Introdução
por Jean
Pires de Azevedo Gonçalves
O conto
selecionado para a elaboração deste trabalho foi “Amor”, texto que compõe a
obra “Laços de Família”, de autoria da consagrada escritora Clarice Lispector.
O texto em questão parece bastante apropriado para tecer algumas associações
preliminares a respeito da biografia da autora, pois a personagem protagonista,
Ana, é uma mulher, casada, mãe de família, dona de casa, situação por vezes
similar à da própria Clarice. Não seria então de todo equivocado especular se a
autora tenha se inspirado, ao escrever o conto “Amor”, em reflexões suscitadas
de sua experiência cotidiana. Porém, seria igualmente equivocado estabelecer
uma ligação direta entre o conto e a vida da autora. Na verdade, trata-se de
uma obra de ficção e por isso a liberdade artística deve ser preservada até
mesmo para não comprometer o valor literário indiscutível de toda a produção
literária de Clarice Lispector que é independente da vida pessoal da escritora.
O livro “Laços de família” foi publicado nos anos de 1960, e evidentemente está
imbuído de características que marcaram os meados do século XX. Talvez, as
nuances culturais mais notáveis deste período foram as influências da filosofia
existencialista, cuja reflexão filosófica apoiava-se na busca de um sentido
autêntico da vida, pressupondo-se a precedência da existência, marcada
inerentemente pela liberdade, em relação às formas sociais impostas pela
cotidianidade. A procura desta autenticidade implicava uma renúncia aos
arquétipos de conduta pré-estabelecidos por determinações culturais e
político-econômicas da sociedade e a aceitação incondicional da liberdade, da
qual todos os seres humanos estavam condenados. Todavia, conforme ditava o
existencialismo, tomar as rédeas da existência exigia responsabilidade e um
compromisso moral sujeito a embates profundos com valores definidos socialmente
e, consequentemente, a represálias vindas do status quo. Dito
de outro modo, assumir o sentido da vida, o da liberdade, não seria tarefa
fácil, e, por isso, a verdadeira existência, livre de dissimulações e
artificialismos, deveria provocar mal-estar, vertigem, náusea etc. Neste
contexto, e feitas estas considerações pertinentes ao conto “Amor” e ao cenário
cultural da época, é possível pensar uma influência da filosofia formulada por
Sartre, Simone de Beauvoir e outros, na obra de Clarice, embora fosse temerário
considerar a autora como adepta do existencialismo. A verdade é que filosofia
existencialista marcou profundamente a geração de intelectuais contemporâneos
de Clarice. A própria autora chegou a declarar as seguintes palavras: “Passei a
vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar
corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente” (Clarice
Lispector). Neste sentido, alguns aspectos biográficos são importantes. Clarice
nasceu na Ucrânia, em 1920, de origem de família judia, radicalizou-se no
Brasil ainda quando era criança. Em 1943, forma-se na Faculdade Nacional de
Direito da Universidade do Brasil, e casa-se, em 44, com o diplomata Maury
Gurgel Valente, com quem tem dois filhos, Pedro e Paulo. No ano de 1959,
separa-se de Maury, algo impensável para a época. Fato que demonstra que
Clarice não aceitava as imposições sociais por mero conformismo, e estava
disposta a enfrentar os preconceitos de seu tempo. Interpretamos que sua
produção literária é bem um reflexo de sua vida. Autora de uma vasta obra que
vai desde romances, contos, crônicas e até literatura infantil, Clarice é uma
das escritoras mais renomadas e importantes da literatura brasileira.
ANÁLISE
DO CONTO
a) O
conto “Amor” segue o estilo de Clarice Lispector, tendo por características
principais paradoxos, metáforas e epifanias. Trata-se de mostrar de como uma
realidade banal e aparentemente estável podem aflorar situações altamente
perturbadoras e que põe em xeque a normalidade da vida cotidiana, ao desestruturar
toda a aparente estabilidade anterior. A vida da protagonista Ana poderia ser
descrita como igual à realidade de tantas outras mulheres – provavelmente da
classe média alta – de seu tempo. Sua realidade é preenchida por referenciais
de uma típica dona de casa que divide seu tempo em cuidar dos filhos, do
marido, das compras, da cozinha, do fogão, da cortinas, do tanque de lavar
roupa, etc. Clarice compara tal atividade a de um lavrador. “Ela
plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas” (p. 19). A
metáfora do lavrador sinaliza muito bem a posição central que ocupa Ana em
cultivar ou administrar o tempo que
ata os laços de sua família. Neste sentido, assim como o trabalho do agricultor
é o de preparar o terreno, esperar a estação apropriada, lançar as sementes,
aguardar o germinar, regar e colher, assim também é o papel que a sociedade
espera de uma boa dona de casa e que, ao que tudo indica, Ana cumpre muito bem.
