES

A cidade de Londres se tornou um repositório de parte do dinheiro mais sujo do mundo. Um exemplo disso, a inescrupulosa especulação no mercado imobiliário, fomentada por processos de gentrificação, que resultaram na segregação da população mais pobre e deixou um rastro de imóveis abandonados. Nesse cenário, quem não podia comprar ou alugar um imóvel era obrigado a deixar a cidade. O movimento moderno dos squatters em Londres é iniciado em 18 de novembro de 1968, com a fundação da London Squatters Campaign (LSC), que, inicialmente, compreendia cerca de quinze pessoas, a maioria das quais progressistas e anarquistas. O objetivo imediato da LSC era claro: a realocação de famílias pobres de cortiços ou albergues para imóveis públicos que estavam vazios e ociosos. A longo prazo, objetivava liderar um movimento de massas que inspiraria moradores de rua e de bairros pobres a ocupar sistematicamente imóveis por toda a cidade.

A partir de 1969, outras tendências começaram a surgir em paralelo ao LSC, assumindo a forma de uma constelação de movimentos de contracultura que tinham no squat um meio de não só contestar a instituição da propriedade privada mas também os valores fundamentais da sociedade burguesa. Essa tendência encarnou-se principalmente no movimento hippie.

Certamente, os invasores hippies contribuíram em muito para o fortalecimento do movimento squatter, mas também eclipsaram o trabalho dos primeiros ativistas envolvidos na luta por moradia barata e de qualidade. Para cada grupo comprometido com a causa da habitação popular, isto é, requalificar prédios públicos abandonados e região de entorno ou protestar contra a gentrificação; existem dois grupos cujo único objetivo é ocupar um imóvel desocupado, fazer uma rave, vender latas de cerveja quente e desaparecer na segunda-feira de manhã, deixando para trás um amontoado de lixo. Este caráter um tanto leviano dos movimentos de contracultura estimulou a principal acusação de seu concorrente, a LSC: a falta de seriedade com a causa, a qual contaminava negativamente a opinião pública.

Prédio ocupado em São Paulo
Ocupação em São Paulo - aquivo pessoal Jean
Crítica não totalmente justificada, diga-se de passagem. Pois, embora excessos e irresponsabilidade dos moradores da mais notória ocupação hippie, a Hippydilly, foram frequentes, à sua maneira emanavam laivos de uma crítica ainda muito mais radical. A começar pelo edifício escolhido para a ocupação, uma propriedade particular – a LSC só ocupava prédios públicos. Os squatters de Hippydilly também ostentavam frases subversivas, como a do jacobino Graco Babeuf, “a propriedade é um roubo”, vulgarizada por J. Pierre Proudhon em seu livro clássico “O que é a propriedade?” de 1840. No fundo, os squatters da Hippydilly assumiam uma postura claramente contrária à ordem estabelecida; o que gerou de imediato uma cobertura tendenciosa e maledicente por parte da imprensa e, consequentemente, estigmatizada e negativa sobre um squat.

Diante disso, não demorou muito para que a justiça instaurasse uma ação de despejo em Hippydilly. Os ânimos se exaltaram e grupos de direita passaram a hostilizar o squat hippie. Enquanto o processo corria, uma tropa policial foi escalada para proteger os squatters de uma multidão raivosa de skinheads que se enfileirava do outro lado da rua pronta para atacar. Nos dias que antecederam o despejo, os habitantes do squat recrudesceram a sua militância, no sentido de resistir e permanecer no prédio. Planos de batalha foram traçados e uma "força de segurança" formada por Hell's Angels, mobilizada. Inevitavelmente, os Hell's Angels acabaram por assumir o comando do squat, desencadeando uma série de incidentes violentos, aos quais acabaram por minar rapidamente a comunidade de Hippydilly. A ascensão e queda vertiginosa do sonho hippie redundaram num desfecho tragicômico. A polícia finalmente foi acionada para invadir o prédio que, sem resistência, foi desocupado em poucos minutos.

