domingo, 1 de dezembro de 2019

Aula sobre Anna Karenina, de Liev Tolstói

O povo, afirma Tolstói em seus primeiros ensaios educacionais, é autossubsistente, não só no plano material, como também no espiritual. A canção folclórica, a Ilíada, a Bíblia nascem dele e, portanto, são inteligíveis para todos os homens, em todos os lugares, o que não é o caso do maravilhoso poema Silentium, da autoria de Tiuttchev, de Don Giovanni ou da Nona Sinfonia. Se existe um ideal do homem, ele não se situa no futuro, mas no passado. Outrora existiu o Jardim do Éden e nele habitava a criatura humana ainda não corrompida, como a Bíblia e Rousseau concebiam. Houve então a queda, a corrupção, o sofrimento, a falsificação. (Isaiah Berlin, Tolstói e o Iluminismo).


AULA

Apesar do livro se chamar Anna Karenina, o que nos induz a pensar numa narrativa que verse sobre uma personagem feminina tão somente, há, no livro, outra história paralela, que se desenrola em um nível mais profundo, com alguns pontos de intersecção com o enredo central situado na superfície, e que é tão importante ou mais que a história da personagem que intitula a obra. Trata-se da vida de Nicolai Dmitrievitch Lievin. De fato, seu nome poderia ser um subtítulo ou até mesmo o título oculto do livro e, à medida que avançamos a leitura do romance, tal personagem masculino vai ganhando relevo, assim como, em termos metafóricos, gravuras planas e abstratas que vão adquirindo profundidade e forma conforme a vista vai perdendo a perspectiva. Na lógica interna do romance, Lievin é a sombra de Anna e sua presença aparece como o negativo dela, para intestinamente emergir e desconstruir a temática que transita em primeiro plano, fato que nos faz questionar se não é ele o verdadeiro protagonista do romance. Pode ser até um pouco arriscado o que eu vou dizer. Mas Lievin poderia ser perfeitamente bem o alter-ego do próprio autor, Leon Tolstói. Como eu disse, Lievin é o contraponto de Anna Karenina. Sua antítese. Suas trajetórias partem de pontos opostos, cruzam-se, e se distanciam em direções contrárias. De passado dissoluto, Lievin se regenera; enquanto Anna, uma mulher casada, ao contrário, se degenera. Este é o mote do romance. Normalmente, lemos as epígrafes dos livros quase como um adorno, um capricho do autor. Peço a vocês, encarecidamente, para não cometer esse equívoco. A epígrafe de “Anna Karenina” nos é bem reveladora, quase uma profecia. Escreve Tolstói (deixa eu ler aqui para vocês): “Minha é a vingança, e a recompensa” (Deuteronômio, XXVII, 35). Ou seja, esta sentença terrível pode resumir toda a minha arguição. Também não é por mero acaso a citação extraída dos textos bíblicos. Há um panorama religioso de fundo pelo qual darei ensejo à minha interpretação. Anna Karenina é casada, mas Tolstói não esconde o quanto o conde Alexei Alexandrovich Karenin, esposo de Anna, é um homem terrível, frio, insensível, indiferente, egoísta, orgulhoso, péssimo pai, mais preocupado com a honra e carreira do que qualquer outra coisa etc., etc., etc. Todavia, a princípio, Anna fez um voto sagrado com este homem, o do matrimônio, e como tal deve se manter virtuosa. Virtude, sim, do latim uir ou vir, daí viril, homem, o que implica dizer: privar-se da feminilidade. Pois, na tradição religiosa, judaico-cristã, patriarcal, a mulher carrega em seu âmago o germe da transgressão ao desobedecer à única interdição no Gênesis: o conhecimento. De certo modo, conhecer é amadurecer, emancipar e, principalmente, libido. Segundo a tradição, é a mulher quem toma a iniciativa e conspira contra a ordem divina no Éden. Ou seja, a liberdade feminina é um perigoso fator desestruturante das relações hierárquicas. Nas sociedades arcaicas, a função da mulher se restringe à procriação, e daí um sistema de controle e vigilância sobre sua conduta que constitui o núcleo