O povo, afirma Tolstói em seus primeiros ensaios educacionais, é autossubsistente, não só no plano material, como também no espiritual. A canção folclórica, a Ilíada, a Bíblia nascem dele e, portanto, são inteligíveis para todos os homens, em todos os lugares, o que não é o caso do maravilhoso poema Silentium, da autoria de Tiuttchev, de Don Giovanni ou da Nona Sinfonia. Se existe um ideal do homem, ele não se situa no futuro, mas no passado. Outrora existiu o Jardim do Éden e nele habitava a criatura humana ainda não corrompida, como a Bíblia e Rousseau concebiam. Houve então a queda, a corrupção, o sofrimento, a falsificação. (Isaiah Berlin, Tolstói e o Iluminismo).
AULA
Apesar do livro se chamar
Anna Karenina, o que nos induz a pensar numa narrativa que verse sobre uma
personagem feminina tão somente, há, no livro, outra história paralela, que se
desenrola em um nível mais profundo, com alguns pontos de intersecção com o
enredo central situado na superfície, e que é tão importante ou mais que a
história da personagem que intitula a obra. Trata-se da vida de Nicolai
Dmitrievitch Lievin. De fato, seu nome poderia ser um subtítulo ou até mesmo o
título oculto do livro e, à medida que avançamos a leitura do romance, tal
personagem masculino vai ganhando relevo, assim como, em termos metafóricos,
gravuras planas e abstratas que vão adquirindo profundidade e forma conforme a
vista vai perdendo a perspectiva. Na lógica interna do romance, Lievin é a
sombra de Anna e sua presença aparece como o negativo dela, para intestinamente
emergir e desconstruir a temática que transita em primeiro plano, fato que nos
faz questionar se não é ele o verdadeiro protagonista do romance. Pode ser até
um pouco arriscado o que eu vou dizer. Mas Lievin poderia ser perfeitamente bem
o alter-ego do próprio autor, Leon Tolstói. Como eu disse, Lievin é o
contraponto de Anna Karenina. Sua antítese. Suas trajetórias partem de pontos
opostos, cruzam-se, e se distanciam em direções contrárias. De passado
dissoluto, Lievin se regenera; enquanto Anna, uma mulher casada, ao contrário,
se degenera. Este é o mote do romance. Normalmente, lemos as epígrafes dos
livros quase como um adorno, um capricho do autor. Peço a vocês,
encarecidamente, para não cometer esse equívoco. A epígrafe de “Anna Karenina”
nos é bem reveladora, quase uma profecia. Escreve Tolstói (deixa eu ler aqui
para vocês): “Minha é a vingança, e a recompensa” (Deuteronômio, XXVII, 35). Ou
seja, esta sentença terrível pode resumir toda a minha arguição. Também não é
por mero acaso a citação extraída dos textos bíblicos. Há um panorama religioso
de fundo pelo qual darei ensejo à minha interpretação. Anna Karenina é casada,
mas Tolstói não esconde o quanto o conde Alexei Alexandrovich Karenin, esposo
de Anna, é um homem terrível, frio, insensível, indiferente, egoísta,
orgulhoso, péssimo pai, mais preocupado com a honra e carreira do que qualquer
outra coisa etc., etc., etc. Todavia, a princípio, Anna fez um voto sagrado com
este homem, o do matrimônio, e como tal deve se manter virtuosa. Virtude, sim,
do latim uir ou vir, daí viril, homem, o que implica dizer: privar-se da
feminilidade. Pois, na tradição religiosa, judaico-cristã, patriarcal, a mulher
carrega em seu âmago o germe da transgressão ao desobedecer à única interdição
no Gênesis: o conhecimento. De certo modo, conhecer é amadurecer, emancipar e,
principalmente, libido. Segundo a tradição, é a mulher quem toma a iniciativa e
conspira contra a ordem divina no Éden. Ou seja, a liberdade feminina é um
perigoso fator desestruturante das relações hierárquicas. Nas sociedades
arcaicas, a função da mulher se restringe à procriação, e daí um sistema de
controle e vigilância sobre sua conduta que constitui o núcleo de toda uma
política de estabilização social em torno do pátrio poder. As mulheres são
arroladas entre os bens do clã patrilinear, enquanto propriedade, e devem
reconhecer de modo irrestrito a autoridade paterna. O que supõe a menoridade da
mulher, suscitada pelo hábito no qual se idealiza uma essência feminina
associada a instintos sexuais e, portanto, irracionais, legitimando assim uma
cultura repressiva e de heteronomia sobre suas ações, isto é, quando a vontade
é regulada por normas exteriores e definida por terceiros. Evidentemente, este
ideário não tem nenhum fundamento empírico, mas é tão somente o reflexo de um
tipo de organização social e de relações de poder. Aqui saímos do campo da
sociologia para entrar na metafísica, pois a substância masculina é
identificada diretamente com o ser divino. Deus é pai, não mãe. Em
contrapartida, a mulher é mãe de todas as revoluções. A emancipação da mulher,
ou melhor, o protagonismo feminino é um fenômeno típico das sociedades moderna
e urbana ocidentais. O casamento de Anna e Karenin, por convenção e contaminado
pelos valores da civilização, insere-se nesse contexto moderno, ao qual
poderíamos chamar, fazendo uma analogia à ciência jurídica de seiva cristã, de
teoria do princípio dos frutos da árvore envenenada. Isto é, os valores morais
intoxicados pela civilização ocidental se tornam paulatinamente universais e
irreversíveis. Portanto, nem Anna nem Karenin representam o ideal de indivíduo
proposto por Tolstói, que é o da simplicidade natural, digamos, rousseauniana.
O cenário dos salões, festas e das reuniões em sociedade, que permeiam todo o
romance, é a manifestação de uma era afeminada que se vislumbra no horizonte,
no sentido de que o feminino é desagregador das origens. A feminilidade ameaça
o status quo através de uma guerra pela autonomia sobre o amor. Deste modo, a
paixão é a própria maçã da árvore do conhecimento que, inexplicável e
maliciosamente, está localizada no meio do Paraíso para induzir inevitavelmente
ao erro, à tentação. E, assim como toda a sociedade moderna, Anna também se
deixa seduzir pelos valores infectados, exógenos, antinaturais, porque tudo em
sua vida pregressa é artificial, leviano e falso. Neste sentido, o corolário da
civilização burguesa é a hipocrisia e, por conseguinte, a paixão de Anna,
eivada por todas as mazelas desse universo cultural, paixão por um rapaz jovem
e bonito, que também a ama verdadeiramente, não pode escapar do destino e do
castigo daqueles que se desviam das supostas leis naturais e divinas. Não vou
contar o final da história, porque sei que muitos de vocês ainda não terminaram
de ler, mas não pensem vocês que o Conde Alexei Kirillovich Vronsky, o jovem
galanteador, por quem Anna se apaixona perdidamente, é um cafajeste que em
algum momento pensa em abandoná-la. Tosltói não nos dá esse gostinho para
aplacar nossa ânsia por justificações. Gente, acreditem em mim, Vronsky é o
sonho de qualquer mulher! Portanto, não é a rejeição de Vronsky que leva Anna à
ruína; mas, sim, a culpa que a domina em seu íntimo, até tomá-la por inteira.
Culpa que não apenas advém do adultério, por se separar do marido, por violar
as leis do matrimônio, ainda que sem amor, mas, sim, pelos erros de toda uma
geração. Culpa que a arrasta em uma correnteza invencível às raias da loucura.
Eis a vingança! Agora, vamos à recompensa. Lievin, ao contrário, é um homem
pertencente à aristocracia rural, tem 32 anos, é bastante vivido e maduro –
tendo por base os padrões da época – e de juventude libertina na cidade, como
todos os homens, mas que se redime através do retorno à vida do campo e no
casamento com uma mocinha, a princesa Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya, a
Kitty, muito mais jovem do que ele, uma carola. Por fim, Lievin, antes ateu,
convence-se, no final do livro, da existência de Deus; fato que lhe enche a
vida de sentido. Curiosamente, a futura esposa de Lievin, a Kitty, no início do
livro, era caidinha pelo amante de Anna, o Vronsky. Claro, né, gente! Lievin
não suporta isso. Mas, claro, como eles são do “bem” (entre aspas), Kitty acaba
por descobrir um grande amor pelo marido em sua convivência com ele – gente,
ponham um entre aspas enfático nesse amor também, porque eu não me convenci:
apesar de ter só 18 anos, pasmem, Kitty tem pavor de ficar para titia, tendo em
vista os padrões morais da época. Enfim, Kitty acaba por amar um esposo que não
escolheu e que não é fruto de uma paixão à primeira vista! Portanto, Kitty tem
algo em comum com Lievin. Ela também se regenera. (Gente, ressaltando, ela só
tem 18 anos!). Ela também era leviana, contagiada pelos ares sensuais da
civilização urbana. Ao ser preterida por Vronsky, Kitty adoece e é internada em
um sanatório, onde trava contato com uma devota, algo que a faz mudar
completamente de vida. Mas a sua transformação só se dará efetivamente com o
casamento com Lievin. Do nada ela se revela. Torna-se uma mulher forte,
determinada, resoluta, apaixonada, fiel, leal, amiga, companheira, boa esposa, submissa [sublinhem este “submissa”]...
Gente, dá até raiva! Ela, que é uma adolescente, aparece muito mais “madura”
(aspas aí!) do que Anna, que, apesar de aparentar uns 20, devia estar perto dos
trinta, pois seu filho único tem oito anos. No fundo, para mim, Tolstói condena
o único amor verdadeiro do romance, fruto de espontânea e verdadeira paixão,
que é o amor de Anna e Vronsky. Porque Anna e Vronsky estão mais para Romeu e
Julieta do que qualquer outro casal da história. Ambos desafiam as convenções
sociais por amor, renunciam tudo e tem de superar os obstáculos de um amor
proibido. Inclusive, por isso, Anna, ao resolver assumir seu romance com
Vronsky, é banida dos círculos aristocráticos. Mas, muito cuidado, gente, não é
o amor romântico. É o amor que existe na vida real, que pode acontecer com
qualquer um de nós, afinal, trata-se da escola realista. Quanto aos outros
casais, diga-se, de passagem, todos os relacionamentos são marcados pela hipocrisia
e traições. E apesar da hipocrisia causar um terrível mal estar em Tolstói, que
é um crítico ferrenho da sociedade de sua época, todos os hipócritas passam
impunes no romance. Somente Anna e Vronsky pagam por se amarem verdadeiramente.
Pagam porque ainda tem um pingo de dignidade que falta aos outros personagens.
Portanto, Tolstói é profundamente severo e moralista. A crítica que ele faz da
sociedade moderna é contrabalanceada pelas comunidades arcaicas russas, tidas
como ideal: um idílio, o paraíso perdido. E daí um projeto nacional, agrário,
de cunho eslavista, oriental, antiliberal, representado por Lievin, e que
permeia todo o livro em passagens extremamente monótonas e enfadonhas que faz a
gente gritar: onde estão Anna e Vronsky!
Ai, gente, vocês me desculpem pelo que eu vou falar agora. Lievin até é
um personagem interessante no início, mas depois vai se tornando um chato.
Consegue ser mais maçante que Karenin. Sabem aquele cara pedante, cheio dos
não-me-toque, que fica do alto de um pedestal medindo com uma régua o que é
certo e o que é errado, como se o mundo girasse em torno dele? Bom, esse é o
Lievin. Mas, é exatamente isto, Anna e Vronsky representam o mundo ocidental, a
modernidade volátil, superficial, instável, sensual, movediça e vazia. Ambos se
corromperam por causa dela. Por afastarem-se do ideal de caráter e da essência
do povo russo. Neste ponto, apesar do conservadorismo, Tolstói pode ser
enquadrado como um revolucionário, se o pensarmos como um representante de uma
vertente aristocrática e conservadora do populismo russo, e não raro ele é
considerado, com muitas reservas, um anarquista, ou melhor, um
anarco-cristão...
