O processo de urbanização durante e depois da Revolução Industrial gerou o fenômeno da crise habitacional quando enormes contingentes de camponeses expropriados de suas terras migraram para as cidades e tornaram-se trabalhadores assalariados e explorados que abarrotavam os cortiços insalubres dos bairros operários. Mais de duzentos anos depois, este cenário pouco se alterou. A crise da habitação acrescida à especulação imobiliária obstou ainda mais o acesso à moradia e grandes grupos sociais são cada vez mais forçados a ocupar imóveis desabitados em muitas cidades do mundo.
Okupa, em Barcelona. |
A ocupação de imóveis, denominada squat ou okupa, como é conhecida na Espanha, começou a surgir em fins dos anos sessenta na Inglaterra, Alemanha e Holanda, não apenas como uma expressão de fatores da falta de moradia, mas também como prática de movimentos de contracultura, tais como o hippie e, mais tarde, o punk. Na década de 1960, uma parte significativa da intelectualidade e da classe média londrinas passou a se mudar para áreas centrais da cidade habitada pela classe operária, elevando o preço dos imóveis e, consequentemente, ocasionando a expulsão dos antigos moradores. Este processo de segregação e aburguesamento de bairros centrais e pauperizados ficou conhecido como gentrificação.
Squat, em Berlim |
Os squats ou okupas, no
entanto, tal como os conhecemos - a ocupação de propriedades vazias ou
abandonadas por pessoas de baixa renda ou motivadas por ideários políticos -
não foram muito significativos até o final dos anos 1960 e o início dos anos
70. A partir daí, de Amsterdã a Nairóbi, de Roma a Mumbai, de Praga a San
Tiago, a luta por moradias decentes e acessíveis se somou a reivindicações de
outra ordem, que iam além das pautas tradicionais da esquerda clássica,
congregando segmentos sociais novos e emergentes no cenário político, tais como
movimentos estudantis, direitos civis, Black Power, feminismo, LGBT etc., que,
inspirados no filósofo francês Henri Lefebvre, exigiam também seu "direito
à cidade".
LONDRES
A cidade de Londres se
tornou um repositório de parte do dinheiro mais sujo do mundo. Um exemplo disso,
a inescrupulosa especulação no mercado imobiliário, fomentada por processos de
gentrificação, que resultaram na segregação da população mais pobre e deixou um
rastro de imóveis abandonados. Nesse cenário, quem não podia comprar ou alugar
um imóvel era obrigado a deixar a cidade. O movimento moderno dos squatters em
Londres é iniciado em 18 de novembro de 1968, com a fundação da London Squatters
Campaign (LSC), que, inicialmente, compreendia cerca de quinze pessoas, a
maioria das quais progressistas e anarquistas. O objetivo imediato da LSC era
claro: a realocação de famílias pobres de cortiços ou albergues para imóveis
públicos que estavam vazios e ociosos. A longo prazo, objetivava liderar um
movimento de massas que inspiraria moradores de rua e de bairros pobres a
ocupar sistematicamente imóveis por toda a cidade.
A partir de 1969, outras
tendências começaram a surgir em paralelo ao LSC, assumindo a forma de uma
constelação de movimentos de contracultura que tinham no squat um meio de não
só contestar a instituição da propriedade privada mas também os valores
fundamentais da sociedade burguesa. Essa tendência encarnou-se principalmente no
movimento hippie.
Certamente, os invasores
hippies contribuíram em muito para o fortalecimento do movimento squatter, mas
também eclipsaram o trabalho dos primeiros ativistas envolvidos na luta por moradia
barata e de qualidade. Para cada grupo comprometido com a causa da habitação
popular, isto é, requalificar prédios públicos abandonados e região de entorno
ou protestar contra a gentrificação; existem dois grupos cujo único objetivo é
ocupar um imóvel desocupado, fazer uma rave, vender latas de cerveja quente e
desaparecer na segunda-feira de manhã, deixando para trás um amontoado de lixo.
Este caráter um tanto leviano dos movimentos de contracultura estimulou a
principal acusação de seu concorrente, a LSC: a falta de seriedade com a causa,
a qual contaminava negativamente a opinião pública.
Ocupação em São Paulo - aquivo pessoal Jean |
Crítica não totalmente justificada,
diga-se de passagem. Pois, embora excessos e irresponsabilidade dos moradores
da mais notória ocupação hippie, a Hippydilly, foram frequentes, à sua maneira emanavam
laivos de uma crítica ainda muito mais radical. A começar pelo edifício
escolhido para a ocupação, uma propriedade particular – a LSC só ocupava
prédios públicos. Os squatters de Hippydilly também ostentavam frases
subversivas, como a do jacobino Graco Babeuf, “a propriedade é um roubo”,
vulgarizada por J. Pierre Proudhon em seu livro clássico “O que é a
propriedade?” de 1840. No fundo, os squatters da Hippydilly assumiam uma
postura claramente contrária à ordem estabelecida; o que gerou de imediato uma
cobertura tendenciosa e maledicente por parte da imprensa e, consequentemente, estigmatizada
e negativa sobre um squat.
Diante disso, não demorou muito
para que a justiça instaurasse uma ação de despejo em Hippydilly. Os ânimos se
exaltaram e grupos de direita passaram a hostilizar o squat hippie. Enquanto o
processo corria, uma tropa policial foi escalada para proteger os squatters de
uma multidão raivosa de skinheads que se enfileirava do outro lado da rua
pronta para atacar. Nos dias que antecederam o despejo, os habitantes do squat
recrudesceram a sua militância, no sentido de resistir e permanecer no prédio.
Planos de batalha foram traçados e uma "força de segurança" formada
por Hell's Angels, mobilizada. Inevitavelmente, os Hell's Angels acabaram por
assumir o comando do squat, desencadeando uma série de incidentes violentos, aos
quais acabaram por minar rapidamente a comunidade de Hippydilly. A ascensão e
queda vertiginosa do sonho hippie redundaram num desfecho tragicômico. A
polícia finalmente foi acionada para invadir o prédio que, sem resistência, foi
desocupado em poucos minutos.
Prestes Maia - aquivo pessoal Jean |
Com a derrocada de
Hippydilly, o caminho estava aberto para a LSC, conquistando várias vitórias
importantes na década seguinte. Todavia, os squats nunca mais deixaram de ser
associados a um certo estilo de vida não-conformista e rebelde, notadamente, por
sua relação posterior com o movimento punk. Com o passar dos anos 70, o
movimento squatter inspirado na Hippydilly assumiria características bem
distintas, proporcionando um refúgio à cena punk nascente. De fato, o punk mantinha
relações estreitas com o movimento squatter - suas principais bandas tinham
integrantes que moravam em squats. Por exemplo, a primeira banda de Joe
Strummer, o vocalista do grupo The Clash, se chamava 101ers, referência óbvia
ao squat onde morava, na 101 Walterton Road. Mais tarde, o próprio Clash se
engajou decisivamente na cena squat. Também o vocalista dos Sex Pistols, Johnny
Rotten, declarou certa vez o seguinte: “Eu e o Sid Vicious fomos squatters. Nós
ocupávamos Hampstead, não a parte nobre, mas aquelas terríveis casas vitorianas
que ficam atrás da estação. Pessoas realmente desesperadas moravam lá. Foi
terrível. E eu gostei". Não há dúvida quanto a isso, o clássico inaugural
do movimento punk, “God Save the Queen”, foi escrito num squat.
BARCELONA
Numa noite de sexta-feira, 7
de dezembro de 1984, o Barcelona Squat Collective - BSC, um grupo de jovens,
com idade entre 16 e 24 anos, que reivindicavam moradia e espaços para shows de
música, arrebentou a corrente do edifício Torrent de l'Olla e, munido de
vassouras, sabão e colchões, ocuparam o estabelecimento. O antigo ambulatório,
abandonado há 18 anos, tornou-se o primeiro prédio tomado por okupas na
Espanha. Desde que a ocupação foi inaugurada, sua filosofia se espalhou por
todo o país. Foram anos de heroína e punk rock, greves juvenis generalizadas e
grupos desorganizados em busca de espaços para moradia, festas e shows de
bandas. De fato, a falta de moradia era um problema real e não havia por parte
do Estado solução eficaz.
