quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Mia Couto é mesmo um escritor africano?

Por Abikanile Abla Mkali

O objetivo deste breve artigo não é questionar os méritos literários indubitáveis de um escritor como Mia Couto, mas, sim, questionar até que ponto é legítimo considerar escritores brancos como representantes de uma africanidade e, num sentido mais amplo, se a literatura é uma expressão genuína da cultura africana ou se é mais uma manifestação da tutela intelectual imposta pela cultura europeia, ainda tão presente no continente africano, e cujas raízes remontam ao processo de colonização da África.


Escritor

Esta questão é um tabu e desafia a hipocrisia reinante. Até mesmo na universidade, supostamente espaço da crítica e do livre pensamento, o silêncio é ensurdecedor. Professores de literatura africana, geralmente brancos, nunca tocam no problema da negritude dos autores africanos, como se as letras não tivessem cor e a arte e a ciência pairassem incólumes sobre as picuinhas humanas. Paralelamente, multiplicam-se pesquisas em torno de temas referentes ao negro, como hip-pop, grafite, pichação, funk, periferia etc. Porém, a chancela teórica destes trabalhos é toda importada da Europa, principalmente, Alemanha e França. Autores da moda como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Pierre Bourdieu e até Nietzsche avalizam estudos e, supostamente, elucidam temáticas como, por exemplo, a os quilombolas no interior da Bahia. Simplesmente, bizarro!

Em que pese as circunstâncias em que dificilmente um professor universitário, de pele branca, sofra algum tipo de discriminação social, o fato é que, bem abaixo do castelo construído sobre nuvens, que se tornou a universidade, o mundo real é muito mais tumultuado do que as brilhantes abstrações e engenhosas sacadas de filósofos alemães. Produzir teses e mais teses para não serem lidas é um completo absurdo e só mostra o grau de alienação em que se encontra a universidade no Brasil. Somente a crítica e autocrítica poderiam romper este estado de coisas, algo que parece impossível na impermeável corporação universitária.

Se a literatura realmente serviu aos propósitos do nacionalismo europeu, principalmente, com o romantismo, também serviu aos propósitos da dominação colonialista. Na literatura brasileira, o marco é, obviamente, o romance O Guarani, de José de Alencar, escritor branco e defensor ferrenho da escravidão. O seu personagem Peri, arquétipo romântico das inconvenientes origens de uma “nacionalidade brasileira”, não passa de um Hércules da servidão voluntária. Solitário em seu mundo, Peri é, com todas as letras, a encarnação do bom selvagem, “vagando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra, (...) sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo” (Rousseau). Imaculado dos pecados da sociedade, Peri devota uma lealdade canina a Cecília, mulher branca, filha de colonos portugueses, para quem dirigir um tímido olhar voluptuoso seria por si só sacrilégio, já que este ídolo sagrado de seu amor ascético, personificação da imagem de Nossa Senhora (em que pese a ambiguidade do “senhora”), é, para ele, prova intuitiva da cultura superior detentora da fé verdadeira que lhe inspira. Somente por força da maldade do mundo, esse jesuíta disfarçado de índio é expulso do Paraíso e levado involuntariamente a ceder à tentação do fruto proibido, tão longa e amargamente reprimida, algo que nunca é dito, somente subtendido, em um epílogo apoteótico, quando as cortinas se fecham e as luzes se apagam. Diante das exigências do romantismo, José de Alencar criou um eufemismo para o mito fundador brasileiro para lá de idealizado, mas, apesar de todas as concessões, o literato antiabolicionista não reconheceu o elemento africano como formador da identidade nacional.

De fato, o romantismo no Brasil levou às últimas consequências o simulacro do “índio”, enquanto instrumento ideológico de dominação transfigurado pela tradição cultural invasora em símbolo nacional, oco e vazio. O índio de verdade, de carne e osso, este foi praticamente dizimado pela guerra de extermínio colonial, restando aos poucos indivíduos que sobreviveram a humilhante situação de bater na porta das corruptas instituições brasileiras forjadas pelo torno europeu e implorar migalhas e favores.

