Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim, sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema, música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia, a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso orador romano Cícero, não se vive sem amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir, como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente de fato por você uma amizade sincera:
“Também apelo para a autoridade daquele que o
oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma
uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma
que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham
de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato,
transferidos.
“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de
modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a
amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.
“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes,
os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.
“Não existe, com efeito, maior peste contra a
amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os
melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre
pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.
“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo
fato de ter sido praticado em favor do amigo.
“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da
virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na
amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto
flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer
mal-estar.
“Portanto, não é a amizade que acompanha a
utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.
“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais
indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a
queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram
vazios de amizade.
“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é
encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles,
encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais,
apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das
desgraças do amigo!
“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o
amigo certo nas horas incertas’.
“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que
o maior iguala-se ao menor.
“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre
esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)
“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira
disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.
“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de
‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e
interesse ou de vantagem.
“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora,
espontaneamente, da amizade.
“Como as coisas humanas são frágeis e caducas,
devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o
afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”
(Cícero, Da
Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)
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Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador,
retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família
era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio
e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi
questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus
discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio
Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi
governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de
Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco
Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem
menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos
deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da
Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.
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