Por Abikanile Abla Mkali
O objetivo deste breve
artigo não é questionar os méritos literários indubitáveis de um escritor como
Mia Couto, mas, sim, questionar até que ponto é legítimo considerar escritores
brancos como representantes de uma africanidade e, num sentido mais amplo, se a
literatura é uma expressão genuína da cultura africana ou se é mais uma
manifestação da tutela intelectual imposta pela cultura europeia, ainda tão
presente no continente africano, e cujas raízes remontam ao processo de
colonização da África.
Esta questão é um tabu e
desafia a hipocrisia reinante. Até mesmo na universidade, supostamente espaço
da crítica e do livre pensamento, o silêncio é ensurdecedor. Professores de
literatura africana, geralmente brancos, nunca tocam no problema da negritude
dos autores africanos, como se as letras não tivessem cor e a arte e a ciência
pairassem incólumes sobre as picuinhas humanas. Paralelamente, multiplicam-se
pesquisas em torno de temas referentes ao negro, como hip-pop, grafite,
pichação, funk, periferia etc. Porém, a chancela teórica destes trabalhos é
toda importada da Europa, principalmente, Alemanha e França. Autores da moda
como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Pierre Bourdieu e até Nietzsche
avalizam estudos e, supostamente, elucidam temáticas como, por exemplo, a os
quilombolas no interior da Bahia. Simplesmente, bizarro!
Em que pese as
circunstâncias em que dificilmente um professor universitário, de pele branca,
sofra algum tipo de discriminação social, o fato é que, bem abaixo do castelo
construído sobre nuvens, que se tornou a universidade, o mundo real é muito mais
tumultuado do que as brilhantes abstrações e engenhosas sacadas de filósofos
alemães. Produzir teses e mais teses para não serem lidas é um completo absurdo
e só mostra o grau de alienação em que se encontra a universidade no Brasil. Somente
a crítica e autocrítica poderiam romper este estado de coisas, algo que parece
impossível na impermeável corporação universitária.
Se a literatura realmente
serviu aos propósitos do nacionalismo europeu, principalmente, com o
romantismo, também serviu aos propósitos da dominação colonialista. Na
literatura brasileira, o marco é, obviamente, o romance O Guarani, de José de Alencar, escritor branco e defensor ferrenho
da escravidão. O seu personagem Peri, arquétipo romântico das inconvenientes
origens de uma “nacionalidade brasileira”, não passa de um Hércules da servidão
voluntária. Solitário em seu mundo, Peri é, com todas as letras, a encarnação do
bom selvagem, “vagando nas florestas,
sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra, (...) sujeito a poucas
paixões e bastando-se a si mesmo” (Rousseau). Imaculado dos pecados da
sociedade, Peri devota uma lealdade canina a Cecília, mulher branca, filha de colonos
portugueses, para quem dirigir um tímido olhar voluptuoso seria por si só sacrilégio,
já que este ídolo sagrado de seu amor ascético, personificação da imagem de
Nossa Senhora (em que pese a ambiguidade do “senhora”), é, para ele, prova
intuitiva da cultura superior detentora da fé verdadeira que lhe inspira.
Somente por força da maldade do mundo, esse jesuíta disfarçado de índio é
expulso do Paraíso e levado involuntariamente a ceder à tentação do fruto
proibido, tão longa e amargamente reprimida, algo que nunca é dito, somente
subtendido, em um epílogo apoteótico, quando as cortinas se fecham e as luzes
se apagam. Diante das exigências do romantismo, José de Alencar criou um
eufemismo para o mito fundador brasileiro para lá de idealizado, mas, apesar de
todas as concessões, o literato antiabolicionista não reconheceu o elemento
africano como formador da identidade nacional.
De fato, o romantismo no
Brasil levou às últimas consequências o simulacro do “índio”, enquanto instrumento
ideológico de dominação transfigurado pela tradição cultural invasora em
símbolo nacional, oco e vazio. O índio de verdade, de carne e osso, este foi
praticamente dizimado pela guerra de extermínio colonial, restando aos poucos
indivíduos que sobreviveram a humilhante situação de bater na porta das corruptas
instituições brasileiras forjadas pelo torno europeu e implorar migalhas e
favores.
