A Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de Abril foi um movimento
militar ocorrido em 1974, que surgiu no contexto das guerras coloniais que
Portugal mantinha na África desde o início dos anos 60. O movimento, que
transcorreu praticamente sem violência, derrubou o regime ditatorial do Estado
Novo, instaurado por Antônio Salazar e continuado por Marcelo Caetano. A
revolução teve como protagonistas jovens oficiais, os chamados "capitães
de abril", que foram veteranos das campanhas na África. Durante os
acontecimentos, os soldados recebiam, como sinal de apoio, cravos vermelhos da
população. Segue trecho da obra de Saramago Levantado do chão: romance que descreve o Primeiro de Maio durante a revolução e o poema de José Afonso Grândola, Vila Morena:
*****
Em Abril, falas mil. Nos
campos há grandes ajuntamentos noturnos, os homens mal veem as caras uns dos
outros, mas ouvem-se-lhes as vozes, abafadas se o local não é de suficiente segurança,
ou mais soltas e claras em deserto, em todos os casos com a proteção de vigias,
dispostos segundo a arte estratégica da prevenção, como quem defende um
acampamento. É, deste lado, uma guerra pacífica. Se pelo escuro da noite a
guarda se aproxima, e agora já não é a simples patrulha de dois homens dos
tempos correntes, vêm às dúzias e meias dúzias, e até onde os carreteiros
chegam transportam-se em jipe e jipão, se vindo assim se aproximam, depois em linha,
como quem levanta caça, recuam as sentinelas a avisar, e então de duas uma,
consoante, ou a guarda vai passar de largo e o silêncio é a melhor defesa,
todos os homens, sentados ou de pé, seguram a respiração e os pensamentos, são
direitas pedras, antas doutro tempo, ou a guarda vem mesmo ao direito da
reunião e a ordem é dispersar por caminhos de mau piso, por enquanto ainda a
guarda não tem cães, é o que vale. Na noite seguinte prosseguirá a conversa no
ponto em que foi deixada, naquele mesmo lugar ou noutro, que esta paciência é
infinita. E quando é possível encontram-se de dia, em grupos mais pequenos, ou
vão pelas casas, conversa de ao pé do lume, enquanto as mulheres lavam a louça
caladas e as crianças adormecem pelos cantos. E estando no eito um homem ao pé
doutro homem, a palavra dita e ouvida é como o bater do maço da cabrilha na
estaca, mais funda um pouco, e na hora de comer, com a panelinha ou a marmita
pousadas no chão, entre as pernas, enquanto a colher sobe e desce e a aragem
fria vai arrefecendo o corpo, tornam as palavras ao de cima, é um falar pausado
que diz, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, e então os
prudentes temem-se do futuro, Que será de nós se os patrões não quiserem dar
trabalho, mas as mulheres que estão a lavar a loiça da ceia, enquanto o lume
arde, têm vergonha de que tão prudente o seu homem seja e estão de acordo com o
amigo que lhes bateu à porta para dizer, Vamos para as oito horas, basta de
trabalhar de sol a sol, porque também elas assim trabalham, e mais ainda,
doridas, menstruadas, pejadas da barriga à boca, ou, quando já não, com os
seios a derramar o leite que devia ter sido mamado, é uma sorte, não se lhes
secou, muito se engana pois quem julgue que basta levantar uma bandeira e
dizer, Vamos. É preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os
certos e convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá
está a guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo
latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas
mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito
horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém
pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada
mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou
ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a
cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de
salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de
pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas,
muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de
dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé, Que vida tem sido a nossa, em
dois anos morreram-me dois filhos da doença da fome, e aquele que me resta,
irei criá-lo para besta de carga, respondam-me, se nem eu quero continuar a ser
a besta de carga que sou, são palavras que ferem os ouvidos delicados, mas aqui
não os há, ainda que ninguém, deste ajuntamento, goste de olhar para o espelho
e ver-se metido em varais de carroça ou com albarda e cangas, É assim desde que
nascemos.
(...)
E então começa-se a falar no
primeiro de Maio, é uma conversa que todos os anos se repete, mas agora é um
alvoroço público, lembrar-se a gente de que ainda o ano passado andava a
esconder-se por aí, para combinar, organizar, era preciso voltar constantemente
ao princípio, ligar os de confiança, animar os indecisos, tranquilizar os
temerosos, e mesmo agora ainda há quem não acredite que a festa do primeiro de
Maio possa ser às claras como dizem os jornais, quando a esmola é grande, o
pobre desconfia. Não é esmola nenhuma, declaram Sigismundo Canastro e Manuel
Espada, desdobra-se um jornal de Lisboa, Está aqui escrito que o primeiro de
Maio será festejado livremente, e dia feriado em todo o país, E então a guarda,
insistem os de boa memória, A guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem
havia de dizer que uma coisa assim nos viria a acontecer um dia, a guarda
quieta e calada enquanto tu gritas viva o primeiro de Maio.
E como por cima daquilo que
nos permitem temos sempre de pôr o que imaginamos, ou então não somos homens
merecedores de pão cozido, principiou a dizer-se que toda a gente devia
estender colchas à janela e pôr flores, como se fosse dia de sair o Senhor dos
Passos à praça, com um pouco mais se varriam as ruas e embarracavam as casas,
tão fáceis são de subir as escadas do contentamento. Porém, assim são os dramas
humanos, exagero foi chamar-lhes dramas, mas sem dúvida são perplexidades,
agora que vou eu fazer se em minha casa não há colchas nem tenho jardins de
cravos e rosas, quem terá sido o da ideia. Tem Maria Adelaide parte nesta
ansiedade, mas sendo nova e esperançosa diz à mãe que não poderão ficar em
pouco, que não havendo colcha fará uma toalha as vezes dela, branquíssimo pano
suspenso do postigo da porta, bandeira de paz no latifúndio, homem civil que
ali passasse haveria de descobrir-se com respeito, e sendo guarda ou militar em
sentido e continência prestar homenagem diante da porta de Manuel Espada, trabalhador
e bom homem. E não sejam as flores vosso cuidado, senhora mãe, que à fonte do
Amieiro irei colher das silvestres que neste tempo de Maio cobrem os vales e as
colinas, e estando as laranjeiras floridas ramos dela trarei e assim nosso
postigo será janela enfeitada como varanda de alcácer, menos do que os outros
não seremos, porque somos tanto.
(José
Saramago. Trecho de “Levantado do chão: romance”)
Grândola, Vila Morena
Grândola, Vila Morena
Terra
da fraternidade
O
povo é quem mais ordena
Dentro
de ti, ó cidade
Dentro
de ti, ó cidade
O
povo é quem mais ordena
Terra
da fraternidade
Grândola, Vila Morena
Em
cada esquina, um amigo
Em
cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra
da fraternidade
Terra
da fraternidade
Grândola, Vila Morena
Em
cada rosto, igualdade
O povo
é quem mais ordena
À
sombra duma azinheira
Que
já não sabia a idade
Jurei
ter por companheira
Grândola,
a tua vontade
Grândola
a tua vontade
Jurei
ter por companheira
À
sombra duma azinheira
Que
já não sabia a idade
(Canção
de José Afonso)
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