segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Tragédia: Grande Dyonisia ou Urbana (parte 1)

Os três gêneros poéticos “naturais”, segundo os românticos, o épico, o lírico e o dramático, concernem ao período histórico das cidades-estado gregas (poleis, pl. de polis), nos períodos tardo-arcaico (século VI) e clássico, e são contextualizados, no imaginário grego, especificamente na consciência política ateniense, ao longo do século V, como elementos centrais da democracia em oposição à tirania, da civilização grega em geral como antítese do Império Persa, de Atenas como o avesso de Esparta. Os principais gêneros dramáticos gregos são a tragédia e comédia.

Tragédia e comédia

A tragédia foi uma invenção ateniense e está ligada à história política da cidade, em particular, o desenvolvimento de um regime democrático. A comédia provavelmente apareceu primeiro na Sicília e em Megara.

Para entender a criação da tragédia como novo gênero, cabe ressaltar sua relação com os dois outros tipos de performance espetáculos típicos do período arcaico e que se manifestaram em Atenas no século V:

Performances épicas: os heróis falam através do aedo, e menos da metade é discurso indireto quando o aedo mimetiza.

Poesia coral: canto, dança, música, indumentária. Mais que a épica, um espetáculo para ser visto.

Para a melhor compreensão do gênero trágico, recorreremos à definição de Aristóteles:

A tragédia é a representação de uma ação, nobre e completa, com uma certa extensão, em linguagem poetizada, cujos componentes poéticos se alternam nas partes da peça, com o concurso de atores e não por narrativa, que pela piedade e pelo terror opera a catarse desse gênero de emoções (ARISTÓTELES, Poética).

Portanto, “se a tragédia tem em comum com a epopeia O OBJETO – a ação nobre – e O MEIO – a linguagem poetizada – elas se distinguem quanto AO MODO. Na epopeia, o poeta compõe a representação narrando, de modo que ele próprio, na primeira ou terceira pessoa, introduz as personagens. No teatro, o poeta faz as personagens agirem diretamente, por isso, o que compõe se chama DRAMA (ação)” (MALHADAS, 2003, p. 25).

A tragédia surgiu no contexto de uma festa pública chamada Grandes Dionisíacas ou Dionísias Urbanas, festival em honra do deus Dionísio. Até 518, talvez só composta por desfile e sacrifícios. A data então marca a construção do theatron (estrutura de madeira temporária que acomodava os espetáculos), junto ao Santuário de Dioniso, num dos lados da Acrópole de Atenas, e, ao mesmo tempo, inaugura o início das competições de tragédia – dramas satíricos e coros líricos de homens e meninos.

“O festival, que se passava no final de fevereiro ou no começo de março, durava quatro dias. Cada dia começava logo no amanhecer. A plateia era a maior reunião de cidadãos do calendário. Na época em que os antigos assentos de madeira do teatro foram substituídos pelos de pedra, entre 14 e 16 mil pessoas assistiam ao festival regularmente. A maioria desses espectadores era de cidadãos: homens adultos com direito a voto, chefes de família. Enquanto a assembleia, o mais importante órgão político da democracia, tinha aproximadamente apenas seis mil pessoas em audiência, e as cortes menos ainda, a escala da Grande Dionisíaca estava mais próxima da dos jogos Olímpicos. A única ocasião na qual tantos cidadãos se reuniam no mesmo lugar era em uma batalha importante. O festival era uma verdadeira ocasião de Estado” (GOLDHILL, 2007, p. 202).

Atualmente, os vestígios do teatro monumental de Licurgo de 330 podem ainda ser visitados.

Os festivais, como quase tudo na mentalidade do grego antigo, caracterizavam-se pela já aludida competição. Apesar disso, os dramas eram sempre parte de uma economia/cultura da dádiva, sobretudo um dom, para Dioniso, oferecido por toda a cidade ou por um indivíduo rico durante as festividades.