Na África, não foi diferente. Toda a riquíssima cultura africana, transmitida, diga-se de passagem, pela tradição oral, só pôde ganhar estatuto de cidadania sob o beneplácito do jugo do colonizador. Ou seja, somente pela metamorfose da essência nativa em figurino europeu, os povos nãoeuropeus puderam aspirar ao status jurídico de “cidadão livres e iguais”.

Assim sendo, a literatura é reflexo, tanto aqui, como lá, da segregação social, político e econômico, entranhada até a medula na sociedade pós-colonial de mentalidade escravocrata. Índios e africanos, das mais diversas etnias, foram escravizados, roubados, sequestrados, violentados, estuprados, espoliados, assassinados, desumanizados e, por fim, descartados, jogados no lixo. Lá, como aqui, a elite branca, de origem europeia, ocupou todas as posições de prestígio – seja artístico, político, econômico etc. –, apoderou-se de todos os espaços do topo da hierarquia social e relegou à maioria negra, indígena e mestiça o papel coadjuvante de fornecedores de serviços e mão de obra barata, cada vez mais sem direitos.

Historicamente, nos termos da divisão internacional de trabalho, o continente africano abasteceu a economia mercantilista com trabalho escravo. A partir do momento em que a escravidão se tornou um empecilho para o desenvolvimento do capitalismo industrial, navios negreiros eram afundados pela poderosa esquadra naval inglesa, que pouco se importava com as centenas de vítimas acorrentadas nos porões das embarcações levadas a pique e que, talvez, teriam melhor sorte se fossem vendidos como reles mercadoria no leilão de escravos – pelo menos prolongaria suas vidas por mais uns cinco anos, tempo de vida útil de um escravo. Durante a corrida neocolonialista do século XIX, a África foi esquartejada, dividida, fragmentada, territórios foram desenhados ao bel prazer do imperialista europeu, que expropriou recursos naturais e explorou a preço vil a força de trabalho da população nativa. Com o movimento de descolonização em meados do século XX, os novos países africanos foram obrigados a aceitar as divisões artificiais legadas pela geopolítica europeia e introduzir em seu repertório cultural noções estranhas à sua tradição, como o conceito de Estado-nação, o que gerou ódio e conflitos catastróficos entre as diversas etnias por décadas e mais décadas.

Assim, como ler a literatura africana sem críticas? Se já não fosse demasiado humilhante a um artista negro africano acatar as imposições culturais do povo opressor, o que dirá então de um escritor branco ser alçado à condição de arauto do povo que foi vilipendiado justamente por esse mesmo invasor branco?

Ora, quais os limites do escárnio, da ofensa, da perversidade? Para cada branco medíocre prestigiado, mil negros talentosos são preteridos, esquecidos, marginalizados. Apagar ou atenuar os efeitos maléficos do apartheid social e econômico, hoje velado, mas vigorando a todo vapor na África negra, em nome de uma suposta meritocracia, é estimular as redes clientelísticas que envolvem as classes privilegiadas brancas crioulas e esquecer da abominável segregação social e racial, do estado de miséria no qual os negros subexistem, acometidos pela fome e epidemias, confinados em guetos, favelas, musseques.

Num certo sentido, é lamentável que Mia Couto seja o escritor africano mais lido e reconhecido no Brasil, um país que, assim como o continente africano, sofreu e sofre as mazelas da escravidão. Mia Couto não é um autor africano. Mia Couto é a herança do tão nefasto colonialismo – colonialismo português que, se não o mais cruel, na medida em que é cabível tal comparação, ainda sob a sombra da ditadura salazarista, o mais persistente. O fato de Mia Couto ter nascido na África não o faz um africano. Mia Couto continua sendo um escritor branco, português, europeu, que escreve em uma língua europeia, a língua do invasor.