Arquivo pessoal Jean |
Logo na segunda-feira
seguinte após a ocupação de Torrent de l'Olla, o coletivo planejou reunir os
moradores do bairro para explicar os motivos do movimento e, para se integrar à
comunidade, montar oficinas de artesanato. Mas, apenas duas horas depois do
cadeado ser rompido, a Polícia Nacional chegou, atacando primeiro os mais
jovens, que, para embelezar o espaço bastante deteriorado, estavam pintando a
fachada cinza do prédio de lilás, e, logo em seguida, avançou contra a parte
interna do imóvel. Numa tentativa desesperada de fazer frente à tropa, os
okupas trancaram todas as portas; no entanto, uma viatura policial foi
arremessada contra o portão principal e todos acabaram presos.
Após uma passagem temporária
na prisão, a justiça libertou os okupas, sob a condição de que não voltassem a
reincidir. Em vão. O coletivo reocupou novamente o prédio e, no segundo
julgamento, o juiz condenou vários integrantes à prisão. Ato contínuo,
manifestações foram organizadas em defesa dos prisioneiros, pelas quais a
palavra de ordem inspirou rebeldes por toda Espanha: “Para cada despejo, mais
uma okupa!” E assim foi.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
Quando os membros da CSB
deixaram a prisão, o coletivo foi dissolvido em março de 1985, apenas seis
meses após sua fundação. No entanto, após a curta existência do coletivo, novas
ocupações tomaram Madri, Pamplona, Andoain etc.; além do histórico Ateneu
libertário de Sants, em Barcelona. A resistência deste e suas vitórias nos
tribunais incentivaram outros grupos em municípios próximos - Gavà, Esplugues,
Hospitalet ou Cornellà, entre outros – e também na própria Barcelona. Entre
eles, o da Kasa de la Muntanya, próximo ao Parc Güell, ocupada no mesmo dia em
que o muro de Berlim caiu.
BERLIM ORIENTAL
Ser jovem em Berlim Oriental
de 1989 deve ter sido muito emocionante. Pois, não fora apenas o Muro que caíra
naquele fatídico 9 de novembro, mas os muros invisíveis que aprisionavam
qualquer um que não aceitava os ditames da ordem estabelecida. Todos os que
habitavam o submundo - punks, dissidentes, travestis etc. – emergiram de seu
claustro e ganharam estatuto de cidadania.
Quando o Muro desabou, a
cultura de squat generalizou-se exponencialmente em Berlim Oriental, na mesma
medida em que muitas pessoas ocupavam propriedades abandonadas.
Antes mesmo da queda do
Muro, muitos alemães orientais já haviam fugido, mudando-se para Praga ou
viajando pela Hungria até a Áustria ou a Alemanha Ocidental, e muitos outros deixaram
o país quando as fronteiras foram abertas. Abandonavam seus empregos, seu
automóvel da marca Trabant (similar ao Lada soviético) e, o mais importante de
tudo, suas residências. No entanto, para aqueles que ficavam, especialmente os
jovens, de uma hora para outra, abriu-se um leque de oportunidades como nunca
antes: uma infinidade de imóveis totalmente desocupados e prontinhos para serem
ocupados!
Squat - Berlim |
Assim, as grandes cidades da
Alemanha Oriental, principalmente Berlim Oriental, tornaram-se o paraíso dos
squatters. Até mesmo moradores de Berlim Ocidental, que já tinham sua própria
cultura de squat, começaram a se mudar para o leste - a nova terra de oportunidades
das ocupações. A cultura squatter floresceu em Berlim Oriental sob uma
atmosfera de festa, e, a certa altura de 1990, contou com mais de 130 edifícios
ocupados em vários distritos na cidade.
Em Mainzer Straße, havia 11
prédios ocupados. Contagiados por uma intensa alegria daqueles primeiros dias
de ocupação, os squatters passaram a deixar a sua marca, estética e cultural. Isso
era algo novo naqueles dias sombrios: a única rua colorida em todo o distrito.
A rua com casas ocupadas tinha 200 metros de comprimento e era habitada por vários
grupos diferentes. Numa casa, por exemplo, residiam travestis e, numa outra,
militantes políticos que sempre estavam vestidos com roupas pretas e jaquetas
com capuz. Todas as casas, no entanto, eram cobertas com bandeiras e faixas com
escritos e símbolos de seus respectivos movimentos. Durantes as noites, os
squatters sentavam-se em frente às suas casas e conversavam, comiam e bebiam!
