Por Jean Fecaloma
A orquestra toca os acordes finais da sinfonia (...). Julinho olha atentamente a partitura e, depois de executar a última nota, repousa o arco de seu violoncelo no estrado do palco. O descabelado maestro abaixa a batuta triunfante, vira-se para a plateia, curva-se em sinal de agradecimento e, ato contínuo, a orquestra é ovacionada pelo público. Os músicos se levantam e agradecem. Mas Julinho tem pressa e sai rapidamente. Está atrasado. Em um pequeno boteco perdido em algum lugar da periferia da cidade, Rafa e Felipe o aguardam preocupados. Olham o relógio e nada do amigo. Hora do rush, casa cheia e está quase na hora da Geração Suburbana subir no palco. Realmente, há motivos de sobra para o baixista e o baterista se preocuparem. Mas quando tudo parecia perdido, o som grave e limpo do cello é substituído pelo som nervoso da guitarra distorcida. Alívio geral. Julinho consegue chegar a tempo e o punk rock contagiante da Geração põe a galera para bater-cabeça freneticamente. Algo extraordinário aconteceu: a plateia até a pouco tão bem comportada e trajada a rigor metamorfoseia-se num bando de malucos vestidos com roupas rasgadas e cabelo moicano.
Um senhor
diletante agora arranca o terno como um superman tresloucado e, girando-o a sua
volta, entra ensandecido na multidão a golpes de chicote. A madame vira um copo
de cachaça e sai pogando alucinada pelo salão. Alguns diriam que tudo não passa
de loucura. Outros, por sinal mais lúcidos, que a mágica da música é universal.
Mágica essa realizada com êxito pela banda Geração Suburbana em seu primeiro CD,
lançado em agosto do ano passado.
Formada em 2003, na zona norte de São Paulo, Vivemos presos vem coroar longos anos de
estrada dessa banda composta pelo trio de punkrockers Julinho, Rafa e Felipe. Isso
porque o CD é muito bem feito, contando com ilustrações, fotos da banda (por
Jéssica Oliveira), encarte com letras, músicas bacanas e todo feito em papelão
com um miolo de acrílico transparente para segurar o disco. Mas antes de
comentar o álbum propriamente dito, gostaria de relatar a minha sensação ao
ouvir o disco pela primeira vez. A minha sensação foi de ter sido
teletransportado para os anos mais férteis, criativos e originais do rock
nacional: os anos 80. Sim, a Geração Suburbana parece ter saído diretamente de
um túnel do tempo musical. E isso é incrível e necessário! Necessário porque,
diante da atual conjuntura nacional e mundial, de crescente onda neonazista e
potências em pé de guerra, os anos 80 com seu “rock cabeça” oferecem respostas
adequadas para momentos de crise. E, incrível, porque a Geração Suburbana tem
essas respostas. A começar pela ilustração da capa (de Leandro Santos), que não
poderia ser mais oportuna para os dias atuais: um capitalista, um religioso e
um general pondo as mãos em um homem do povo acorrentado pelo pescoço. Sob essa
atmosfera sombria, as 14 músicas e mais um bônus track surpresa que compõem o
álbum são fantásticas. E o que dizer então das letras? As letras são uma
pedrada no conformismo e na alienação deste início de século XXI. Então vamos
aos meus destaques! A música que abre o CD e nomeia o disco, “Vivemos preso”, é
um rockabilly bem empolgante e sua letra já dá o tom do CD: “Eu não quero ser manipulado por ninguém/Sou
livre e me governo muito bem. (...) Cortaram suas asas, você não pode voar/Mas
ninguém cegou teus olhos/Comece a enxergar”.
Na faixa “3º. Mundo”, um riff de
cello introduz um punk rock que retrata bem a realidade brasileira: “Mendigos
famintos/Pedindo esmolas/Famílias sem teto/Crianças sem escola. (...) Essa é a
vida no terceiro mundo/Políticos se banham com dinheiro imundo”. Na música
intitulada “Cores”, o refrão é bem legal e convidativo para cantar junto. A
canção “Brincando de ser soldado”, lembra um pós-punk meio New Model Army com
um vocal de Renato Russo. “Maldito ser humano” é uma música ecológica e alerta
para os danos causados pelo ser humano ao meio ambiente, com um pingo de
ironia, já que só o ser humano pode consertar aquilo que ele próprio destrói:
“Mas que ser repugnante/Esse tal de ser humano/Diz ser inteligente/Mas não
passa de um insano. (...) Só depende de nós mesmo/Para achar a solução/Para
salvar a natureza contra a devastação”. A oitava faixa, “Apatia”, é bem ao
gosto do punk e ainda vem com uma advertência: “Só com palavras não se vence a
guerra”. “Homens de farda” é ótima e lembra que “Se você não obedecer vai para
a prisão/Mas a gente resolve isso com propina em suas mãos”. Na faixa
“Capitalismo”, uma mensagem que os capitalistas teimam em não escutar: “Uma
vida não se compra, não se vende, não se ilude”. A música “Bomba” termina com
um surpreendente baião: “Dona Maria que trabalha o dia inteiro/É cinco hora já
é hora de acordar/Dona Maria é do povo brasileiro/Povo humilde que não cansa de
sonhar/De acreditar que tudo um dia pode mudar”. E para terminar, “Rotina”,
canção levada com violão e cello, é uma dessas músicas que eu gostaria de
cantar junto. Mas não desligue o aparelho de som. Há ainda uma surpresa no
final, uma pérola escondida, que diz muito da magia da música anteriormente
aludida. Julinho interpreta no cello a “Suite No. 1 em Sol Maior”, do grande
compositor Johann Sebastian Bach. (Disse para mim que havia uma certa
inspiração no Fecaloma, já que minha mãe encerra os nossos discos com músicas
de Bach). Como se costuma dizer, gosto não se discute, por isso convido a todos
a ouvir o CD Vivemos presos da
Geração Suburbana e escolher suas preferidas. Para finalizar, transcreverei a
letra da música que eu mais gostei:
Nacionalismo
Queime
toda bandeira
Destrua
toda fronteira
Não
seja mais um escravo
Não
obedeça ao estado
Não
morra por um país
Que
nunca fez nada por você
Não
faça o que não queres
Para
depois se arrepender
Destrua
o preconceito
Somos
todos iguais
Não
é a cor ou o sexo
Que
nos torna menos ou mais
Faça
a coisa certa
Não
seja mais uma ameba
É
o seu nacionalismo
Que
faz a guerra
Nacionalismo
nada nos traz
Nós
somos todos iguais
Só
traz a guerra, xenofobia
O
preconceito e a
Desigualdade
Acaba
com a ideia em que
Algum
dia
Possamos
viver em igualdade
Lutemos
pela anarquia
Lutemos
por solidariedade
E
a luta contra o
Nacionalismo
É
a luta pela liberdade
Links relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário