quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

100 mil visitas - Gratidão!!!

 Neste mês de dezembro atingimos a marca de 100.000 visitas!!!


Os editores do blog Verso, Prosa & Rock’n’Roll agradecem a tod@s @s noss@s leitorxs pela inestimável colaboração.

Feliz Natal e um Ótimo Ano Novo!

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Benvenuto Cellini, o gênio aventureiro

Benvenuto Cellini nasceu em Florença no ano de 1500, filho de Giovanni Cellini, fabricante de instrumentos musicais, de quem herdou a habilidade manual, e Maria Lisabetta Granacci. O patriarca Giovanni queria seu filho músico e, por isso, os dedinhos ágeis do menino sobre as notas da flauta arrancavam lágrimas de alegria dos olhos paternos. A depender da vontade do pai, o futuro de Cellini já estava traçado trabalhando ao seu lado na oficina.

Retrato de Benvenuto Cellini

Realmente, Cellini era muito talentoso e, quando adulto, chegou a ser músico do Papa. Mas, desde a infância, Cellini gostava mesmo era do barulho dos martelos nas bigornas, do resfolegar dos foles, das faíscas que os rebolos tiravam das gemas brutas, do flamejar das brasas produzidas pela forja dos artesões nas ourivesarias.

Assim, para escapar das admoestações de seu pai, o rapaz costumava fugir para cidades vizinhas e passar meses fora de casa trabalhando como aprendiz de ourives. Aos 19 anos, partiu a pé para Roma, onde se dizia que o Papa dava dinheiro aos artistas como as fontes da cidade brotavam água.

Em Roma ganhou muito dinheiro e dentro de pouco tempo montou sua própria oficina. Mas um tiro certeiro de pistola daria início a uma sequência de aventuras que marcaram a conturbada vida de Cellini.

Em 1527, Roma estava sitiada. O Imperador Carlos V, da Áustria, ameaçava a cidade. Suas tropas eram comandadas pelo Duque de Bourbon, o Condestável da França.

Cellini montava guarda como sentinela voluntário quando viu os inimigos se aproximarem com uma escada de mão para escalar as muralhas da cidade e invadi-la. Cellini então apontou o arcabuz para o líder do grupo e bummm, atirou! A historiografia narra que naquele dia o Condestável foi morto por um sentinela anônimo. Teria sido Benvenuto Cellini? Se nos fiarmos nas palavras do próprio, sim!

Terminada a guerra, Cellini se tornou gravador da Casa da Moeda do Vaticano. Quando seu irmão foi morto numa briga de rua, o arrojado ourives não só jurou vingança como fez justiça com as próprias mãos.

Em 1537, fui aprisionado por ordem papal, conseguindo fugir pouco tempo depois sem muito sucesso, pois acabou preso novamente. Nesse meio tempo, Francisco I, da França, manifestou o desejo de nomear Cellini como ourives real. Um cardeal influente moveu os cordões junto ao Papa e Cellini foi liberto e transportado para a corte mais luxuosa da Europa. Foi nessa época que Cellini forjou o celebrado saleiro de ouro.

Em 1545, após algumas intrigas palacianas, envolvendo uma amante do rei, Cellini foi obrigado a regressar para Florença. Tornou-se então protegido do Duque Cosimo de Medici, notável patrono das artes. Cosimo sugeriu a Cellini que fizesse uma estátua do herói mitológico grego que matou a Medusa, o lendário Perseu. Empreendimento dos mais difíceis já realizado por um artista em toda a história, Cellini cuidou detalhadamente da tarefa monumental que o colocaria entre os maiores escultores de todos os tempos. A estátua de Perseu foi colocada no centro de Florença, onde ainda hoje se encontra.

Ao longo de sua vida, saíram de suas laboriosas mãos exóticos anéis, camafeus, broches, facas e punhais marchetados, jarros, cintos de prata para noivas, armas etc. Com sua arte, sustentou não apenas seus pais como também uma irmã viúva e seus seis filhos, jovens estudantes de arte e modelos e até uma família necessitada com a qual não tinha parentesco algum.

No século XVII, a descoberta de uma obra prima da literatura renascentista revelaria mais uma faceta do artista genial: Autobiografia, escrita por Cellini. O manuscrito ficou perdido por quase um século mas quando foi publicado contagiou a Europa como uma febre alucinante. Goethe traduziu a obra para o alemão, Berlioz compôs uma ópera chamada Benvenuto Cellini e Alexandre Dumas citou-a em Ascanius, além de se inspirar nas narrativas autobiográficas do ourives aventureiro para criar o personagem D’Artagnan, de Os Três Mosqueteiros.

Cellini, um gênio completo.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Hank Ballard - Pioneiros do Rock'n'Roll

Hank Ballard nasceu em Detroit, no dia 18 de novembro de 1927. Aos 7 anos, foi morar com alguns parentes muito religiosos no Alabama, onde começou a cantar música gospel na igreja. Na adolescência, porém, o blues passou a se tornar uma verdadeira obsessão musical na vida de Ballard. A música country também viria a influenciá-lo, especialmente o famoso artista Gene Autry.

Casal dançando rock and roll

Quando completou 15 anos, retornou novamente a Detroit. Enquanto trabalhava na linha de montagem de uma fábrica de automóvel, Ballard cantarolava algumas notas com seu timbre característico de tenor, impressionando muito um outro operário, Sonny Woods, que na época fazia back vocal num grupo de doo-wop chamado The Royals.

Em 1953, Ballard foi convidado para substituir o vocalista dos Royals. No entanto, as composições de Ballard acabaram por influenciar radicalmente a banda, que, por influência dele, adotou um som mais agressivo, áspero e animado, deixando para trás as canções melosas e sonhadoras que haviam sido até então a marca registrada do grupo.

A primeira gravação de Ballard com The Royals foi “Get It”, de 1953, que alcançou o Top Ten nas paradas de R&B. No ano seguinte, a banda mudou de nome, alterando-o para Midnighters, com o intuito de evitar que fosse confundida com um outro grupo - The Five Royales.

E neste mesmo ano, os Midnighters lançam seu hit de maior sucesso, “Work with Me Annie”, de autoria de Ballard, que atingiu o primeiro lugar nas paradas de R&B, apesar do boicote de muitas estações de rádio, por causa da letra bastante obcena da cançao.

De fato, as canções escritas por Ballard solidificariam a reputação da banda como a mais picante do R&B.

Ironicamente, seu maior sucesso veio com o lançamento de uma de suas músicas – “The Twist” - gravada por outro artista. A partir de 1963, Ballard saiu dos Midnighters e seguiu uma obscura carreira solo.

Embora Hank Ballard seja desconhecido do grande público, sua influência no desenvolvimento do rock’n’roll é inegável e por isso entrou merecidamente no Rock and Roll Hall of Fame em 1990; os Midnighters, em 2012.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Tragédia: Medeia de Eurípedes (Parte 3)

Há poucos dados biográficos seguros sobre Eurípedes; sua figura transmitida na Antiguidade constituía, sobretudo, a partir de sua representação em Aristófanes, sem se levar em conta o jogo próprio da comédia, como se veria quando da discussão de As Tesmoforiantes. A partir do Romantismo, foi construída uma tese de uma progressiva racionalização que foi de Ésquilo a Eurípedes, e que teve seu auge com Nietzsche: a decadência do gênero trágico. (Ler também: O nascimento da tragédia - Nietzsche). 

Medeia, Eurípedes

Entre 455 e 405, as peças de Eurípedes entraram em competição vinte e duas vezes. Saíram-se vencedoras por quatro vezes (Sófocles ganhou dezoito). Medeia é de 431 e pertence a uma tetralogia que ficou em terceiro lugar. Embora tenha recebido o primeiro prêmio poucas vezes ao longo de sua vida, não há dúvida de que Eurípedes foi um tragediógrafo de grande importância.

Eurípedes passou seus últimos anos na Macedônia na corte do Rei Arcesilau junto com vários artistas atenienses, o que indica não só o prestígio do próprio Eurípides mas também do gênero literário a que este esteve vinculado, cuja popularidade fora de Atenas só aumentou no século IV. Enquanto Ésquilo saía de moda e Sófocles mantinha seu prestígio, Eurípides passou a ser o mais festejado dentre eles. Daí a grande influência de Eurípedes sobre a Comédia Nova, no que diz respeito aos enredos e sabor retórico das falas das personagens.

Medeia: a história

A história da expedição dos Argonautas é no mínimo tão antiga quanto à tradição oral que deu origem à Ilíada e Odisseia. Na tradição oral dos mitos heroicos, as histórias contadas não tinham uma única forma fixa, mas multiformes, ou seja, possuíam uma estrutura que podia ser preenchida por diversas formas narrativas, sendo que a variação era ocasionada por diferentes fatores, sendo o uso pouco difundido da escrita, pelo menos até meados do século V, apenas um deles. As variações, porém, tinham um certo limite: não era possível uma versão da guerra de Tróia ou da viagem de retorno de Odisseu na qual Tróia não fosse conquistada pelos gregos ou o herói da Odisseia perecesse antes de chegar a Ítaca. Quanto ao público, os espectadores esperam que a história que vão ver e ouvir terá diferenças mais ou menos substanciais em relação as outras formas da mesma, via de regra, amplamente difundidas desde sua infância pelas mulheres da cidade - mãe, ama - e também por uma série de práticas sociais cotidianas que podiam representá-las pictoricamente não só nos frisos dos templos mas em uma profusão de objetos de cerâmica usados para os mais diversos fins.

Quanto à história de Jasão e Medeia, ela pode ser resumida da seguinte forma: Jasão, quando criança, foi educado pelo centauro Quíron, enquanto seu tio Pélias era rei de Iolco (nota-se que no período arcaico praticamente não existia mais monarquias na Grécia). Jasão chega à cidade para reclamar sua herança e é enviado até Cólquida (hoje Geórgia, no extremo leste do Mar Negro), terra governada por Aetes, para realizar uma missão impossível: roubar o Velo de Ouro. Jasão constrói um navio chamado Argo e reúne diversos dos melhores heróis de sua geração, entre eles, Peleu, Télamon, Orfeu e Héracles (este viria a abandonar a expedição antes de seu término). Para realizar suas façanhas, recebe ajuda dos deuses e da filha de Aetes, Medeia, que se apaixona por ele. Para convencer a moça, Jasão suplica, persuade e a seduz para obter ajuda, prometendo levá-la embora com ele e depois se casarem. Sem ajuda de Medeia, Jasão não teria conseguido realizar as provas de Aetes: subjugar o touro que cospe fogo, plantar sementes de dragão e derrotar os combatentes nascidos da terra. Medeia ajuda Jasão a conseguir o Velo de Ouro, guardado por uma serpente. Também mata o próprio irmão Apsirto. Em Hesíodo, Medeia é imortal e divina; mas mortal, em Eurípedes.

Ao chegar em Iolco, é com a ajuda de Medeia que o rei Pélias é assassinado; rei esse que depusera do trono o pai de Jasão, Aeson. Na ocasião, Medeia havia falsamente prometido ao rei Pélias torná-lo jovem para que este deixasse um descendente masculino. Morto o rei, o casal muda-se para Corinto, onde ambos são estrangeiros. Jasão, porém, logo abandona Medeia para se casar com a filha do rei de Corinto.

Sobre a trágica morte dos filhos de Medeia e Jasão, conhecemos estas versões:

a) Os coríntios matam os catorze filhos do casal, pois não queriam ser governados por uma feiticeira estrangeira (Jasão havia se tornado rei); como purgação, a cada ano, catorze jovens passavam uma temporada no templo de Hera Akraia;

b) Medeia mata Creonte e se refugia em Atenas, mas deixa os filhos, muito pequenos, em Corinto no templo de Hera. Eles são mortos pelos coríntios que, por sua vez, acusam-na de matá-los;

c) Os filhos morrem através de uma tentativa de torná-los imortais.

Quanto a Teseu, é uma espécie de herói nacional ateniense pelo menos desde o século IV. Seu pai Egeu casa-se com Medeia. O filho volta, incógnito, posteriormente. Medeia o reconhece antes do pai, tem medo, e tenta se livrar dele por duas vezes. Antes da segunda tentativa, o pai o reconhece e bane Medeia.

Fontes:

EASTERLING, P. E. (org.) The Cambridge companion to Greek tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

GOLDHILL, S. Amor, sexo & tragédia. Zahar: Rio de Janeiro, 2007.

MASTRONARDE, D. J. Euripedes: Medeia. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

MEDALHA, D. Tragédia grega: o mito em cena. Ateliê Editorial: São Paulo, 2003.

MOSSMAN, J. Euripedes: Medeia. Oxford: Aris&Philipps, 2011.

ROISMAN, H. M. (org.) The encyclopedia of Greek tragedy. Chichester: Wiley-Blackwell, 2014.

ROMILLY, J. A tragédia grega. Edições 70: Coimbra, 1999.

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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Ricky Nelson - Pioneiros do Rock'nRoll

Sensação adolescente nos EUA durante os anos 1950 e 1960, Ricky Nelson foi músico, cantor, compositor e ator. Pioneiro do country rock, influenciou artistas como Buffalo Springfield, Linda Ronstadt e The Eagles.

Ricky Nelson

Nasceu Eric Hilliard Nelson, de uma família de músicos, em Teaneck, New Jersey, no dia 8 de maio de 1940. Aos 8 anos de idade, iniciou sua carreira artística estreando o seriado humorístico de rádio e televisão “The Adventures of Ozzie and Harriet”. No episódio “Ricky the Drummer”, realizou uma performance como cantor ao dublar a música I'm Walkin, do astro do rock Fats Domino.

Na adolescência, tocou clarinete, bateria e também aprendeu os primeiros acordes de guitarra, tendo por influencia Carl Perkins e demais artistas de rockabilly.

Para tentar impressionar uma namorada, Ricky decidiu produzir um disco e, com a ajuda do pai, assinou contrato com uma gravadora. Em março de 1957, grava I'm Walkin, A Teenager's Romance e You're My One and Only Love.

Em 1957, lança seu primeiro single Be-Bop Baby e, depois, seu primeiro álbum “Ricky”, que alcançaria o primeiro lugar nas paradas de sucesso.

Entre 1958 e 1959, Ricky superou Elvis Presley, emplacando doze sucessos – um a mais que o rei do rock!

Em 1959, sua fama o levaria a estrear um papel no filme de faroeste “Rio Bravo”, ao lado de John Wayne e Dean Martin.

Em 1987, entrou no Rock and Roll Hall of Fame.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Tragédia: Grande Dyonisia ou Urbana (Parte 2)

O festival era propriamente internacional, atraindo milhares de habitantes para a cidade durante uma semana, o que movimentava a economia da cidade. As despesas para um só dia das dionisíacas poderia ser estimado, atualmente, em vultosos milhões de dólares ou equivalente a 3% das receitas públicas anuais da cidade. Isso não mudou radicalmente no século IV, quando Atenas perdera seu império.

Quem financia é o khorêgos ("líder do coro"), através de um tipo de imposto (litourgeia) por meio da taxação sobre os mais ricos da cidade. Ele poderia oferecer sua casa ou alugar um ginásio para os ensaios do coro: a elite gastava muito para a sua própria honra.

Em agosto, o arconte epônimo (mandato de um ano) escolhia três khorêgoi para as tragédias, sendo o único critério sua riqueza (o 1 % da população); e também cinco khorêgoi para as comédias. Aos 23 anos, Péricles foi khorêgos da produção da tetralogia que inclui Persas de Ésquilo. Os três dramaturgos que competiriam durante seis meses eram atribuídos aos khorêgoi posto sorteio, assim como os auletas, o que indica seu prestígio e importância na performance.

Atores: no início apenas um (o próprio dramaturgo). Lembremos que o mesmo ator, por conta do uso de máscaras e figurinos, normalmente representava mais de um papel. Ésquilo introduziu o uso do segundo ator e Sófocles, do terceiro. Os protagonistas eram bem pagos.

Figurantes: os atores e o coro provavelmente não recebiam um script.

Coro: composto apenas por atenienses, geralmente homens jovens, que, durante o tempo dos ensaios, eram dispensados das atividades militares.

A cidade forneceu, em certas épocas, um "auxilio-teatro" (theorikôn) para auxiliar aqueles com menos recursos com as despesas relacionadas aos custos do ingresso. Alguns tinham assento livre por determinação de decreto. Para nós, do mundo contemporâneo, a cobrança de ingresso parece normal, mas, como se tratava de um evento religioso, o pagamento foi uma novidade no mundo grego.

Aspectos da performance:

Orkhêstra, "lugar da dança": espaço onde se representavam o coro e os atores. Duas entradas longas, laterais (paradoi - eisodoi) encontram-se nos lados esquerdo e direito. Atrás, uma construção que compõe um cenário (skênê) com uma grande porta que também podia ser usada para entrada e saída. No século V, é provável que a orquestra tenha sido quadrangular.

Aquilo que sabemos da tragédia grega vem, sobretudo, de dramas de tragediógrafos, dos quais temos mais ou menos 10% do que foi provavelmente composto. Houve muitas dezenas de outros em Atenas.

Semelhança entre tragédias/dramas satíricos e comédias estavam no uso de fantasias e máscaras, do coro, que dança, canta e é acompanhado por um auleta. Semelhanças são superficiais, na tragédia:

- cenário: geralmente um palácio (às vezes, templo, cabana, caverna);

- figurino: "rico";

- máscaras: mais naturais (diferença principal, gênero e idade);

- coro: doze membros, depois quinze (Sófocles);

- conteúdo: o passado heróico, a idade dos heróis, uma época em que homens e deuses estavam mais próximos e os homens eram mais poderosos que os do presente. Tempo passado e, geralmente, lugares distantes.

Pode se defender que a escala e o sucesso do investimento ateniense na tragédia teve um enorme impacto na diversidade genérica da cultura poética grega, colaborando para o declínio de muitas outras formas de gêneros.

Teatro, mito e democracia: segundo Vernant, o teatro olha para o passado mítico com olhos de cidadão. As instituições políticas não são exatamente as mesmas do público contemporâneo, mas a homólogas. O mundo do drama não é totalmente estranho. Os próprios espectadores podem fazer a conexão com o presente (alguns anacronismos; etiologias religiosas).

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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Bo Diddley - Pioneiros do Rock'n'Roll

Ellas McDaniel ou, como viria a ser conhecido mundialmente, como um dos fundadores do rock'n'roll, “Bo Diddley”, nasceu em 30 de dezembro de 1928, numa pequena fazenda perto da cidade de McComb, Mississippi. Filho único de Ethel Wilson e Eugene Bates, foi, no entanto, adotado pela prima de sua mãe, Gussie McDaniel, com a qual passaria a conviver ao lado de seus irmãos de coração, Willis, Lucille e Freddie.

Em meados da década de 30, a família se muda para Chicago, onde o menino começa a ter aulas de música na Igreja Batista Missionária Ebenezer. Durante 12 anos estudou violino, chegando mesmo a compor dois concertos para o instrumento. Em 1940, ganhou de Natal de sua irmã Lucille o seu primeiro violão acústico. Foi nessa época que recebeu de seus colegas de escola o apelido de “Bo Diddley”.

Pouco depois, o rapaz formaria a sua primeira banda, o trio The Hipsters, que ficaria conhecido, por causa da rua onde morava, com o nome de The Langley Avenue Jive Cats. Após a formatura da escola, Bo Diddley trabalhou em diversos empregos de baixa remuneração, exercendo a função de motorista de caminhão, de peão de obra e até de lutador de boxe.

Em 1950, convida o percussionista Jerome Green e o gaitista Billy Boy Arnold para fazerem parte da banda. Depois de muitos anos de apresentações em bares de esquina e clubes da periferia de Chicago, Bo Diddley finalmente tem a chance de gravar uma demo com duas de suas canções: “Uncle John” e “I'm A Man”. Após receber muitas recusas das gravadoras, nos anos de 1955 os irmãos Leonard e Phil Chess decidem dar uma oportunidade ao compositor novato, sugerindo ao músico, porém, que este alterasse o título da faixa “Uncle John” para o seu próprio apelido. Não deu outra, as canções lançadas no compacto “Bo Diddley”/“I'm A Man” foram direto para o topo das paradas de R&B.