Na África, não foi
diferente. Toda a riquíssima cultura africana, transmitida, diga-se de
passagem, pela tradição oral, só pôde ganhar estatuto de cidadania sob o
beneplácito do jugo do colonizador. Ou seja, somente pela metamorfose da essência
nativa em figurino europeu, os povos nãoeuropeus puderam aspirar ao status
jurídico de “cidadão livres e iguais”.
Assim sendo, a literatura é
reflexo, tanto aqui, como lá, da segregação social, político e econômico,
entranhada até a medula na sociedade pós-colonial de mentalidade escravocrata.
Índios e africanos, das mais diversas etnias, foram escravizados, roubados,
sequestrados, violentados, estuprados, espoliados, assassinados, desumanizados
e, por fim, descartados, jogados no lixo. Lá, como aqui, a elite branca, de
origem europeia, ocupou todas as posições de prestígio – seja artístico, político,
econômico etc. –, apoderou-se de todos os espaços do topo da hierarquia social
e relegou à maioria negra, indígena e mestiça o papel coadjuvante de fornecedores
de serviços e mão de obra barata, cada vez mais sem direitos.
Historicamente, nos termos da
divisão internacional de trabalho, o continente africano abasteceu a economia
mercantilista com trabalho escravo. A partir do momento em que a escravidão se
tornou um empecilho para o desenvolvimento do capitalismo industrial, navios
negreiros eram afundados pela poderosa esquadra naval inglesa, que pouco se
importava com as centenas de vítimas acorrentadas nos porões das embarcações
levadas a pique e que, talvez, teriam melhor sorte se fossem vendidos como
reles mercadoria no leilão de escravos – pelo menos prolongaria suas vidas por
mais uns cinco anos, tempo de vida útil de um escravo. Durante a corrida
neocolonialista do século XIX, a África foi esquartejada, dividida, fragmentada,
territórios foram desenhados ao bel prazer do imperialista europeu, que
expropriou recursos naturais e explorou a preço vil a força de trabalho da
população nativa. Com o movimento de descolonização em meados do século XX, os
novos países africanos foram obrigados a aceitar as divisões artificiais
legadas pela geopolítica europeia e introduzir em seu repertório cultural
noções estranhas à sua tradição, como o conceito de Estado-nação, o que gerou
ódio e conflitos catastróficos entre as diversas etnias por décadas e mais
décadas.
Assim, como ler a literatura
africana sem críticas? Se já não fosse demasiado humilhante a um artista negro
africano acatar as imposições culturais do povo opressor, o que dirá então de
um escritor branco ser alçado à condição de arauto do povo que foi vilipendiado
justamente por esse mesmo invasor branco?
Ora, quais os limites do
escárnio, da ofensa, da perversidade? Para cada branco medíocre prestigiado,
mil negros talentosos são preteridos, esquecidos, marginalizados. Apagar ou
atenuar os efeitos maléficos do apartheid social e econômico, hoje velado, mas
vigorando a todo vapor na África negra, em nome de uma suposta meritocracia, é
estimular as redes clientelísticas que envolvem as classes privilegiadas
brancas crioulas e esquecer da abominável segregação social e racial, do estado de
miséria no qual os negros subexistem, acometidos pela fome e epidemias,
confinados em guetos, favelas, musseques.
Num certo sentido, é lamentável
que Mia Couto seja o escritor africano mais lido e reconhecido no Brasil, um
país que, assim como o continente africano, sofreu e sofre as mazelas da
escravidão. Mia Couto não é um autor africano. Mia Couto é a herança do tão
nefasto colonialismo – colonialismo português que, se não o mais cruel, na
medida em que é cabível tal comparação, ainda sob a sombra da ditadura
salazarista, o mais persistente. O fato de Mia Couto ter nascido na África não
o faz um africano. Mia Couto continua sendo um escritor branco, português,
europeu, que escreve em uma língua europeia, a língua do invasor.