As Dionisíacas marcavam o início das navegações no Mediterrâneo oriental depois de cinco meses de pausa e se desenrolavam, na verdade, durante sete dias do mês de elaphebolion, nono do calendário Ático ou Ateniense (vigente nos séculos V e IV a.C) e correspondente a mais ou menos o mês de março:

Dia 8 elaphebolion (~março): proagôn (ante-competição). Os poetas montavam um palco no Odeão (Ôideion), junto com seu coro (tem a indumentária) e falavam sobre a peça.

Dia 9 elaphebolion: eisagôgê (introdução): ícone de madeira do deus levado do sul até a gruta no norte, chamada academia, onde se cantavam hinos e se faziam sacrifícios. Retorno, com tochas, ao teatro (com consumo de vinho?).

Dia 10 elaphebolion: feriado Pompê (Desfile): principal procissão. Traz sacrifícios e entretenimento coral ao deus. Estilo carnavalesco, espetáculo para ser visto de dia. Multidão composta não apenas pelos coros (ao todo, vinte e oito), que iriam se apresentar. Falos gigantes (vários metros) eram carregados por coros (phallophoroi). Outros coros, com indumentária exótica, amiúde travestidos, carregavam falos menores (ithyphalloi) e apresentavam cantos com letras e movimentos obscenos. Outros se vestiam como pessoas exóticas, sátiros ou animais estranhos. “O desfile tematizava a loucura criativa inspirada pela presença de Dioniso e tinha como intenção provocar uma atmosfera de hilaridade anárquica. Vinho fluía livremente para espectadores e participantes” (CSAPO & WILSON, s. v. “Dramatic festivals”, 2014). Em estações ao longo do percurso, os coros paravam para apresentar hinos (provavelmente a origem do termo coral stasimon). O desfile também levava 200 a 400 bois, atrás de um touro digno do deus, destinado ao sacrifício no santuário de Dioniso em certa época. A maior parte dos bois vinha das cidades que eram colônias ou aliadas, das quais se exigia que levassem em falo e um boi para o desfile.

Neste mesmo dia, provavelmente, a competição entre dez coros de meninos (cada um com cinquenta integrantes; um por tribo) e, depois, de homens. Originalmente, cada canto relacionava-se ao gênero hínico cúltico e processional chamado de ditirambo. Ao longo do século V, quando não era mais um gênero marcadamente dionisíaco, tende a apresentar narrativas míticas variadas. Dançavam em formação circular com acompanhamento do aulo.

Dia 11 elaphebolion: antes da Guerra do Peloponeso, possivelmente, competição entre cinco comédias (cada uma de uma hora e meia a duas horas). O número de comédias foi suprimido na guerra, e é possível que cada comédia fosse apresentada uma por dia depois da tetralogia. A redução seria para se ganhar um dia de trabalho, e não a poupança da apresentação de duas comédias.

Dias 12-14 elaphebolion: com exceção da época da guerra, apresentação das tetralogias. No dia 12, cerimoniais cívicas diversas, o que mostra que era o dia mais importante: desfile dos homens que ganharam prohedria (assento especial no teatro); libações, seleção e juramento dos juízes; anúncio das honras públicas dadas pela assembleia no espaço de um ano; desfile em apresentação das armas dadas aos órgãos de guerra que alcançaram maioridade; apresentação do tributo trazido pelas cidades do império. No último dia, anúncio da tetralogia e do ator vencedor.

O processo de julgamento não é bem entendido: dez juízes, cada um colocando seu voto na urna. Talvez levasse em consideração o inclusivismo do público. Só cinco tábuas eram tiradas da urna. Caso não houvesse um vencedor inquestionável, mais duas e, depois, uma a uma. O resultado não é bom índice para popularidade dos dramaturgos. O foco era a performance do coro de cidadãos voluntários. O autor só participava da glória se ele mesmo tivesse coreografado o coro como didaskolos (mestre). Caso não o fizesse, poderia até ganhar popularidade, mas não reconhecimento oficial. Os poetas deviam receber um bom pagamento.

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