de toda uma política de estabilização social em torno do pátrio poder. As mulheres são arroladas entre os bens do clã patrilinear, enquanto propriedade, e devem reconhecer de modo irrestrito a autoridade paterna. O que supõe a menoridade da mulher, suscitada pelo hábito no qual se idealiza uma essência feminina associada a instintos sexuais e, portanto, irracionais, legitimando assim uma cultura repressiva e de heteronomia sobre suas ações, isto é, quando a vontade é regulada por normas exteriores e definida por terceiros. Evidentemente, este ideário não tem nenhum fundamento empírico, mas é tão somente o reflexo de um tipo de organização social e de relações de poder. Aqui saímos do campo da sociologia para entrar na metafísica, pois a substância masculina é identificada diretamente com o ser divino. Deus é pai, não mãe. Em contrapartida, a mulher é mãe de todas as revoluções. A emancipação da mulher, ou melhor, o protagonismo feminino é um fenômeno típico das sociedades moderna e urbana ocidentais. O casamento de Anna e Karenin, por convenção e contaminado pelos valores da civilização, insere-se nesse contexto moderno, ao qual poderíamos chamar, fazendo uma analogia à ciência jurídica de seiva cristã, de teoria do princípio dos frutos da árvore envenenada. Isto é, os valores morais intoxicados pela civilização ocidental se tornam paulatinamente universais e irreversíveis. Portanto, nem Anna nem Karenin representam o ideal de indivíduo proposto por Tolstói, que é o da simplicidade natural, digamos, rousseauniana. O cenário dos salões, festas e das reuniões em sociedade, que permeiam todo o romance, é a manifestação de uma era afeminada que se vislumbra no horizonte, no sentido de que o feminino é desagregador das origens. A feminilidade ameaça o status quo através de uma guerra pela autonomia sobre o amor. Deste modo, a paixão é a própria maçã da árvore do conhecimento que, inexplicável e maliciosamente, está localizada no meio do Paraíso para induzir inevitavelmente ao erro, à tentação. E, assim como toda a sociedade moderna, Anna também se deixa seduzir pelos valores infectados, exógenos, antinaturais, porque tudo em sua vida pregressa é artificial, leviano e falso. Neste sentido, o corolário da civilização burguesa é a hipocrisia e, por conseguinte, a paixão de Anna, eivada por todas as mazelas desse universo cultural, paixão por um rapaz jovem e bonito, que também a ama verdadeiramente, não pode escapar do destino e do castigo daqueles que se desviam das supostas leis naturais e divinas. Não vou contar o final da história, porque sei que muitos de vocês ainda não terminaram de ler, mas não pensem vocês que o Conde Alexei Kirillovich Vronsky, o jovem galanteador, por quem Anna se apaixona perdidamente, é um cafajeste que em algum momento pensa em abandoná-la. Tosltói não nos dá esse gostinho para aplacar nossa ânsia por justificações. Gente, acreditem em mim, Vronsky é o sonho de qualquer mulher! Portanto, não é a rejeição de Vronsky que leva Anna à ruína; mas, sim, a culpa que a domina em seu íntimo, até tomá-la por inteira. Culpa que não apenas advém do adultério, por se separar do marido, por violar as leis do matrimônio, ainda que sem amor, mas, sim, pelos erros de toda uma geração. Culpa que a arrasta em uma correnteza invencível às raias da loucura. Eis a vingança! Agora, vamos à recompensa. Lievin, ao contrário, é um homem pertencente à aristocracia rural, tem 32 anos, é bastante vivido e maduro – tendo por base os padrões da época – e de juventude libertina na cidade, como todos os homens, mas que se redime através do retorno à vida do campo e no casamento com uma mocinha, a princesa Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya, a Kitty, muito mais jovem do que ele, uma carola. Por fim, Lievin, antes ateu, convence-se, no final do livro, da