Florisa: Professora!
Professora: Sim.
Florisa: A gente pode dizer
que Anna Karenina se apaixona por Vronsky porque Karenin é um homem mais velho
e por isso...
Professora: Não, não é só
isso. Como eu disse, Tolstói é um crítico da sociedade ocidental burguesa.
Certamente, ele detesta Alexei. Alexei é o nobre que abdica dos ideais de
nobreza para se tornar um burocrata a serviço de um Estado absolutista
abominável, que é o czarismo. Tolstói é contra o Estado de um modo geral.
Certamente, não nutre simpatia por Karenin. Mas, sem dúvida, Alexei é um
personagem extremamente complexo, muito bem construído; ele é vazio por dentro,
totalmente desumanizado. Gente, é impagável a reação de Karenin quando recebe a
notícia da boca da própria Anna de que está sendo traído por ela. Ele explode
por dentro, mas não mexe um músculo da face. Sua primeira atitude é de não
tornar público o adultério. Depois chega a permitir, após meditações muito
ponderadas, que Anna e Vronsky mantenham o relacionamento, desde que escondido.
Ou seja, ele está mais preocupado com a fachada de seu casamento, pensando na
carreira, na sua posição social. Continua trabalhando normalmente, ambicioso
que é. Há momentos em que ele é extremamente sádico, pois cabe a ele conceder a
separação a Anna. Não. Alexei não pode ser um autêntico russo, abjeto que é.
Não para Tolstói. Não é uma pessoa; é uma coisa, uma função. Russo é Lievin.
Este, sim, é o grande herói do livro. Anna se apaixona por Vronsky, porque, em
primeiro lugar, ele é apaixonável, assim como as ilusões do mundo moderno, e,
em segundo, porque está ligada a um homem detestável, embora um cumpridor das
leis e dos valores religiosos. E, como nele tudo é falso, Ana quer quebrar as
leis. Quer ser livre. Quer amar. Ana é uma rebelde, em sua interioridade, em
seu íntimo, aos moldes de uma personagem feminina de um romance francês, de
Balzac, por exemplo. Na crítica romântica de Balzac, pré-realista, é o dinheiro
que está por trás de tudo. Para o realismo de Tolstói, é toda a civilização
ocidental. Por isso, Alexei é um burocrata detestável, mas tem uma carreira
regular e ascendente. Ontem, como hoje, seria um bom partido para muitas
alpinistas sociais. Gente, desculpem-me o eufemismo. Então, não é porque ele é
mais velho. É porque, para Tolstói, tudo está errado na sociedade russa, que
corrompe a sua origem – cristã ortodoxa (ainda que Tolstói pense num
cristianismo mais puro e acabe rompendo com a igreja ortodoxa). Anna e Vronsly
também são curvas fora da reta. Mas, para o desespero de Tolstói, foi Anna que
se consagrou e não Lievin. O modelo vencedor foi o de Anna. Para terminar, no
nosso mundo contemporâneo, depois de toda a revolução sexual, do comportamento,
da liberdade e igualdade de gênero, talvez, para nós, principalmente nós
mulheres, seja muito difícil simpatizar com o moralismo de Tolstói. Porém, não
podemos esquecer que “Anna Karenina” é uma obra-prima da literatura universal,
leitura indispensável. Esteticamente, o livro é perfeito. Gente, para a próxima
aula, terminem a leitura, por favor, para entrarmos no tema seguinte que já
deixei na pasta do xerox. Obrigada e boa noite!
Nota 1: Lievin é o
personagem mais autobiográfico de Liev Tolstói.
Nota 2: Este monólogo é
parte da peça Des-tino (2016), de Jean Pires de Azevedo Gonçalves.
Embora o autor seja leitor da literatura russa e conheça bem a história da mãe Rússia,
a interpretação é livre.
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