Prédio ocupado em São Paulo
Prestes Maia - aquivo pessoal Jean

Com a derrocada de Hippydilly, o caminho estava aberto para a LSC, conquistando várias vitórias importantes na década seguinte. Todavia, os squats nunca mais deixaram de ser associados a um certo estilo de vida não-conformista e rebelde, notadamente, por sua relação posterior com o movimento punk. Com o passar dos anos 70, o movimento squatter inspirado na Hippydilly assumiria características bem distintas, proporcionando um refúgio à cena punk nascente. De fato, o punk mantinha relações estreitas com o movimento squatter - suas principais bandas tinham integrantes que moravam em squats. Por exemplo, a primeira banda de Joe Strummer, o vocalista do grupo The Clash, se chamava 101ers, referência óbvia ao squat onde morava, na 101 Walterton Road. Mais tarde, o próprio Clash se engajou decisivamente na cena squat. Também o vocalista dos Sex Pistols, Johnny Rotten, declarou certa vez o seguinte: “Eu e o Sid Vicious fomos squatters. Nós ocupávamos Hampstead, não a parte nobre, mas aquelas terríveis casas vitorianas que ficam atrás da estação. Pessoas realmente desesperadas moravam lá. Foi terrível. E eu gostei". Não há dúvida quanto a isso, o clássico inaugural do movimento punk, “God Save the Queen”, foi escrito num squat.

BARCELONA

Numa noite de sexta-feira, 7 de dezembro de 1984, o Barcelona Squat Collective - BSC, um grupo de jovens, com idade entre 16 e 24 anos, que reivindicavam moradia e espaços para shows de música, arrebentou a corrente do edifício Torrent de l'Olla e, munido de vassouras, sabão e colchões, ocuparam o estabelecimento. O antigo ambulatório, abandonado há 18 anos, tornou-se o primeiro prédio tomado por okupas na Espanha. Desde que a ocupação foi inaugurada, sua filosofia se espalhou por todo o país. Foram anos de heroína e punk rock, greves juvenis generalizadas e grupos desorganizados em busca de espaços para moradia, festas e shows de bandas. De fato, a falta de moradia era um problema real e não havia por parte do Estado solução eficaz.

Vista panorâmica de prédio ocupado em São Paulo
Arquivo pessoal Jean

Logo na segunda-feira seguinte após a ocupação de Torrent de l'Olla, o coletivo planejou reunir os moradores do bairro para explicar os motivos do movimento e, para se integrar à comunidade, montar oficinas de artesanato. Mas, apenas duas horas depois do cadeado ser rompido, a Polícia Nacional chegou, atacando primeiro os mais jovens, que, para embelezar o espaço bastante deteriorado, estavam pintando a fachada cinza do prédio de lilás, e, logo em seguida, avançou contra a parte interna do imóvel. Numa tentativa desesperada de fazer frente à tropa, os okupas trancaram todas as portas; no entanto, uma viatura policial foi arremessada contra o portão principal e todos acabaram presos.

Após uma passagem temporária na prisão, a justiça libertou os okupas, sob a condição de que não voltassem a reincidir. Em vão. O coletivo reocupou novamente o prédio e, no segundo julgamento, o juiz condenou vários integrantes à prisão. Ato contínuo, manifestações foram organizadas em defesa dos prisioneiros, pelas quais a palavra de ordem inspirou rebeldes por toda Espanha: “Para cada despejo, mais uma okupa!” E assim foi.

Vista do interior do prédio
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

Quando os membros da CSB deixaram a prisão, o coletivo foi dissolvido em março de 1985, apenas seis meses após sua fundação. No entanto, após a curta existência do coletivo, novas ocupações tomaram Madri, Pamplona, ​​Andoain etc.; além do histórico Ateneu libertário de Sants, em Barcelona. A resistência deste e suas vitórias nos tribunais incentivaram outros grupos em municípios próximos - Gavà, Esplugues, Hospitalet ou Cornellà, entre outros – e também na própria Barcelona. Entre eles, o da Kasa de la Muntanya, próximo ao Parc Güell, ocupada no mesmo dia em que o muro de Berlim caiu.

BERLIM ORIENTAL

Ser jovem em Berlim Oriental de 1989 deve ter sido muito emocionante. Pois, não fora apenas o Muro que caíra naquele fatídico 9 de novembro, mas os muros invisíveis que aprisionavam qualquer um que não aceitava os ditames da ordem estabelecida. Todos os que habitavam o submundo - punks, dissidentes, travestis etc. – emergiram de seu claustro e ganharam estatuto de cidadania.

Quando o Muro desabou, a cultura de squat generalizou-se exponencialmente em Berlim Oriental, na mesma medida em que muitas pessoas ocupavam propriedades abandonadas.

Antes mesmo da queda do Muro, muitos alemães orientais já haviam fugido, mudando-se para Praga ou viajando pela Hungria até a Áustria ou a Alemanha Ocidental, e muitos outros deixaram o país quando as fronteiras foram abertas. Abandonavam seus empregos, seu automóvel da marca Trabant (similar ao Lada soviético) e, o mais importante de tudo, suas residências. No entanto, para aqueles que ficavam, especialmente os jovens, de uma hora para outra, abriu-se um leque de oportunidades como nunca antes: uma infinidade de imóveis totalmente desocupados e prontinhos para serem ocupados!