Fascinado pelos ritmos que ouvia com a banda da igreja nos tempos da infância, Bo Diddley aprimorou suas técnicas musicais tentando reproduzir os sons da bateria nas cordas do seu violão. Criou assim um estilo inovador e hipnótico, com um quê latino, através do uso generoso de técnicas, como reverb, trémelo e distorção, que faziam sua guitarra murmurar, gritar, rugir!

Com influências musicais tão variadas como Louis Jordan, John Lee Hooker, Nat King Cole e Muddy Waters, Bo Diddley forjou para sempre um estilo inconfundível que marcaria a música rock. Bandas e personalidades do rock tão importantes como Elvis Presley, Rolling Stones, ZZ Top, The Doors, The Clash, Buddy Holly, Prince, The Everly Brothers e Run DMC reconheceram em Bo Diddley uma das figuras mais influentes do gênero. Não à toa, suas músicas foram sucessos de muitos outros artistas, tais como “Not Fade Away” (Rolling Stones), “Shame, Shame, Shame” (Shirley & Company), “Desire” (U2) e “Faith” (George Michael), entre outras. Bo Diddley foi merecidamente um dos primeiros homenageados no Hall da Fama do Rock'n'Roll.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Tragédia: Grande Dyonisia ou Urbana (parte 1)

Os três gêneros poéticos “naturais”, segundo os românticos, o épico, o lírico e o dramático, concernem ao período histórico das cidades-estado gregas (poleis, pl. de polis), nos períodos tardo-arcaico (século VI) e clássico, e são contextualizados, no imaginário grego, especificamente na consciência política ateniense, ao longo do século V, como elementos centrais da democracia em oposição à tirania, da civilização grega em geral como antítese do Império Persa, de Atenas como o avesso de Esparta. Os principais gêneros dramáticos gregos são a tragédia e comédia.

Tragédia e comédia

A tragédia foi uma invenção ateniense e está ligada à história política da cidade, em particular, o desenvolvimento de um regime democrático. A comédia provavelmente apareceu primeiro na Sicília e em Megara.

Para entender a criação da tragédia como novo gênero, cabe ressaltar sua relação com os dois outros tipos de performance espetáculos típicos do período arcaico e que se manifestaram em Atenas no século V:

Performances épicas: os heróis falam através do aedo, e menos da metade é discurso indireto quando o aedo mimetiza.

Poesia coral: canto, dança, música, indumentária. Mais que a épica, um espetáculo para ser visto.

Para a melhor compreensão do gênero trágico, recorreremos à definição de Aristóteles:

A tragédia é a representação de uma ação, nobre e completa, com uma certa extensão, em linguagem poetizada, cujos componentes poéticos se alternam nas partes da peça, com o concurso de atores e não por narrativa, que pela piedade e pelo terror opera a catarse desse gênero de emoções (ARISTÓTELES, Poética).

Portanto, “se a tragédia tem em comum com a epopeia O OBJETO – a ação nobre – e O MEIO – a linguagem poetizada – elas se distinguem quanto AO MODO. Na epopeia, o poeta compõe a representação narrando, de modo que ele próprio, na primeira ou terceira pessoa, introduz as personagens. No teatro, o poeta faz as personagens agirem diretamente, por isso, o que compõe se chama DRAMA (ação)” (MALHADAS, 2003, p. 25).

A tragédia surgiu no contexto de uma festa pública chamada Grandes Dionisíacas ou Dionísias Urbanas, festival em honra do deus Dionísio. Até 518, talvez só composta por desfile e sacrifícios. A data então marca a construção do theatron (estrutura de madeira temporária que acomodava os espetáculos), junto ao Santuário de Dioniso, num dos lados da Acrópole de Atenas, e, ao mesmo tempo, inaugura o início das competições de tragédia – dramas satíricos e coros líricos de homens e meninos.

“O festival, que se passava no final de fevereiro ou no começo de março, durava quatro dias. Cada dia começava logo no amanhecer. A plateia era a maior reunião de cidadãos do calendário. Na época em que os antigos assentos de madeira do teatro foram substituídos pelos de pedra, entre 14 e 16 mil pessoas assistiam ao festival regularmente. A maioria desses espectadores era de cidadãos: homens adultos com direito a voto, chefes de família. Enquanto a assembleia, o mais importante órgão político da democracia, tinha aproximadamente apenas seis mil pessoas em audiência, e as cortes menos ainda, a escala da Grande Dionisíaca estava mais próxima da dos jogos Olímpicos. A única ocasião na qual tantos cidadãos se reuniam no mesmo lugar era em uma batalha importante. O festival era uma verdadeira ocasião de Estado” (GOLDHILL, 2007, p. 202).

Atualmente, os vestígios do teatro monumental de Licurgo de 330 podem ainda ser visitados.

Os festivais, como quase tudo na mentalidade do grego antigo, caracterizavam-se pela já aludida competição. Apesar disso, os dramas eram sempre parte de uma economia/cultura da dádiva, sobretudo um dom, para Dioniso, oferecido por toda a cidade ou por um indivíduo rico durante as festividades.

As Dionisíacas marcavam o início das navegações no Mediterrâneo oriental depois de cinco meses de pausa e se desenrolavam, na verdade, durante sete dias do mês de elaphebolion, nono do calendário Ático ou Ateniense (vigente nos séculos V e IV a.C) e correspondente a mais ou menos o mês de março:

Dia 8 elaphebolion (~março): proagôn (ante-competição). Os poetas montavam um palco no Odeão (Ôideion), junto com seu coro (tem a indumentária) e falavam sobre a peça.

Dia 9 elaphebolion: eisagôgê (introdução): ícone de madeira do deus levado do sul até a gruta no norte, chamada academia, onde se cantavam hinos e se faziam sacrifícios. Retorno, com tochas, ao teatro (com consumo de vinho?).

Dia 10 elaphebolion: feriado Pompê (Desfile): principal procissão. Traz sacrifícios e entretenimento coral ao deus. Estilo carnavalesco, espetáculo para ser visto de dia. Multidão composta não apenas pelos coros (ao todo, vinte e oito), que iriam se apresentar. Falos gigantes (vários metros) eram carregados por coros (phallophoroi). Outros coros, com indumentária exótica, amiúde travestidos, carregavam falos menores (ithyphalloi) e apresentavam cantos com letras e movimentos obscenos. Outros se vestiam como pessoas exóticas, sátiros ou animais estranhos. “O desfile tematizava a loucura criativa inspirada pela presença de Dioniso e tinha como intenção provocar uma atmosfera de hilaridade anárquica. Vinho fluía livremente para espectadores e participantes” (CSAPO & WILSON, s. v. “Dramatic festivals”, 2014). Em estações ao longo do percurso, os coros paravam para apresentar hinos (provavelmente a origem do termo coral stasimon). O desfile também levava 200 a 400 bois, atrás de um touro digno do deus, destinado ao sacrifício no santuário de Dioniso em certa época. A maior parte dos bois vinha das cidades que eram colônias ou aliadas, das quais se exigia que levassem em falo e um boi para o desfile.

