Por Zarina Monti Airumã
A
posse da ministra Carmem Lúcia ao posto da presidência do supremo tribunal
federal gerou polêmica nas redes sociais. Isso porque ao ser interrogada sobre
qual forma verbal gostaria de ser chamada, presidenta ou presidente, a ministra
respondeu com empáfia: “Eu fui estudante e sou amante da língua portuguesa e
acho que o cargo é de presidente, não é não?” Ato contínuo, a figura mais
bizarra daquele “egrégio tribunal” (Nota 1), Gilmar Mendes, emendou: “Ontem até
dizem que teve uma presidenta inocenta”.
(Nota
1: As aspas em “egrégio tribunal” não é porque acredito que a suprema côrte é
um instrumento de justiça, mas que o judiciário brasileiro, por seu
protagonismo político, pôs por terra, de uma vez por todas aqui no Brasil, a
teoria dos três poderes de Montesquieu).
Após
a declaração infeliz da presidente do stf Carmem Lúcia, houve uma enxurrada de
comentários de internautas em fóruns de discussão que expunham, um atrás do
outro, inúmeros registros da palavra presidenta em textos que iam desde Machado
de Assis a Camilo Castelo Branco.
Já
os fascistas, que exibem orgulhosamente uma ignorância atroz, embora se creem
muito cultos (!!!), como era de se esperar, rejubilaram com a ministra.
Tal
episódio, que poderia passar por trivial, esconde uma questão muito mais
profunda do que parece.
Ao
aproximarmos superficialmente da questão, a declaração de Carmem Lúcia
demonstra, a princípio, que ela teria corrigido tardiamente Dilma Rousseff
quando esta, ao ser eleita ao cargo da presidência da república, optou por ser
chamada de presidenta, assim mesmo, no feminino.
Atravessando
a superfície, numa análise mais detida da frase da atual presidente do stf,
duas coisas sobressaem: primeiro, que ela, Carmem Lúcia, foi estudante (verbo
no passado) e não é mais; e, segundo, que a ministra é uma amante bem infiel da
língua portuguesa. Pois, além de manifestar uma visão simplista sobre a
linguagem, rigorosamente, presidente não é cargo mas, sim, que preside
[adjetivo] ou título [substantivo] de quem exerce o cargo da presidência. Como
então o cargo não é presidente e, sim, função de quem preside, não acarretaria
maiores constrangimentos dizer cargo de presidenta. Em o “cargo é de
presidente”, o substantivo presidente está no genitivo regido pela preposição
de antecedida pelo verbo ser, por significar possuidor do cargo. Logo, o cargo
(é do ou é da) pertence ao presidente ou à presidenta. Pois é, ministra, achou
errado!
Quanto
a intervenção de Gilmar Mendes, vale o velho ditado: insistir em um erro é
burrice.
Afora
os deslizes gramaticais, se o cargo é de presidente, a mulher que o ocupa é,
evidentemente, a presidenta.
De
fato, a palavra presidenta é recorrente, na língua portuguesa, desde pelo menos
o início do século XIX. (Ver referências no fim do texto). No francês, no
espanhol e no galego, muito antes disso.
Se,
no entanto, os anos de 1800 pareçam relativamente recentes, é bom lembrar que a
generalização da palavra presidente como chefe de Estado também é recente.
Data, obviamente, da vigência do presidencialismo.
A
origem é latina e literalmente significa “estar à frente”. Os romanos, a partir
da era cristã, utilizavam-na para designar genericamente governante de
província ou outras funções na magistratura. Na república de Veneza, o vocábulo
ganhou vitalidade, mas só a partir da independência dos EUA, no século XVIII, a
partir de uma releitura idealizada da frugalidade romana, tornou-se de uso
corrente o sentido supracitado.
(A
título de curiosidade, o Dicionário de Etimologia da Língua Portuguesa Pedro
Machado registra do ano de 1457, “calisto terceiro era presidente na Ygreja”,
Desc. I, p. 545; e “havendo quinze anos, um mês e sete dias que presidia na
Igreja de Deus”, Frei Bernardo de Brito, Monarquia Lusitana VI, cap. II, século
XVI. “Presidência” data do século XVII. Ao que parece, o termo no português era
empregado no jargão eclesiástico, para se referir ao papado).
Mas
se para nós a palavra presidente no feminino causa estranheza, o que não
ocorreria o mesmo com a palavra governanta, é porque o contexto social até os
dias de hoje impediu a mulher de ocupar funções de liderança, como a
presidência de qualquer coisa.
Isso
porque a linguagem é um reflexo da composição social. Governanta, no caso, era
uma funcionária que se empregava numa casa de família para educar crianças.
Governante é o chefe de Estado, o mandatário, o comandante etc. O significante
é o mesmo, mas o conteúdo ideologicamente distinto.
A
mulher, nas sociedade patriarcais, sempre ocupou posições inferiores,
geralmente ligadas a tarefas domésticas. Portanto, o respectivo contexto
sociológico sempre determinou as distinções de gênero em sociedade, relegando
aos escalões inferiores a condição da mulher, refletindo na linguagem, que foi
forjada com o selo masculino. A neutralidade da linguagem, por isso, dissimula
uma ideologia fortemente machista, de séculos e mais séculos de violência,
dominação e opressão.