De fato, e se nos fosse permitido uma pequena incursão pela psicanálise, até
mesmo a sua libido que poderia ser sublimada em dotes artísticos, no caso de
Ana, é sublimado na arte dos afazeres
doméstico. Assim, toda uma suposta potencialidade insondável é abafada e
canalizada para fins em que o lar é o centro. Pode se dizer até que a vida da
personagem é invertida, como numa metonímia, quando a parte de ser uma dona
de casa toma lugar do todo, isto é, do seu ser (seu
passado, presente e futuro). Porém, assim como na agricultura há estações do
ano em que um frio rigoroso ou uma chuva de granizo podem pôr a plantação a
perder, Ana também tem suas horas perigosas. Estas horas ou momentos – o
período da tarde – são justamente quando os filhos estão na escola, o marido,
no trabalho, e a casa, limpa. Neste sentido, se em sua vida não houvesse espaço
para ser preenchido com algum cuidado da casa, perderia todo o sentido. E isso
ocorria nestas horas da tarde, em que ela busca completar com atividades que
denotam significados sempre referentes à família. Logo, a rotina de Ana resume-se
a um ciclo determinado por funções relacionadas ao zelo do lar, da família.
Numa
bela tarde, esta realidade é posta em cheque quando Ana volta das compras e
toma um bonde para chegar à sua casa. No bonde, a figura de um homem cego
mascando chicletes abala todo o equilíbrio tênue de seu mundo, estritamente
organizado, e deflagra uma situação perturbadora, que provoca um terrível
horror e um irremediável mal-estar diante da suspensão de seus referenciais. De
repente, o mundo exterior se torna ameaçador e estranho, hostil. Situação que
vai crescendo como uma bola de neve, e é tão constrangedora que o saco de
tricô, onde estavam colocadas as compras, caem do colo de Ana com a arrancada
do bonde, quebrando os ovos. Esta metáfora, dos ovos, é extremamente importante
no conto, pois é um momento que simboliza uma ruptura, uma quebra da
normalidade do pequeno mundo de Ana. O ovo é a sua vida: um mundo fechado, em
si mesmado, mole por dentro e envolto por uma casca dura, mas frágil,
quebradiça; e aquilo que poderia ter nascido fora abortado. Ao se partir a
casca, como uma caixa de Pandora, o mundo real se mostra extremamente complexo,
onde seres mais estranhos surgem inesperadamente, levando Ana a uma crise
existencial. Esta metáfora será retomada quando Ana se depara diante de
“ostras”, prato que ela apreciava. Ana sente um fascínio pela ostra ao mesmo
tempo em que tem nojo. Pode-se inferir daí que o mundo imerso em que a
protagonista está submersa lhe causa repugnância porque foi recalcado
violentamente e nada mais é que o mundo exterior. Paradoxo! Este mundo é seu
próprio espelho: a assustadora realidade externa. Quando o ovo cai e se quebra
e a clara e gema escorrem para fora, é como se o mundo de Ana viesse à tona, à
luz do dia. Como se descobrisse a si mesma. “Não havia como fugir. Os dias que
ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava” (p. 27). De certa
forma, há uma transformação ou um renascimento, ao atingir esse ponto crítico
de ruptura. “O que chamava de crise viera afinal” (p. 23). Ou seja, a vida
real, a verdade crua, entra com veemência em seu ser. “Ela apaziguara tão bem a
vida, cuidara tanto para que esta não explodisse” (p.23). Nesta tarde, não pôde
evitar: explodiu. Sem dúvida, a “descoberta” – através do cego e dos acontecimentos
da tarde – de que o mundo não era perfeito e artificial, mas repleto de dor e
de angústia, lançou-a diante de sua própria existência, ou, para falar como o
filósofo, da condição de ser-no-mundo. Aqui a referência ao existencialismo não
poderia ser mais explicita. Vejamos: “E através da piedade aparecia a Ana uma
vida cheia de náusea doce, até a boca” (p. 23). Imersa nesta náusea, Ana perde
o ponto e acaba num jardim. Novamente, o jardim representa uma metáfora: a do
mundo que está fora da crosta. Nele habitam seres que não são familiares e
estranhos, como o gato, pardais, aranhas; além disso, frutas pretas, doce como
o mel, mancham o banco, o chão, com uma cor roxa. Há uma beleza nesse terrível
mundo exterior. O mundo fora da crosta é semelhante a uma noite, liquida e
suja, mas saborosa, doce. “A crueza do mundo era tranquila” (p. 25). Aliás,
mundo que era esmagado se ousasse invadir a pureza, o asseio, o esmero de seu
lar, como a insignificante formiga na cozinha limpa. A vida, sem a segurança
dos referenciais cuidadosamente preservados em sua rotina, causa repulsa, pois
se assemelha a insetos e aranhas e tem a consistência gosmenta, apodrecida. No
entanto, é sensível, apetitoso, comestível. “Ao mesmo tempo que imaginário –
era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas”
(p. 25). A metáfora do gosto é muito presente no conto e pode ser interpretada
como a substância que alimenta e que é deliciosa, apesar de insuportável.