Neste mesmo dia, provavelmente, a competição entre dez coros de meninos (cada um com cinquenta integrantes; um por tribo) e, depois, de homens. Originalmente, cada canto relacionava-se ao gênero hínico cúltico e processional chamado de ditirambo. Ao longo do século V, quando não era mais um gênero marcadamente dionisíaco, tende a apresentar narrativas míticas variadas. Dançavam em formação circular com acompanhamento do aulo.

Dia 11 elaphebolion: antes da Guerra do Peloponeso, possivelmente, competição entre cinco comédias (cada uma de uma hora e meia a duas horas). O número de comédias foi suprimido na guerra, e é possível que cada comédia fosse apresentada uma por dia depois da tetralogia. A redução seria para se ganhar um dia de trabalho, e não a poupança da apresentação de duas comédias.

Dias 12-14 elaphebolion: com exceção da época da guerra, apresentação das tetralogias. No dia 12, cerimoniais cívicas diversas, o que mostra que era o dia mais importante: desfile dos homens que ganharam prohedria (assento especial no teatro); libações, seleção e juramento dos juízes; anúncio das honras públicas dadas pela assembleia no espaço de um ano; desfile em apresentação das armas dadas aos órgãos de guerra que alcançaram maioridade; apresentação do tributo trazido pelas cidades do império. No último dia, anúncio da tetralogia e do ator vencedor.

O processo de julgamento não é bem entendido: dez juízes, cada um colocando seu voto na urna. Talvez levasse em consideração o inclusivismo do público. Só cinco tábuas eram tiradas da urna. Caso não houvesse um vencedor inquestionável, mais duas e, depois, uma a uma. O resultado não é bom índice para popularidade dos dramaturgos. O foco era a performance do coro de cidadãos voluntários. O autor só participava da glória se ele mesmo tivesse coreografado o coro como didaskolos (mestre). Caso não o fizesse, poderia até ganhar popularidade, mas não reconhecimento oficial. Os poetas deviam receber um bom pagamento.

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quinta-feira, 15 de julho de 2021

Carl Perkins - Pioneiros do Rock'n'Roll

Carl Perkins (Carl Lee Perkins) nasceu no dia 9 de abril de 1932, em Tiptonville, Tennessee, e é considerado um dos principais e mais influentes artistas de rockabilly de todos os tempos, notabilizando-se por ser o autor do clássico “Blue Suede Shoes”.

Carl Perkins

Filho de um agricultor, aos 6 anos de idade, já trabalhava na roça. Oriundo de uma família pobre, para ajudar no sustento da casa, o menino abandonou a escola quando ainda cursava a oitava série. Depois das exaustivas horas na lida, à noite, Carl, seu pai e seu irmão mais velho, James Buck, o Jay, descansavam ao som de música country e gospel.

Para cantar suas canções prediletas, Carl aprendeu a tocar guitarra, com a qual ele imprimia nas músicas de country uma levada de blues. Aos 14 anos, começou a compor e passou a ensinar seu irmão Jay acordes de guitarra base para que este o acompanhasse em seus ensaios musicais. Formaram então os Perkins Brothers e, algum tempo depois, convidaram o irmão mais novo, Lloyd Clayton, para assumir o contrabaixo.

Como toda banda no início de carreira, os irmãos enviavam fitas demos (demonstração) de suas composições para diversas gravadoras, que, no entanto, nunca demonstraram interesse pelo grupo. Então Carl foi para Memphis, onde conseguiu um teste e, enfim, assinou contrato com a Sun Records, mesma gravadora de Elvis Presley e Jerry Lee Lewis.

Naqueles tempos, os Perkins Brothers abriam os shows do rei do rock Elvis Presley em algumas de suas turnês. Carl acabou fazendo amizade com Johnny Cash, que também pertencia ao casting da Sun e que lhe sugeriu compor uma música sobre a nova mania adolescente: sapatos azuis de camurça. De fato, numa apresentação da banda, Carl ouviu a discussão de um casal na pista de dança: “Cuidado com meus sapatos de camurça”, alertou o rapaz à namorada. Após o show, ao passar a noite em claro, Carl escreveria em um saco de papel amassado a letra que se eternizou como uma das canções mais emblemáticas da história do rock’n’roll. Em 19 de dezembro de 1955, lançava “Blue Suede Shoes”.

Imediatamente, “Blue Suede Shoes” alcançou o segundo lugar nas paradas da Billboard Hot 100, atrás apenas de “Heartbreak Hotel”, de Elvis Presley. Meses depois, em março de 1956, o próprio Elvis lançaria sua versão da canção. Em abril, “Blue Suede Shoes” havia vendido um milhão de cópias!

Em 1958, desiludido com a gravadora, por causa de direitos autorais, Carl assina com a Columbia Records. Em 1964, em turnê pela Inglaterra com Chuck Berry, recebe dos Beatles um convite para uma sessão de gravação. Em 1968, junta-se a seu grande amigo Johnny Cash e compõe “Daddy Sang Bass”, um grande sucesso. Em 1969, dá inicio a amizade com Bob Dylan, com quem escreve “Champaign, Illinois”.

Sua vida foi marcada por tragédias e alcoolismo. Ao mesmo tempo, conquistou a admiração de figuras do rock não menos importante que Elvis Presley, Johnny Cash, George Harrison, Paul McCartney, Bob Dylan, Eric Clapton, Paul Simon, John Fogerty, Tom Petty, Beatles, Rolling Stones etc.

Em 1987, Carl Perkins entrou no Rock’n’Roll Hall Of Fame.


quinta-feira, 1 de julho de 2021

O genial Nikola Tesla

Nikola Tesla nasceu em 1856, em Smiljan, uma aldeia da Croácia. Desde tenra idade, manifestou grande precocidade inventiva. Mas, na adolescência, sofreu com diversas doenças que fizeram com que seu pai, que desejava fazer dele padre, aceitasse a sugestão do filho de que a saúde dele próprio seria restabelecida por completo caso fosse enviado para estudar em um curso de engenharia em outra cidade.

Nikola Tesla

Aos completar 19 anos, seu pai então o matriculou em uma escola técnica em Graz, na Áustria. Certo dia, um dos professores de Tesla fez demonstrações com um motor de corrente contínua. O jovem aluno ficou fascinado. Porém, Tesla percebeu que as escovas soltavam muita faísca e sugeriu que seria possível construir um motor sem escovas, a fim de evitar o contato entre o rotor central e os polos fixos externos. Um motor assim, afirmava o estudante, não soltaria faíscas, seria mais fácil de manejar e funcionaria como uma corrente alternada.

Apesar de ser desestimulado pelo professor, que o assegurou que tal ideia não era possível de se realizar na prática, Tesla não desistiu de fabricar seu o motor ideal. Após ter cursado durante um ano a Universidade de Praga, o rapaz, por força das circunstâncias, decidiu interromper os estudos e obter um emprego na companhia telefônica de Budapeste: seus pais estavam sobrecarregados financeiramente para mantê-lo frequentando as aulas. Ainda assim, nunca abandonou o objetivo de construir o motor idealizado por ele na escola técnica e nas horas de folga trabalhava intensamente para solucionar os problemas relativos à exequibilidade do projeto.

Certo dia, quando passeava no parque da cidade, Tesla teve um insight: vislumbrou mentalmente o motor de seus sonhos em todos os detalhes. Pegou um galho de árvore e desenhou na areia o motor, alterando sucessivamente os arranques e as paradas, diante de transeuntes que olhavam surpreendidos. Havia conseguido descobrir um método para fazer circular uma onda de corrente alternada pela bobina ao redor do dispositivo, de tal maneira que o motor girasse pela ação rotativa constante do campo indutor. Tesla acrescentou uma segunda onda de corrente alternada assíncrona, e depois uma terceira. Era quase o mesmo que acrescentar mais cilindros a um motor, originando o sistema de transmissão polifásico.

O jovem inventor construiu o seu modelo ideal e não se surpreendeu quando viu que este de fato funcionava na prática. Contudo, como não encontrou na Europa quem investisse na sua invenção, resolveu ir para a América, com uma carta de recomendação para Thomas Edison, escrita por um engenheiro norte-americano com quem havia travado amizade. No ultimo instante, quando corria para o trem, que o levaria ao porto de embarque, descobriu que tinham roubado sua carteira com as passagens e todo o dinheiro da viagem. Apesar do infortúnio, conseguiu mesmo assim embarcar para os Estados Unidos.

No ano de 1874, chegava a Nova York, portando apenas quatro centavos no bolso e a carta de recomendação. Tesla obteve seu primeiro emprego na famosa usina elétrica de Edison, que, havia dois anos, iluminava algumas centenas de edifícios de Nova York. Como todas as usinas daquela época, esta central operava usando corrente contínua, que podia ser transmitida apenas a curtas distâncias.

No início, Edison encarregou o imigrante para executar tarefas sujas e pesadas. Mas a inteligência brilhante de Tesla arrancou a seguinte confissão do patrão: “este estrangeiro é um engenheiro de primeira plana”.

Tesla registrou em seu nome uma série de patentes, e cerca de um ano mais tarde montou seu laboratório particular, para a construção de motores de indução. Tesla sabia que seu motor de corrente alternada podia funcionar com transmissões a grandes distâncias. Em 1788 apresentou ao Instituto Americano de Engenheiros Electrotécnicos uma tese que gerou grande polêmica. Poucas pessoas aceitaram seus argumentos de que a corrente alternada era a chave para a expansão da energia elétrica. George Westinghouse foi exceção e resolveu adquirir o direito das patentes de Tesla, além de contratá-lo para dirigir a construção dos novos motores e geradores de corrente alternada.

A partir daí entrava em curso a guerra das correntes. Edison, que era uma espécie de supervilão da ciência, um empresário ultraganancioso que submetia tudo à sua sede de lucro, empregou dos meios mais inescrupulosos, como experiências cruéis com animais, para conseguir medidas legislativas que proibissem o uso da corrente alternada. Outras pessoas, provavelmente pagas por Edison, também lembraram que a corrente alternada estava sendo usada na nova cadeira elétrica e que sua transmissão em fios elétricos constituiria certamente uma ameaça à população. Tesla deu a esta última acusação uma resposta teatral, fazendo com que passassem através de seu corpo uma corrente de 1.000.000 volts, produzindo uma cena memorável, digna de ficção científica.

O primeiro grande triunfo de Tesla ocorreu em 1893, quando seus geradores iluminaram intensamente 90 mil lâmpadas instaladas na Exposição Mundial de Chicago. Enfim, os inimigos da corrente alternada jogaram a toalha três anos depois, quando os novos geradores de grande potência desenhados por Tesla e instalados nas Cataratas do Niágara começaram a iluminar a cidade de Buffalo, a cerca de 36 km de distância. Tesla venceu a guerra das correntes.

Dono de um gênio tão universal como o de Leonardo da Vinci, Tesla foi muito versátil em várias áreas do conhecimento científico. Fez experiências com iluminação elétrica em tubos de gás, que foram precursores das lâmpadas de neon e luz fluorescente. Descobriu o efeito térmico que produzem no corpo humano as ondas curtas e sugeriu sua aplicação em certos métodos terapêuticos. Em 1793, Tesla anunciou o princípio da sintonização do rádio e realizou várias experiências com telégrafos sem fio. Em 1698, Tesla assombrou Nova York com um barco misterioso que navegava sem tripulação a bordo. Tratava-se de seu famoso barco comandado por controle remoto. Uma de suas invenções mais notáveis foi a famosa bobina de Tesla.

A obseção de Tesla, no entanto, era a transmissão de energia elétrica pelo “éter”, isto é, sem fios condutores. Com o apoio financeiro de John Jacob Astor, construiu um laboratório misterioso nas montanhas do estado de Colorado. E se bem que não existem documentos sobre as experiências, anunciou que tinha conseguido acender lâmpadas e acionar pequenos motores há mais de 24 km de distância do laboratório.

Na velhice, Tesla se tornou um recluso excêntrico e adquiriu uma estranha paixão por pombos. Durante anos, era visto, sempre vestido de preto, com sua figura austera, transportando um saquinho de sementes, no parque Bryant ou nos degraus da Catedral de São Patrício, para alimentar seus estimados pássaros. Nada, porém, que desabonasse um dos maiores gênios da humanidade de todos os tempos: o formidável Nikola Tesla!

H.M.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Fecaloma punk rock: 20 anos de Rebelião Adolescente

Pode se dizer que o disco (CD) “Rebelião Adolescente” da banda Fecaloma é um marco na história do punk nacional, já que foi o primeiro, com uma tiragem de mil cópias, a trazer estampado o preço na capa – R$ 3,00 reais, o que equivalia, na época, a um dólar. Ademais, no encarte, a banda inusitadamente fazia uma prestação de contas, discriminando os custos de gravação, arte, prensagem etc., e que demonstrava o quanto era barato a produção de um CD independente – que era vendido pelo preço de 10 a 20 reais. (Bandas do mainstream chegavam a vender por 40 reais ou mais).

Rebelião adolescente, 20 anos

Embora incomum no Brasil, a prática surgiu nos anos 80 como uma reação à campanha antipirataria encampada pela indústria fonográfica, que, àquela altura, mirava suas munições contra a fita cassete, através da declaração de guerra: “A gravação caseira está acabando com a música – e é ilegal”. Muitas bandas e fanzines parodiaram o slogan. A banda anarcopunk holandesa The Ex acrescentou na advertência das gravadoras o sugestivo: “já não era sem tempo!”. A versão em cassete do EP In God We Trust, Inc, de 1981, do lendário Dead Kennedys, deixava virgem o lado B da fita, que vinha com a seguinte inscrição: “A gravação caseira está acabando com os lucros da indústria de discos!”, portanto, “deixamos um lado virgem para você fazer a sua parte”. Estampas de camiseta da banda punk californiana Rocket from the Crypt também alertavam, em tom sarcástico: “A gravação caseira está acabando com a indústria musical – e daí?!!!”. Porém, ainda mais emblemático foi o álbum Workers Playtime, de 1988, do compositor inglês de folk music e punk rock, Billy Bragg, que, além da mensagem “o capitalismo está acabando com a música”, fixava na capa o preço do disco em £ 4,99 e, logo abaixo, “não pague mais”.

Curiosamente, a iniciativa do Fecaloma não foi muito bem recebida na cena punk brasileira, sendo, inclusive, objeto de crítica. Um país pobre como o Brasil, vai entender...

Em homenagem aos 20 anos do lançamento do CD “Rebelião adolescente”, transcrevemos aqui integralmente o texto impresso na sua contracapa:

Rebelião adolescente

Não fiz 18 anos, não sou maior de idade, não fiz 21 anos, não alcancei a maioridade civil, deixem-me envelhecer dignamente. O que esperam de mim, que arrume um emprego, que passe 10 horas numa firma, saia para almoçar num restaurante self-service com um bando de chatos, entre numa faculdade, repita como um papagaio estúpido palavras do tipo mercado de trabalho, campo profissional, capacitação, (...), vista roupas sociais, beba cerveja com os amigos, fume um baseado, comprei um carro, um celular, tenha no bolso mil cartões de créditos, de banco, seguro de vida? Não mesmo! Não vou me corromper. Querem que eu faça parte da Ordem, que renuncie todas as minhas aspirações, esperanças, sonhos e utopias. Nunca! Não vou me render, desistir dos planos de rebelião da minha adolescência. Odeio arrogância do mundo adulto, a sua seriedade e má-fé. Odeio a frieza e a indiferença dos adultos, seu calculismo e desrespeito. Onde está aquele mundo de fantasia que me prometeram? Não existe. Só que eu acreditei. Por que me ocultar na verdade? Quando eu era criança nem a verdade podia destruir a minha felicidade, então porque não me disseram tudo? Não sou de guardar ressentimentos, mas não me obriguem a fazer parte do sistema. A minha adolescência é eterna, e a essência da minha revolta e crença na liberdade, a minha recusa ao mundo adulto. Conclamo a todos os adolescentes, à rebelião! À rebelião!

Não tenho medo das autoridades que me vigiam o tempo todo e me tratam como suspeito. Sou suspeito, sim, sou inimigo da sociedade, que é conivente a toda injustiça e crimes praticados pela ordem estabelecida. A hipocrisia das autoridades não me engana, sou seu eterno inimigo. Estou armado com ideias mais explosivas que mil dinamites juntas. Querem que eu faça 18 anos logo, para que assim eu possa responder penalmente, e justificarem com o meu “consentimento” uma eventual prisão. Mas não sou um criminoso comum, sou um revolucionário. Meu inimigo não são as pessoas humildes, estes são os das autoridades; meu inimigo é a ordem. Tenho espírito adolescente, a confusão não me é estranha, o tumulto é divertido, a esperança é um sonho.  À rebelião, adolescentes! À rebelião!

Sou inconformado com este mundo corrupto, se envelhecer é corromper-se, então eu não quero envelhecer. Não vou fazer 21 anos, conquistar minha Independência civil e oficializar a desonestidade. Jamais! Não quero sentir vergonha do passado, e quando eu estiver maduro arrepender-me de qualquer ato de covardia. Sou um revolucionário, não concordo com a indignidade e traição dos adultos que se entregam sem a menor resistência ao sistema. Entregam-se ao mercado de trabalho, ao campo profissional, à capacitação, à hipocrisia, sem sequer se importarem com o destino sombrio das milhares de pessoas excluídas da ordem. Não, sou um adolescente, detesto o trabalho como odeio a escola, amo a liberdade como adoro o recreio. Quero viver no futuro próximo, no mundo igualitário e livre, sem governo sem patrão. Conclamo à revolta, adolescentes! À rebelião!

Fecaloma

Começo do século XXI (2001).

terça-feira, 1 de junho de 2021

A essência da amizade em Cícero

Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim, sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema, música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia, a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso orador romano Cícero, não se vive sem amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir, como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente de fato por você uma amizade sincera:

Da Amizade

“Também apelo para a autoridade daquele que o oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato, transferidos.

“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.

“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes, os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.

“Não existe, com efeito, maior peste contra a amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.

“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo fato de ter sido praticado em favor do amigo.

“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer mal-estar.

“Portanto, não é a amizade que acompanha a utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.

“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram vazios de amizade.

“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles, encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais, apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das desgraças do amigo!

“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o amigo certo nas horas incertas’.

“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que o maior iguala-se ao menor.

“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)

“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.

“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de ‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e interesse ou de vantagem.

“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora, espontaneamente, da amizade.

“Como as coisas humanas são frágeis e caducas, devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”

(Cícero, Da Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)

*****

Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador, retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.

sábado, 15 de maio de 2021

Ike Turner - Pioneiros do Rock'n'Roll

Ike Turner nasceu em uma família pobre e religiosa, na cidade Clarksdale, Mississippi, em 5 de novembro de 1931. O racismo característico dos estados sulistas dos EUA propiciou um acontecimento trágico em sua vida: seu pai foi espancado até a morte por uma multidão de pessoas brancas.

Ike e Tina Turner
Ike e Tina Turner

Apesar dos infortúnios da condição de afrodescendente em uma sociedade conservadora e preconceituosa, ainda criança revelou um talento excepcional para música, que lhe rendeu um emprego de DJ numa rádio local. O garoto havia aprendido a tocar piano com o mestre do boogie-woogie, Pinetop Perkins, e foi um autodidata com a guitarra, tornando-se virtuose com o instrumento.

Na adolescência, montou a sua própria banda, The Rhythm Kings, que o acompanhou por toda a sua carreira. Em 1951, gravou “Rocket 88”, canção creditada a Jackie Brenston and His Delta Cats e considerada o primeiro registro da história no gênero rock’n’roll.

Ike também trabalhou como caça-talentos. Ajudou a “descobrir” astros da grandeza de BB King, Bobby “Blue” Bland, Roscoe Gordon e Little Milton.

Antes mesmo de completar 25 anos, Ike chegou a se casar oito vezes, ou talvez mais. Quando Anna Mae Bullock, sua terceira esposa e mais conhecida como Tina Turner, entrou para a banda e assumiu o piano, Ike foi tocar guitarra, desenvolvendo um estilo próprio e potente. Jimi Hendrix chegou a dizer que Ike era o melhor guitarrista de rhythm and blues de todos os tempos.