existência de Deus; fato que lhe enche a vida de sentido. Curiosamente, a futura esposa de Lievin, a Kitty, no início do livro, era caidinha pelo amante de Anna, o Vronsky. Claro, né, gente! Lievin não suporta isso. Mas, claro, como eles são do “bem” (entre aspas), Kitty acaba por descobrir um grande amor pelo marido em sua convivência com ele – gente, ponham um entre aspas enfático nesse amor também, porque eu não me convenci: apesar de ter só 18 anos, pasmem, Kitty tem pavor de ficar para titia, tendo em vista os padrões morais da época. Enfim, Kitty acaba por amar um esposo que não escolheu e que não é fruto de uma paixão à primeira vista! Portanto, Kitty tem algo em comum com Lievin. Ela também se regenera. (Gente, ressaltando, ela só tem 18 anos!). Ela também era leviana, contagiada pelos ares sensuais da civilização urbana. Ao ser preterida por Vronsky, Kitty adoece e é internada em um sanatório, onde trava contato com uma devota, algo que a faz mudar completamente de vida. Mas a sua transformação só se dará efetivamente com o casamento com Lievin. Do nada ela se revela. Torna-se uma mulher forte, determinada, resoluta, apaixonada, fiel, leal, amiga, companheira, boa esposa, submissa [sublinhem este “submissa”]... Gente, dá até raiva! Ela, que é uma adolescente, aparece muito mais “madura” (aspas aí!) do que Anna, que, apesar de aparentar uns 20, devia estar perto dos trinta, pois seu filho único tem oito anos. No fundo, para mim, Tolstói condena o único amor verdadeiro do romance, fruto de espontânea e verdadeira paixão, que é o amor de Anna e Vronsky. Porque Anna e Vronsky estão mais para Romeu e Julieta do que qualquer outro casal da história. Ambos desafiam as convenções sociais por amor, renunciam tudo e tem de superar os obstáculos de um amor proibido. Inclusive, por isso, Anna, ao resolver assumir seu romance com Vronsky, é banida dos círculos aristocráticos. Mas, muito cuidado, gente, não é o amor romântico. É o amor que existe na vida real, que pode acontecer com qualquer um de nós, afinal, trata-se da escola realista. Quanto aos outros casais, diga-se, de passagem, todos os relacionamentos são marcados pela hipocrisia e traições. E apesar da hipocrisia causar um terrível mal estar em Tolstói, que é um crítico ferrenho da sociedade de sua época, todos os hipócritas passam impunes no romance. Somente Anna e Vronsky pagam por se amarem verdadeiramente. Pagam porque ainda tem um pingo de dignidade que falta aos outros personagens. Portanto, Tolstói é profundamente severo e moralista. A crítica que ele faz da sociedade moderna é contrabalanceada pelas comunidades arcaicas russas, tidas como ideal: um idílio, o paraíso perdido. E daí um projeto nacional, agrário, de cunho eslavista, oriental, antiliberal, representado por Lievin, e que permeia todo o livro em passagens extremamente monótonas e enfadonhas que faz a gente gritar: onde estão Anna e Vronsky!  Ai, gente, vocês me desculpem pelo que eu vou falar agora. Lievin até é um personagem interessante no início, mas depois vai se tornando um chato. Consegue ser mais maçante que Karenin. Sabem aquele cara pedante, cheio dos não-me-toque, que fica do alto de um pedestal medindo com uma régua o que é certo e o que é errado, como se o mundo girasse em torno dele? Bom, esse é o Lievin. Mas, é exatamente isto, Anna e Vronsky representam o mundo ocidental, a modernidade volátil, superficial, instável, sensual, movediça e vazia. Ambos se corromperam por causa dela. Por afastarem-se do ideal de caráter e da essência do povo russo. Neste ponto, apesar do conservadorismo, Tolstói pode ser enquadrado como um revolucionário, se o pensarmos como um representante de uma vertente aristocrática e conservadora do populismo russo, e não raro ele é considerado, com muitas reservas, um anarquista, ou melhor, um anarco-cristão...