Todavia, este mundo está presente em sua casa, a aranha atrás do fogão! Assim,
Ana cai em si, sabe que é uma privilegiada vivendo na sua pequena ilha distante
do mundo, onde seus
filhos cresciam, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com jornais e
sorrindo de fome. “Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes
com fome, a náusea subiu à garganta, como se ela estivesse grávida e
abandonada” (p. 25). Esta constatação demonstra o caráter social do conto. Ao
quebrar a casca de seu mundo, Ana tem a chance de se engajar e compreender a
vida como ela é. “Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo.
Do mesmo modo que sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago
sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a”
(p.26).
Ao
chegar ao seu apartamento, Ana abraçou o seu filho como se fosse um porto
seguro. Abraçou-o como demasiada força. Depois recebeu o marido, os seus irmãos
e cunhadas para o jantar. “Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia,
felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos” (p. 28). Havia
poucos ovos, aqueles que restaram, mas mesmo assim a comida foi muito boa! De
fato, muita coisa ainda foi preservada. Porém, a sensação de náusea não podia
desaparecer. “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quanto anos
levaria até envelhecer de novo?” (p. 29). Outra vez é possível identificar mais
uma metáfora, a da metamorfose do inseto saindo de sua vida larval dentro de um
casulo para se tornar adulto. “E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre
os dedos antes que ele nunca mais fosse seu” (p. 28). No conto, há muitas
outras metáforas que poderiam ser exploradas, mas, acreditamos que apreendemos
em linhas gerais alguns de seus aspectos mais significativos.
b) O
espaço tem um sentido importante na narrativa do conto ora examinado. Não chega
a exercer um determinismo incondicional, porém opera um tipo de interlocução
bastante significativa com relação à personagem. É como se houvesse uma troca
intensa entre o ambiente e a protagonista Ana. O cenário do bonde se alterna
com o da casa, e depois a Rua Voluntários da Pátria remete simbolicamente a
revolução interna por que passa a personagem. Entretanto, talvez, o Jardim
Botânico desempenha um momento crucial na trama do conto. Ele é repleto de simbolismo
que parecem refletir a descoberta do próprio mundo interior da personagem.
c) Já o
tempo, desempenha uma função menor. Aparece como cenário, ou pano de fundo da
narrativa. O fluxo narrativo se desenrola no período de um dia e tudo se passa
à tarde e à noite, num dia de verão.
d)
Identificamos o foco narrativo como onisciente seletivo.
O narrador praticamente não se omite diante dos acontecimentos apresentados.
Algumas de suas intervenções podem ser mesmo interpretadas como indagações da
própria personagem ou mesmo do leitor, como se observa no trecho a seguir: “Com
horror descobria que pertencia que pertencia a parte forte do mundo – e que
nome se deveria dar a misericórdia violenta?” (p. 27).
e) O
conto se desenrola com uma descrição que se encerra de modo dramático, isto é,
com um diálogo entre a personagem Ana e o marido.
CONCLUSÃO
Como já
foi dito, o conto “Amor” apresenta características do estilo da obra de Clarice
Lispector expressas numa linguagem metafórica e entremeada de paradoxos. Assim,
um momento banal da vida cotidiana, como o do cego mascando chicletes, perverte
todo o seu sentido desencadeando revelações insuspeitas e inusitadas. Os
sentidos revelados alcançam uma esfera de questionamentos que podem ir desde
problemas existenciais até mesmo de ordem social e econômica, desvelando, por
exemplo, as diferenças de uma sociedade de classes. É bastante interessante
atentar também para como em um conto de tão poucas páginas pode haver tanta
riqueza de conteúdo simbólico. Este conteúdo simbólico inunda toda a narrativa
mas se destaca principalmente nas relações entre os personagens, no caso Ana, e
o espaço.
BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIN,
W., “O narrador”. In: Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CORTÁZAR,
J., “Alguns aspectos do conto”. In: Valise de
Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.
LISPECTOR,
C., “Amor”. In:
Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NUNES,
B., O drama
da linguagem – uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.
"A saga de um andarilho pelas estrelas"
OBRIGAAAAAAAAAAAAAADA! Salvou o meu trabalho.
ResponderExcluirMuito boa análise! Parabéns!
ResponderExcluirObrigada viu adorei
ResponderExcluirQual seria a figura de linguagem desse conto
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