Facha de imóvel ocupado
Squat - Berlim

Assim, as grandes cidades da Alemanha Oriental, principalmente Berlim Oriental, tornaram-se o paraíso dos squatters. Até mesmo moradores de Berlim Ocidental, que já tinham sua própria cultura de squat, começaram a se mudar para o leste - a nova terra de oportunidades das ocupações. A cultura squatter floresceu em Berlim Oriental sob uma atmosfera de festa, e, a certa altura de 1990, contou com mais de 130 edifícios ocupados em vários distritos na cidade.

Em Mainzer Straße, havia 11 prédios ocupados. Contagiados por uma intensa alegria daqueles primeiros dias de ocupação, os squatters passaram a deixar a sua marca, estética e cultural. Isso era algo novo naqueles dias sombrios: a única rua colorida em todo o distrito. A rua com casas ocupadas tinha 200 metros de comprimento e era habitada por vários grupos diferentes. Numa casa, por exemplo, residiam travestis e, numa outra, militantes políticos que sempre estavam vestidos com roupas pretas e jaquetas com capuz. Todas as casas, no entanto, eram cobertas com bandeiras e faixas com escritos e símbolos de seus respectivos movimentos. Durantes as noites, os squatters sentavam-se em frente às suas casas e conversavam, comiam e bebiam!

Mas os squats ocupavam apenas um dos lados da rua. Do outro lado, moravam as ditas pessoas normais. O problema era que elas tinham que levantar cedo para trabalhar e, em meio à algazarra dos squats, não tinham coragem de pedir para que seus moradores fizessem silêncio. Se chamassem a polícia, esta retrucava: “Nós não somos estúpidos para ir lá”. Uma rua aonde a polícia não vai? Nenhum Estado poderia tolerar isso.

Vista de um barraco
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

Diante disso, não demorou muito para sobrevir a intervenção estatal. O início se deu com o despejo de uma casa ocupada em Lichtenberg. Evidentemente, não sem resistência e muitas manifestações contrárias. Um grupo radical de squatters da Mainzer Straße bloqueou a rua. A polícia tentou remover a barricada e houve conflito. Os confrontos se intensificaram por três ou quatro dias. O Estado revidou. O mesmo fizeram os neonazistas, que também atacaram violentamente os squats. Sem poder resistir mais, o heroico Mainzer Straße também sofreu ação de despejo.


NOVA YORK

A cidade de Nova York nas décadas de 1980 e 1990 teve uma história rica em movimentos de ocupação, como em nenhum outro lugar dos Estados Unidos. Inspirados por ideais progressistas e radicais, os squatters ocuparam prédios públicos e abandonados por toda cidade. Perante ameaça de despejo, aprenderam com seus colegas europeus a resistir, através de barricadas, escaramuças e baderna. Assim, enquanto as forças policiais usavam tanques e helicópteros, os squatters arremessavam coquetéis molotov e queimavam carros pelas ruas.

O East Village abrigou muitos squats, cerca de uma dúzia de prédios. Estas ocupações eram, geralmente, formadas por artistas e pessoas que estavam interessadas em moradias baratas e maneiras coletivas de viver. Nos edifícios ocupados, os moradores se preocupavam com o ambiente através de hortas comunitárias e também produziram uma estética própria - iluminação industrial, estantes e assentos de bricolagem, decorações ecléticas, que tinham por maior influência a cultura punk. Sintomaticamente, um número surpreendente de squatters eram arquitetos e planejadores, fato que deixou marca nos lugares em que ocupavam e restauravam.

Muito famoso foi o C-Squat. Praticamente, todos os moradores eram artistas e músicos. Quando os squatters foram para a avenida C, no final da década de 1980, eles encontraram tudo abandonado e destruído pelo fogo. Pouco depois, reconstruíram o prédio, chamando-o de C-Squat. Seus moradores ficaram mundialmente conhecidos como os squatters mais escarnecidos do Lower East Side. Depois que foi ocupado, em 1989, o C-Squat se tornou a meca do punk rock nova-iorquino: uma incubadora de influentes bandas anarco-punk e palco de shows punks verdadeiramente lendários.

Roupas no varal
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

As paredes do C-Squat eram, naturalmente, cobertas de pichações e uma rampa de skate foi construída nas dependências do prédio. No porão rolavam os célebres shows punks. Era para lá também que se hospedavam alguns forasteiros, jovens punks - geralmente fugitivos, em alguns casos, com problemas relacionados a drogas, e que cruzavam o país, pulando de trem em trem, procurando comida nas lixeiras e tecendo as teias que mantinham viva a cultura punk rock.