Portanto, não é motivo nenhum de orgulho para o negro africano suplicar a generosa aprovação de entidades e instituições europeias, como realçou, pasmem, a Revista Raça (versão digital), que, em artigo publicado, enaltece, em comparação com os latinos americanos, a maior quantidade de africanos laureados com o Nobel, premiação concedida pela loiríssima e nórdica Academia Sueca, em colaboração com seus irmãos vikings noruegueses. Afinal, quem estabelece os critérios sobre o mérito de qualquer coisa? Por que são sempre os de cima, os brancos, “civilizados”, ocidentais, que dizem o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim, bonito ou feio etc., cabendo a nós apenas abaixar a cabeça e dizer: “Sim, senhor, obrigado”? (Em que pese novamente a ambiguidade do senhor).

Fico pensando se o Nobel teria tanta importância se sua sede ficasse em Djibuti – sim, país africano que você provavelmente nunca ouviu falar e que, com quase 100% de certeza, não será o destino de sua próxima viajem de férias para o exterior.

A propósito, não deixa de ser coisa de branco que, ironias à parte, o mais aclamado prêmio da paz tenha sido uma ideia do homem que inventou a dinamite. Barack Obama, negro e prêmio Nobel da Paz, assim como Mandela, foi o único presidente dos EUA a completar oito anos de mandato em guerra permanente e ininterrupta – no Iraque, no Afeganistão e na Líbia.

Bomba! Eis a missão civilizatória do Nobel da Paz!

A verdade é que as maiores tragédias de guerra, em todos os tempos, foram provocadas pela sanha sanguinolenta das nações europeias em sua busca eterna por poder, lucro e riqueza. Mas os países do terceiro mundo devem se comportar muito bem e fazer direitinho o seu dever de casa, sempre procurando a paz e da amizade entre as nações!

Aliás, o Premio Nobel da Paz deve ser uma espécie de cota de inclusão para negros e nãoeuropeus ou mesmo um prêmio tal como o “funcionário do mês”, distinção concedida por lanchonetes fast-food e hipermercados que superexploram seus trabalhadores.

O Nobel da Paz é um prêmio político, homenageia homens práticos. Mas o trabalho intelectual, em que pese a política evolvida na escolha dos laureados, segue a antiga divisão do trabalho. Dos quatro prêmios de literatura e cinco de medicina e química, apenas o poeta Wole Soyinka é negro, todos os outros homenageados são, no mínimo, digamos assim, caucasianos.

Esperar de joelhos o reconhecimento e a anuência daqueles que exploraram toda a riqueza do continente africano (e latino-americano), cometeram genocídio e pouco ofereceram aos habitantes que penaram em sua mão de ferro é uma atitude vil e que só reforça um caráter subserviente, assim como Peri, que lutava e matava outros índios.

Que me desculpem o desabafo, mas a literatura africana merecia mais Limas Barretos e menos Mias Coutos.

(A receita vale também para a literatura brasileira: mais Lima Barreto, menos Machado de Assis).

Nota: O artigo da Revista Raça é tão chapa branca que erra o nome do prêmio Nobel Aaron Klug, chamando-o por duas vezes de “Aaron Klub”, e do Nobel Ahmed Zewail, chamando-o "Ahmad Zuail". (Tirei print).

Para finalizar, hoje é dia da Consciência Negra e para não fugir da polêmica, aí vai a relação dos vencedores africanos do Nobel de literatura, medicina e química, tão festejados pela Revista Raça. Só que, lamentavelmente, Soyinka foi barrado pelos algoritmos cibernéticos e não foi permitida sua entrada na lista.
Nobel Literatura
Nadine Gordimer, Nobel Literatura

Nobel Literatura
John Coetzee, Nobel Literatura

Nobel Literatura
Naguib Mahfouz, Nobel Literatura

Nobel de medicina
Max Theiler, Nobel Medicina

Nobel Medicina
Sydney Brenner, Nobel Medicina

Nobel de Química
Ahmed Zewail, Nobel Química

Nobel de química
Aaron Klug, Nobel Química


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