Moça bonita com trajes típicos da Rússia

Florisa: Professora!

Professora: Sim.

Florisa: A gente pode dizer que Anna Karenina se apaixona por Vronsky porque Karenin é um homem mais velho e por isso...

Professora: Não, não é só isso. Como eu disse, Tolstói é um crítico da sociedade ocidental burguesa. Certamente, ele detesta Alexei. Alexei é o nobre que abdica dos ideais de nobreza para se tornar um burocrata a serviço de um Estado absolutista abominável, que é o czarismo. Tolstói é contra o Estado de um modo geral. Certamente, não nutre simpatia por Karenin. Mas, sem dúvida, Alexei é um personagem extremamente complexo, muito bem construído; ele é vazio por dentro, totalmente desumanizado. Gente, é impagável a reação de Karenin quando recebe a notícia da boca da própria Anna de que está sendo traído por ela. Ele explode por dentro, mas não mexe um músculo da face. Sua primeira atitude é de não tornar público o adultério. Depois chega a permitir, após meditações muito ponderadas, que Anna e Vronsky mantenham o relacionamento, desde que escondido. Ou seja, ele está mais preocupado com a fachada de seu casamento, pensando na carreira, na sua posição social. Continua trabalhando normalmente, ambicioso que é. Há momentos em que ele é extremamente sádico, pois cabe a ele conceder a separação a Anna. Não. Alexei não pode ser um autêntico russo, abjeto que é. Não para Tolstói. Não é uma pessoa; é uma coisa, uma função. Russo é Lievin. Este, sim, é o grande herói do livro. Anna se apaixona por Vronsky, porque, em primeiro lugar, ele é apaixonável, assim como as ilusões do mundo moderno, e, em segundo, porque está ligada a um homem detestável, embora um cumpridor das leis e dos valores religiosos. E, como nele tudo é falso, Ana quer quebrar as leis. Quer ser livre. Quer amar. Ana é uma rebelde, em sua interioridade, em seu íntimo, aos moldes de uma personagem feminina de um romance francês, de Balzac, por exemplo. Na crítica romântica de Balzac, pré-realista, é o dinheiro que está por trás de tudo. Para o realismo de Tolstói, é toda a civilização ocidental. Por isso, Alexei é um burocrata detestável, mas tem uma carreira regular e ascendente. Ontem, como hoje, seria um bom partido para muitas alpinistas sociais. Gente, desculpem-me o eufemismo. Então, não é porque ele é mais velho. É porque, para Tolstói, tudo está errado na sociedade russa, que corrompe a sua origem – cristã ortodoxa (ainda que Tolstói pense num cristianismo mais puro e acabe rompendo com a igreja ortodoxa). Anna e Vronsly também são curvas fora da reta. Mas, para o desespero de Tolstói, foi Anna que se consagrou e não Lievin. O modelo vencedor foi o de Anna. Para terminar, no nosso mundo contemporâneo, depois de toda a revolução sexual, do comportamento, da liberdade e igualdade de gênero, talvez, para nós, principalmente nós mulheres, seja muito difícil simpatizar com o moralismo de Tolstói. Porém, não podemos esquecer que “Anna Karenina” é uma obra-prima da literatura universal, leitura indispensável. Esteticamente, o livro é perfeito. Gente, para a próxima aula, terminem a leitura, por favor, para entrarmos no tema seguinte que já deixei na pasta do xerox. Obrigada e boa noite!

Nota 1: Lievin é o personagem mais autobiográfico de  Liev Tolstói.

Nota 2: Este monólogo é parte da peça Des-tino (2016), de Jean Pires de Azevedo Gonçalves. Embora o autor seja leitor da literatura russa e conheça bem a história da mãe Rússia, a interpretação é livre.

Dramaturgia de autoria de Jean Pires de A. Gonçalves


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