Mas os squats ocupavam
apenas um dos lados da rua. Do outro lado, moravam as ditas pessoas normais. O
problema era que elas tinham que levantar cedo para trabalhar e, em meio à
algazarra dos squats, não tinham coragem de pedir para que seus moradores
fizessem silêncio. Se chamassem a polícia, esta retrucava: “Nós não somos
estúpidos para ir lá”. Uma rua aonde a polícia não vai? Nenhum Estado poderia
tolerar isso.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
Diante disso, não demorou muito para sobrevir a intervenção estatal. O início se deu com o despejo de uma casa ocupada em Lichtenberg. Evidentemente, não sem resistência e muitas manifestações contrárias. Um grupo radical de squatters da Mainzer Straße bloqueou a rua. A polícia tentou remover a barricada e houve conflito. Os confrontos se intensificaram por três ou quatro dias. O Estado revidou. O mesmo fizeram os neonazistas, que também atacaram violentamente os squats. Sem poder resistir mais, o heroico Mainzer Straße também sofreu ação de despejo.
NOVA YORK
A cidade de Nova York nas
décadas de 1980 e 1990 teve uma história rica em movimentos de ocupação, como
em nenhum outro lugar dos Estados Unidos. Inspirados por ideais progressistas e
radicais, os squatters ocuparam prédios públicos e abandonados por toda cidade.
Perante ameaça de despejo, aprenderam com seus colegas europeus a resistir,
através de barricadas, escaramuças e baderna. Assim, enquanto as forças policiais
usavam tanques e helicópteros, os squatters arremessavam coquetéis molotov e
queimavam carros pelas ruas.
O East Village abrigou
muitos squats, cerca de uma dúzia de prédios. Estas ocupações eram, geralmente,
formadas por artistas e pessoas que estavam interessadas em moradias baratas e
maneiras coletivas de viver. Nos edifícios ocupados, os moradores se
preocupavam com o ambiente através de hortas comunitárias e também produziram
uma estética própria - iluminação industrial, estantes e assentos de bricolagem,
decorações ecléticas, que tinham por maior influência a cultura punk. Sintomaticamente,
um número surpreendente de squatters eram arquitetos e planejadores, fato que
deixou marca nos lugares em que ocupavam e restauravam.
Muito famoso foi o C-Squat. Praticamente,
todos os moradores eram artistas e músicos. Quando os squatters foram para a
avenida C, no final da década de 1980, eles encontraram tudo abandonado e
destruído pelo fogo. Pouco depois, reconstruíram o prédio, chamando-o de
C-Squat. Seus moradores ficaram mundialmente conhecidos como os squatters mais
escarnecidos do Lower East Side. Depois que foi ocupado, em 1989, o C-Squat se
tornou a meca do punk rock nova-iorquino: uma incubadora de influentes bandas
anarco-punk e palco de shows punks verdadeiramente lendários.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
As paredes do C-Squat eram,
naturalmente, cobertas de pichações e uma rampa de skate foi construída nas
dependências do prédio. No porão rolavam os célebres shows punks. Era para lá
também que se hospedavam alguns forasteiros, jovens punks - geralmente
fugitivos, em alguns casos, com problemas relacionados a drogas, e que cruzavam
o país, pulando de trem em trem, procurando comida nas lixeiras e tecendo as
teias que mantinham viva a cultura punk rock.
Curiosamente, ao contrário
do que ocorreu em Londres, as ocupações de edifícios desocupados em Nova York,
acabaram por agregar valor ao espaço urbano local, o que acabou por atrair
investimentos e fomentar processos de gentrificação. Segundo o pesquisador o Alexander
Vasudevan, autor de The Autonomous City, mediante acordos, os moradores
tornavam-se donos legais dos apartamentos, como de fato sucedeu à grande
maioria.
Em cidades como Berlim e
Nova York, como observa Vasudevan, as ocupações tiveram um papel importante na
história das lutas pelos direitos dos inquilinos; nesta última, em particular,
em se tratando de ativistas latino-americanos e afro-americanos. Na Espanha, após
a recessão em 2009, uma coalizão de ativistas por moradia, incluindo
proprietários e inquilinos, em todo o país, reformaram e recuperam casas.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
Mas, devido à crescente
criminalização do movimento squatter e do valor astronômico dos imóveis
urbanos, as ocupações de imóveis abandonados passaram a encontrar obstáculos
cada vez mais intransponíveis. O movimento squat que, em Londres, na década de
1970, chegou a ter 30.000 pessoas residindo em ocupações, sofreu um duro golpe
a partir de 2012 quando ocupar propriedades residenciais (e não comerciais) foi
considerado crime. O impacto dessa mudança foi enorme: milhares de pessoas
descobriram de repente que estavam cometendo crime pelo simples fato de sentar-se
no sofá da sala de sua residência. Mesmo com tantos reveses, as ocupações se
tornaram o bastião da resistência ao assédio imoral do mercado imobiliário e
das injustiças sociais.
SÃO PAULO
No Brasil, o movimento de
ocupação não está ligado à contracultura, como explica Jean, vocalista da bandapunk Fecaloma, que estudou as ocupações de São Paulo, e concedeu esta
entrevista ao blog Verso, Prosa & Rock’n’Roll.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
Verso, Prosa & Rock’n’Roll:
Você passou alguns anos envolvido com o movimento sem-teto, o que você fez
exatamente?
Jean Fecaloma: Eu estudei o “Prestes
Maia”, no centro de São Paulo, ocupado pelo MSTC, durante o curso de
pós-graduação, mestrado e doutorado, pela Universidade de São Paulo.
VPRR: Você escreveu uma
tese?
JF: Sim, escrevi.
VPRR: Existe alguma relação
entre os squats da gringa e as ocupações do Brasil?
JF: Especificamente, não. É
preciso lembrar que o Brasil é um país subdesenvolvido, de economia dependente
e de periferia. Aqui, a questão da moradia não é uma opção política, mas uma
necessidade vital. Quer dizer, no Brasil, ninguém ocupa porque não há espaço
para shows de suas bandas na cidade. Aqui, uma ocupação implica em melhorias
substanciais na vida das pessoas, e isso em todos os níveis, desde a
alimentação, o uniforme da escola das crianças, a saúde, transporte etc. Por
isso, não ocupam por questões ideológicas, mas pelas necessidades da vida
diária, práticas e reais, da sobrevivência mais elementar. O perfil também é
muito diferente: são famílias inteiras, muitas vezes numerosas, que moravam nas
ruas, nos cortiços, nas favelas, sem escolaridade, sem trabalho, se
qualificação profissional, muitas vezes migrantes, ou seja, pessoas de todas as
idades submetidas à miséria e à exclusão total, e que, sem alternativas, são
empurradas para uma ocupação. Além disso, não há nenhum contato dos movimentos
por moradia daqui com os squats de fora, sequer há conhecimento deles; a
referência dos movimentos urbanos de ocupação no Brasil é o MST. Por outro
lado, de um ponto de vista macroestrutural, a causa é a mesma: déficit
habitacional, especulação imobiliária, proletarização, subemprego, desemprego,
migrações, segregação urbana. Seja como for e aonde for, uma ocupação melhora a
qualidade de vida das pessoas e revitaliza imóveis que antes estavam
desabitados e em ruínas.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
VPRR: Na Europa e nos EUA,
as ocupações tiveram um início mais ou menos nos anos 70. Há um paralelo com
esta data no Brasil?
JF: No Brasil, ocupações não
são um fenômeno recente. Basta lembrar das favelas nos morros do Rio de
Janeiro, que foram ocupações originadas pela reforma urbana de 1904. Aliás,
muitos bairros hoje urbanizados em muitas cidades brasileiras começaram como
favelas, em terrenos ocupados. Alguns prédios também eram ocupações. Eu, por
exemplo, nos anos 90, quando era adolescente, fui visitar uma amiga que morava
numa favela vertical em plena avenida Paulista! Eu não lembro exatamente onde
era; mas lembro de que havia muitos travestis e de um buraco enorme no assoalho
do elevador e, numa certa altura, dois homens, um negro e um boliviano, um alto
e outro baixo, armados com porretes, abriram a porta do elevador e me
interrogaram para onde eu ia, quem eu conhecia etc. Mas, no Brasil, não são
apenas os pobres que ocupam. Historicamente, a grilagem é a origem dos
latifúndios. Isto que está acontecendo na Amazônia, isto é, invasão de reservas
ambientais e indígenas, terras públicas e até terras de pequenos camponeses,
não é novidade. A diferença é como o Estado trata cada caso.