Curiosamente, ao contrário do que ocorreu em Londres, as ocupações de edifícios desocupados em Nova York, acabaram por agregar valor ao espaço urbano local, o que acabou por atrair investimentos e fomentar processos de gentrificação. Segundo o pesquisador o Alexander Vasudevan, autor de The Autonomous City, mediante acordos, os moradores tornavam-se donos legais dos apartamentos, como de fato sucedeu à grande maioria.

Em cidades como Berlim e Nova York, como observa Vasudevan, as ocupações tiveram um papel importante na história das lutas pelos direitos dos inquilinos; nesta última, em particular, em se tratando de ativistas latino-americanos e afro-americanos. Na Espanha, após a recessão em 2009, uma coalizão de ativistas por moradia, incluindo proprietários e inquilinos, em todo o país, reformaram e recuperam casas.

Barraco com inscrição "amor" na porta
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

Mas, devido à crescente criminalização do movimento squatter e do valor astronômico dos imóveis urbanos, as ocupações de imóveis abandonados passaram a encontrar obstáculos cada vez mais intransponíveis. O movimento squat que, em Londres, na década de 1970, chegou a ter 30.000 pessoas residindo em ocupações, sofreu um duro golpe a partir de 2012 quando ocupar propriedades residenciais (e não comerciais) foi considerado crime. O impacto dessa mudança foi enorme: milhares de pessoas descobriram de repente que estavam cometendo crime pelo simples fato de sentar-se no sofá da sala de sua residência. Mesmo com tantos reveses, as ocupações se tornaram o bastião da resistência ao assédio imoral do mercado imobiliário e das injustiças sociais.

SÃO PAULO

No Brasil, o movimento de ocupação não está ligado à contracultura, como explica Jean, vocalista da bandapunk Fecaloma, que estudou as ocupações de São Paulo, e concedeu esta entrevista ao blog Verso, Prosa & Rock’n’Roll.

Parede pixada
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

Verso, Prosa & Rock’n’Roll: Você passou alguns anos envolvido com o movimento sem-teto, o que você fez exatamente?

Jean Fecaloma: Eu estudei o “Prestes Maia”, no centro de São Paulo, ocupado pelo MSTC, durante o curso de pós-graduação, mestrado e doutorado, pela Universidade de São Paulo.

VPRR: Você escreveu uma tese?

JF: Sim, escrevi.

VPRR: Existe alguma relação entre os squats da gringa e as ocupações do Brasil?

JF: Especificamente, não. É preciso lembrar que o Brasil é um país subdesenvolvido, de economia dependente e de periferia. Aqui, a questão da moradia não é uma opção política, mas uma necessidade vital. Quer dizer, no Brasil, ninguém ocupa porque não há espaço para shows de suas bandas na cidade. Aqui, uma ocupação implica em melhorias substanciais na vida das pessoas, e isso em todos os níveis, desde a alimentação, o uniforme da escola das crianças, a saúde, transporte etc. Por isso, não ocupam por questões ideológicas, mas pelas necessidades da vida diária, práticas e reais, da sobrevivência mais elementar. O perfil também é muito diferente: são famílias inteiras, muitas vezes numerosas, que moravam nas ruas, nos cortiços, nas favelas, sem escolaridade, sem trabalho, se qualificação profissional, muitas vezes migrantes, ou seja, pessoas de todas as idades submetidas à miséria e à exclusão total, e que, sem alternativas, são empurradas para uma ocupação. Além disso, não há nenhum contato dos movimentos por moradia daqui com os squats de fora, sequer há conhecimento deles; a referência dos movimentos urbanos de ocupação no Brasil é o MST. Por outro lado, de um ponto de vista macroestrutural, a causa é a mesma: déficit habitacional, especulação imobiliária, proletarização, subemprego, desemprego, migrações, segregação urbana. Seja como for e aonde for, uma ocupação melhora a qualidade de vida das pessoas e revitaliza imóveis que antes estavam desabitados e em ruínas.

Porta de um barraco aberta
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

VPRR: Na Europa e nos EUA, as ocupações tiveram um início mais ou menos nos anos 70. Há um paralelo com esta data no Brasil?