Ike cruzou o país, fazendo shows com sua banda. Ele se recusava a se apresentar para públicos segregados, como era costume naquele tempo, e exigia, mesmo no sul, que o público fosse misturado.

Mais tarde, Tina se divorciou de Ike alegando que sofria espancamento e que o marido, além de viciado em cocaína, era infiel no casamento. Mas, em que pese o insucesso no casamento, Ike e Tina Turner foram incluídos no Rock and Roll Hall of Fame, em 1991.

sábado, 1 de maio de 2021

O Primeiro de Maio de Saramago

A Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de Abril foi um movimento militar ocorrido em 1974, que surgiu no contexto das guerras coloniais que Portugal mantinha na África desde o início dos anos 60. O movimento, que transcorreu praticamente sem violência, derrubou o regime ditatorial do Estado Novo, instaurado por Antônio Salazar e continuado por Marcelo Caetano. A revolução teve como protagonistas jovens oficiais, os chamados "capitães de abril", que foram veteranos das campanhas na África. Durante os acontecimentos, os soldados recebiam, como sinal de apoio, cravos vermelhos da população. Segue trecho da obra de Saramago Levantado do chão: romance que descreve o Primeiro de Maio durante a revolução e o poema de José Afonso Grândola, Vila Morena

Primeiro de Maio

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Em Abril, falas mil. Nos campos há grandes ajuntamentos noturnos, os homens mal veem as caras uns dos outros, mas ouvem-se-lhes as vozes, abafadas se o local não é de suficiente segurança, ou mais soltas e claras em deserto, em todos os casos com a proteção de vigias, dispostos segundo a arte estratégica da prevenção, como quem defende um acampamento. É, deste lado, uma guerra pacífica. Se pelo escuro da noite a guarda se aproxima, e agora já não é a simples patrulha de dois homens dos tempos correntes, vêm às dúzias e meias dúzias, e até onde os carreteiros chegam transportam-se em jipe e jipão, se vindo assim se aproximam, depois em linha, como quem levanta caça, recuam as sentinelas a avisar, e então de duas uma, consoante, ou a guarda vai passar de largo e o silêncio é a melhor defesa, todos os homens, sentados ou de pé, seguram a respiração e os pensamentos, são direitas pedras, antas doutro tempo, ou a guarda vem mesmo ao direito da reunião e a ordem é dispersar por caminhos de mau piso, por enquanto ainda a guarda não tem cães, é o que vale. Na noite seguinte prosseguirá a conversa no ponto em que foi deixada, naquele mesmo lugar ou noutro, que esta paciência é infinita. E quando é possível encontram-se de dia, em grupos mais pequenos, ou vão pelas casas, conversa de ao pé do lume, enquanto as mulheres lavam a louça caladas e as crianças adormecem pelos cantos. E estando no eito um homem ao pé doutro homem, a palavra dita e ouvida é como o bater do maço da cabrilha na estaca, mais funda um pouco, e na hora de comer, com a panelinha ou a marmita pousadas no chão, entre as pernas, enquanto a colher sobe e desce e a aragem fria vai arrefecendo o corpo, tornam as palavras ao de cima, é um falar pausado que diz, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, e então os prudentes temem-se do futuro, Que será de nós se os patrões não quiserem dar trabalho, mas as mulheres que estão a lavar a loiça da ceia, enquanto o lume arde, têm vergonha de que tão prudente o seu homem seja e estão de acordo com o amigo que lhes bateu à porta para dizer, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, porque também elas assim trabalham, e mais ainda, doridas, menstruadas, pejadas da barriga à boca, ou, quando já não, com os seios a derramar o leite que devia ter sido mamado, é uma sorte, não se lhes secou, muito se engana pois quem julgue que basta levantar uma bandeira e dizer, Vamos. É preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os certos e convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá está a guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas, muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé, Que vida tem sido a nossa, em dois anos morreram-me dois filhos da doença da fome, e aquele que me resta, irei criá-lo para besta de carga, respondam-me, se nem eu quero continuar a ser a besta de carga que sou, são palavras que ferem os ouvidos delicados, mas aqui não os há, ainda que ninguém, deste ajuntamento, goste de olhar para o espelho e ver-se metido em varais de carroça ou com albarda e cangas, É assim desde que nascemos.

(...)

E então começa-se a falar no primeiro de Maio, é uma conversa que todos os anos se repete, mas agora é um alvoroço público, lembrar-se a gente de que ainda o ano passado andava a esconder-se por aí, para combinar, organizar, era preciso voltar constantemente ao princípio, ligar os de confiança, animar os indecisos, tranquilizar os temerosos, e mesmo agora ainda há quem não acredite que a festa do primeiro de Maio possa ser às claras como dizem os jornais, quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Não é esmola nenhuma, declaram Sigismundo Canastro e Manuel Espada, desdobra-se um jornal de Lisboa, Está aqui escrito que o primeiro de Maio será festejado livremente, e dia feriado em todo o país, E então a guarda, insistem os de boa memória, A guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem havia de dizer que uma coisa assim nos viria a acontecer um dia, a guarda quieta e calada enquanto tu gritas viva o primeiro de Maio.

E como por cima daquilo que nos permitem temos sempre de pôr o que imaginamos, ou então não somos homens merecedores de pão cozido, principiou a dizer-se que toda a gente devia estender colchas à janela e pôr flores, como se fosse dia de sair o Senhor dos Passos à praça, com um pouco mais se varriam as ruas e embarracavam as casas, tão fáceis são de subir as escadas do contentamento. Porém, assim são os dramas humanos, exagero foi chamar-lhes dramas, mas sem dúvida são perplexidades, agora que vou eu fazer se em minha casa não há colchas nem tenho jardins de cravos e rosas, quem terá sido o da ideia. Tem Maria Adelaide parte nesta ansiedade, mas sendo nova e esperançosa diz à mãe que não poderão ficar em pouco, que não havendo colcha fará uma toalha as vezes dela, branquíssimo pano suspenso do postigo da porta, bandeira de paz no latifúndio, homem civil que ali passasse haveria de descobrir-se com respeito, e sendo guarda ou militar em sentido e continência prestar homenagem diante da porta de Manuel Espada, trabalhador e bom homem. E não sejam as flores vosso cuidado, senhora mãe, que à fonte do Amieiro irei colher das silvestres que neste tempo de Maio cobrem os vales e as colinas, e estando as laranjeiras floridas ramos dela trarei e assim nosso postigo será janela enfeitada como varanda de alcácer, menos do que os outros não seremos, porque somos tanto.

(José Saramago. Trecho de “Levantado do chão: romance”)

 *****

Grândola, Vila Morena

Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

 

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, Vila Morena

 

Em cada esquina, um amigo

Em cada rosto, igualdade

Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

 

Terra da fraternidade

Grândola, Vila Morena

Em cada rosto, igualdade

O povo é quem mais ordena

 

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola, a tua vontade

 

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

(Canção de José Afonso)