Portanto, não é motivo
nenhum de orgulho para o negro africano suplicar a generosa aprovação de
entidades e instituições europeias, como realçou, pasmem, a Revista Raça
(versão digital), que, em artigo publicado, enaltece, em comparação com os latinos
americanos, a maior quantidade de africanos laureados com o Nobel, premiação
concedida pela loiríssima e nórdica Academia Sueca, em colaboração com seus
irmãos vikings noruegueses. Afinal, quem estabelece os critérios sobre o mérito
de qualquer coisa? Por que são sempre os de cima, os brancos, “civilizados”,
ocidentais, que dizem o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim, bonito ou
feio etc., cabendo a nós apenas abaixar a cabeça e dizer: “Sim, senhor,
obrigado”? (Em que pese novamente a ambiguidade do senhor).
Fico pensando se o Nobel
teria tanta importância se sua sede ficasse em Djibuti – sim, país africano que
você provavelmente nunca ouviu falar e que, com quase 100% de certeza, não será
o destino de sua próxima viajem de férias para o exterior.
A propósito, não deixa de ser coisa de branco que, ironias à
parte, o mais aclamado prêmio da paz tenha sido uma ideia do homem que inventou
a dinamite. Barack Obama, negro e prêmio Nobel da Paz, assim como Mandela, foi
o único presidente dos EUA a completar oito anos de mandato em guerra
permanente e ininterrupta – no Iraque, no Afeganistão e na Líbia.
Bomba! Eis a missão
civilizatória do Nobel da Paz!
A verdade é que as maiores
tragédias de guerra, em todos os tempos, foram provocadas pela sanha
sanguinolenta das nações europeias em sua busca eterna por poder, lucro e
riqueza. Mas os países do terceiro mundo devem se comportar muito bem e fazer
direitinho o seu dever de casa, sempre procurando a paz e da amizade entre as
nações!
Aliás, o Premio Nobel da Paz
deve ser uma espécie de cota de inclusão para negros e nãoeuropeus ou mesmo um
prêmio tal como o “funcionário do mês”, distinção concedida por lanchonetes
fast-food e hipermercados que superexploram seus trabalhadores.
O Nobel da Paz é um prêmio
político, homenageia homens práticos. Mas o trabalho intelectual, em que pese a
política evolvida na escolha dos laureados, segue a antiga divisão do trabalho.
Dos quatro prêmios de literatura e cinco de medicina e química, apenas o poeta
Wole Soyinka é negro, todos os outros homenageados são, no mínimo, digamos
assim, caucasianos.
Esperar de joelhos o
reconhecimento e a anuência daqueles que exploraram toda a riqueza do
continente africano (e latino-americano), cometeram genocídio e pouco
ofereceram aos habitantes que penaram em sua mão de ferro é uma atitude vil e
que só reforça um caráter subserviente, assim como Peri, que lutava e matava
outros índios.
Que me desculpem o desabafo,
mas a literatura africana merecia mais Limas Barretos e menos Mias Coutos.
(A receita vale também para
a literatura brasileira: mais Lima Barreto, menos Machado de Assis).
Nota: O
artigo da Revista Raça é tão chapa branca que erra o nome do prêmio Nobel Aaron
Klug, chamando-o por duas vezes de “Aaron Klub”, e do Nobel Ahmed Zewail, chamando-o "Ahmad Zuail". (Tirei print).
Para finalizar, hoje é dia
da Consciência Negra e para não fugir da polêmica, aí vai a relação dos
vencedores africanos do Nobel de literatura, medicina e química, tão festejados
pela Revista Raça. Só que, lamentavelmente, Soyinka foi barrado pelos algoritmos
cibernéticos e não foi permitida sua entrada na lista.
Nadine Gordimer, Nobel Literatura |
John Coetzee, Nobel Literatura |
Naguib Mahfouz, Nobel Literatura |
Max Theiler, Nobel Medicina |
Sydney Brenner, Nobel Medicina |
Ahmed Zewail, Nobel Química |
Aaron Klug, Nobel Química |
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