JF: No Brasil, ocupações não são um fenômeno recente. Basta lembrar das favelas nos morros do Rio de Janeiro, que foram ocupações originadas pela reforma urbana de 1904. Aliás, muitos bairros hoje urbanizados em muitas cidades brasileiras começaram como favelas, em terrenos ocupados. Alguns prédios também eram ocupações. Eu, por exemplo, nos anos 90, quando era adolescente, fui visitar uma amiga que morava numa favela vertical em plena avenida Paulista! Eu não lembro exatamente onde era; mas lembro de que havia muitos travestis e de um buraco enorme no assoalho do elevador e, numa certa altura, dois homens, um negro e um boliviano, um alto e outro baixo, armados com porretes, abriram a porta do elevador e me interrogaram para onde eu ia, quem eu conhecia etc. Mas, no Brasil, não são apenas os pobres que ocupam. Historicamente, a grilagem é a origem dos latifúndios. Isto que está acontecendo na Amazônia, isto é, invasão de reservas ambientais e indígenas, terras públicas e até terras de pequenos camponeses, não é novidade. A diferença é como o Estado trata cada caso.

VPRR: E os movimentos organizados por moradia? Não é uma mudança recente?

JF: O que muda é que aquelas ocupações eram, no geral, espontâneas. Quanto aos grupos políticos, a moradia em si nunca foi uma pauta central das reivindicações políticas e sociais. Claro, havia associações de bairro, mas ficavam à mercê das políticas relativas aos conjuntos habitacionais populares oferecidos pelo Estado através do BNH. É só no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 que começa a surgir um movimento social organizado de ocupação com o Fórum dos Cortiços, no centro da cidade de São Paulo, que foi hegemônico e unitário até o final dos anos 1990, quando se fragmentou em inúmeros movimentos.

"Buraco", passagem entre dois blocos
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean

VPRR: Por quê?

JF: Vários fatores, desde a desconcentração industrial, crise econômica, orientação dos empréstimos para as classes médias, excluindo os mais pobres, enfim.

VPRR: Você encontrou punks na ocupação? E a ocupação dos artistas?

JF: Não, não encontrei. Acho que houve um festival punk uma única vez na garagem do Prestes Maia. Não lembro quem tocou. Certa vez, perguntei para uma coordenadora do movimento, que se tornou muito minha amiga, se ela conhecia algum punk; ela me disse que certa vez apareceram uns punks na ocupação e disseram “que iam fazer isso e aquilo, que iam ajudar, que iam fazer e acontecer”; mas, depois viraram as costas e nunca mais voltaram. Quanto à ocupação dos artistas, a FLM tentou alguma aproximação sem resultados; uma coordenadora do MSTC me confidenciou que “aquele pessoal não quer saber de nada”. Ao que parece, eles não têm um projeto coletivo de moradia que envolve toda a sociedade, os mais carentes, apenas uma preocupação individualista e limitada à sua profissão.

Capa de CD

VPRR: Como as autoridades lidam com os movimentos? Há perseguição?

JF: Os movimentos sociais fazem um levantamento muito acurado sobre os imóveis desocupados que serão “alvos” de ocupações, normalmente, prédios públicos ou com dívidas tributárias estratosféricas, como IPTU. A justificativa para uma ocupação é a função social da propriedade prevista na Constituição de 88. O estado ou qualquer proprietário que se sentir lesado pode recorrer à justiça e pleitear uma reintegração de posse, o que normalmente acontece. Os movimentos sempre agem na legalidade e uma ocupação tem um sentido de denúncia sobre a falta de moradia. Dentro de uma ocupação é expressamente proibido o uso de bebidas alcoólicas ou drogas, sob pena de expulsão. A participação nas assembleias, atos ou ocupações é obrigatória, para não esvaziar o movimento e evitar o não comprometimento com causa da moradia. Quando eu estudei, uma taxa de 50 reais (hoje, atualizados, talvez uns cem reais) era cobrada por apartamento, valor definido em assembleia pelos moradores. O dinheiro era usado para pagar o porteiro, câmeras de segurança, manutenção, material de limpeza etc., ou seja, como qualquer condomínio, só que compatível com a renda dos moradores. Os moradores também criaram uma estética própria, porque eles constroem “barracos” dentro dos prédios e decoram com pinturas, por isso um andar pode ser muito colorido. Alguns movimentos podem contar com o apoio de algum partido; no caso do MSTC, o PT exercia alguma influência. Evidentemente, há muitos oportunistas que fundam um movimento de uma hora para outra com propósitos de vantagem pessoal. Depois que uma ocupação pegou fogo e desabou no Largo do Paissandu, veio à tona que os coordenadores daquele movimento cobravam aluguel de até 400 reais e tinham envolvimento com o crime organizado. É preciso investigar. Mas não dá para generalizar, a maioria dos movimentos são sérios. E o último ponto que eu gostaria de destacar é a presença majoritária das mulheres na coordenação do movimento, quase total, o que faz da luta por moradia do movimento sem-teto uma experiência inédita, entre outras coisas, no que se refere à questão de gênero.




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