VPRR: E os movimentos
organizados por moradia? Não é uma mudança recente?
JF: O que muda é que aquelas
ocupações eram, no geral, espontâneas. Quanto aos grupos políticos, a moradia
em si nunca foi uma pauta central das reivindicações políticas e sociais.
Claro, havia associações de bairro, mas ficavam à mercê das políticas relativas aos
conjuntos habitacionais populares oferecidos pelo Estado através do BNH. É só
no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 que começa a surgir um movimento
social organizado de ocupação com o Fórum dos Cortiços, no centro da cidade de
São Paulo, que foi hegemônico e unitário até o final dos anos 1990, quando se
fragmentou em inúmeros movimentos.
Prestes Maia - arquivo pessoal Jean |
VPRR: Por quê?
JF: Vários fatores, desde a
desconcentração industrial, crise econômica, orientação dos empréstimos para as
classes médias, excluindo os mais pobres, enfim.
VPRR: Você encontrou punks
na ocupação? E a ocupação dos artistas?
JF: Não, não encontrei. Acho
que houve um festival punk uma única vez na garagem do Prestes Maia. Não lembro
quem tocou. Certa vez, perguntei para uma coordenadora do movimento, que se
tornou muito minha amiga, se ela conhecia algum punk; ela me disse que certa vez
apareceram uns punks na ocupação e disseram “que iam fazer isso e aquilo, que
iam ajudar, que iam fazer e acontecer”; mas, depois viraram as costas e nunca mais
voltaram. Quanto à ocupação dos artistas, a FLM tentou alguma aproximação sem
resultados; uma coordenadora do MSTC me confidenciou que “aquele pessoal não
quer saber de nada”. Ao que parece, eles não têm um projeto coletivo de moradia
que envolve toda a sociedade, os mais carentes, apenas uma preocupação
individualista e limitada à sua profissão.
VPRR: Como as autoridades
lidam com os movimentos? Há perseguição?
JF: Os movimentos sociais
fazem um levantamento muito acurado sobre os imóveis desocupados que serão
“alvos” de ocupações, normalmente, prédios públicos ou com dívidas tributárias
estratosféricas, como IPTU. A justificativa para uma ocupação é a função social
da propriedade prevista na Constituição de 88. O estado ou qualquer
proprietário que se sentir lesado pode recorrer à justiça e pleitear uma
reintegração de posse, o que normalmente acontece. Os movimentos sempre agem na
legalidade e uma ocupação tem um sentido de denúncia sobre a falta de moradia. Dentro
de uma ocupação é expressamente proibido o uso de bebidas alcoólicas ou drogas,
sob pena de expulsão. A participação nas assembleias, atos ou ocupações é
obrigatória, para não esvaziar o movimento e evitar o não comprometimento com
causa da moradia. Quando eu estudei, uma taxa de 50 reais (hoje, atualizados,
talvez uns cem reais) era cobrada por apartamento, valor definido em assembleia
pelos moradores. O dinheiro era usado para pagar o porteiro, câmeras de
segurança, manutenção, material de limpeza etc., ou seja, como qualquer
condomínio, só que compatível com a renda dos moradores. Os moradores também
criaram uma estética própria, porque eles constroem “barracos” dentro dos
prédios e decoram com pinturas, por isso um andar pode ser muito colorido. Alguns
movimentos podem contar com o apoio de algum partido; no caso do MSTC, o PT
exercia alguma influência. Evidentemente, há muitos oportunistas que fundam um
movimento de uma hora para outra com propósitos de vantagem pessoal. Depois que
uma ocupação pegou fogo e desabou no Largo do Paissandu, veio à tona que os
coordenadores daquele movimento cobravam aluguel de até 400 reais e tinham
envolvimento com o crime organizado. É preciso investigar. Mas não dá para
generalizar, a maioria dos movimentos são sérios. E o último ponto que eu
gostaria de destacar é a presença majoritária das mulheres na coordenação do
movimento, quase total, o que faz da luta por moradia do movimento sem-teto uma
experiência inédita, entre outras coisas, no que se refere à questão de gênero.
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