Ora,
em um mundo em que até bem pouco tempo as mulheres tiveram de se organizar e
lutar por seus direito, como sufrágio universal, ou seja, conquistar o direito
de votar em um presidente (!!!), o grande equívoco foi acreditar que a
presidenta Dilma Rousseff teria inventado um neologismo, criado para marcar o
ineditismo do fato de uma mulher se tornar autoridade máxima da república.
No
Brasil, por exemplo, dos 36 presidentes, apenas um é mulher: Dilma Rousseff.
(Nota-se a desinência masculina marcando coletividade ou sempre dissimulada
pela neutralidade). Assim, como a palavra presidenta poderia soar bem aos
ouvidos acostumados a ouvir palavras denominando homens sempre mandando em
tudo? Como poderia a palavra presidenta ser de uso disseminado se, até bem
pouco tempo atrás, as mulheres sequer podiam votar?
Mas,
ainda que presidenta fosse um neologismo, seria extremamente justificável a
novidade ortográfica, e a recusa em chamá-la pelo termo, apoiando-se numa
suposta ortodoxia, por parte de setores reacionários, indica apenas uma
tendência social refratária a mudanças.
Ainda
assim, muitos saíram em defesa da presidente do supremo tribunal, argumentando
que o stf não era ambiente para experiencialismos linguísticos, como o uso de
neologismos. (Como se aquele ambiente fosse uma casa respeitável!)
Nada
mais falacioso.
Ora,
em termos rigorosos, qual palavra da língua portuguesa não é neologismo? Ou
alguém acredita em um etéreo mundo das ideias de palavras e regras gramaticais
puras, eternas, e imutáveis?
Na
verdade, como é bem sabido, a língua portuguesa é, como todas as línguas
neolatinas, derivada do latim vulgar, isto é, o latim mal falado, popular,
contaminado por barbarismos e estrangeirismos, e de maneira alguma é a flor do
Lácio; é um de seus filhos bastardos.
Toda
a língua tem uma natureza plástica, contraditória, mutável. Se não fosse assim,
os europeus e os indianos ainda falariam o mesmo idioma, o indo-europeu.
A
língua portuguesa não é diferente. Ela se transformou, ao longo do tempo
(diacronia), está em constante variação (sincronia) e será uma língua distinta
no futuro. Tal fenômeno é bem conhecido entre os linguistas e é inevitável.
Mas
não é preciso ir tão longe. O neologismo “você”, por exemplo, formado por
aglutinação do pronome de tratamento “vossa mercê”, hoje é tão “natural” que nenhum
gramático, por mais purista ou saudosista que seja, interditaria o seu uso sob
pena de cometer erro gravíssimo.
Portanto,
a norma culta é uma ficção. Um arquétipo que só encontra respaldo nos livros de
gramática. Funciona como um lastro e, de certa forma, como um segregador social
quando alguma circunstância obriga o seu uso, geralmente restrito à escrita, em
provas de concurso público, editoras etc.
No
dia a dia, entretanto, assim como no trânsito, ninguém respeita as regras
(gramaticais). Porém, diferentemente do trânsito, onde as infrações das normas
podem acarretar acidentes gravíssimos, o estrito cumprimento da gramática
normativa inviabilizaria a plena fluência da comunicação, já que a fala é
regida por outras leis.
Há,
sem dúvida, um descompasso entre a gramática e a língua viva. Aquela sempre
chega atrasada e de tempos em tempos tem de ser atualizada, ou melhor,
corrigida pelo uso coloquial!
Um
caso clássico disso foi imortalizado por Oswald de Andrade no poema Pronomiais:
“Dê-me um cigarro; Diz a gramática; do professor e do aluno; E do mulato
sabido; Mas o bom negro e o bom branco; Da nação brasileira; Dizem todos os
dias; Deixa disso camarada; Me dá um cigarro”. Hoje, a gramática se rendeu ao
uso vulgar e consagrou como correto a colocação pronominal um tanto
idiossincrática do brasileiro, que outrora ou em terra lusitana seria pecado
gramatical (Nota 2).
(Nota
2: O referido pronome de tratamento “você” também foi assimilado normativamente
pela gramática portuguesa, embora no português brasileiro ocasionou um grande
estrago, com a supressão da segunda pessoa, bem como sua respectiva conjugação
verbal, que caiu em desuso, a desestabilização dos demonstrativos “este” e
“esse” etc.).
Aliás,
um dos primeiros exercícios do curso de linguística é mostrar como os
defensores da norma culta cometem erros grosseiros de português. Os exemplos
são numerosos. Tais exercícios, além de proporcionar boas gargalhadas em sala
de aula, é uma espécie de batismo de fogo para os estudantes, que são alertados
a atentarem para a complexidade da língua, de evitar preconceitos linguísticos,
eivados por questões de classe social, regionais, de gênero etc.
Mas
o que subjaz toda esta discussão, no entanto, é uma questão política e não
linguística.
Quando
Dilma Rousseff foi eleita, ela procurou no vernáculo (e encontrou) uma
designação que melhor qualificava o fato, inédito no Brasil, de um mulher
comandar a presidência da república. Tal ato estava repleto de simbolismo,
demarcava o empoderamento da mulher em posições tradicionalmente reservadas a
homens.
A
palavra presidenta, então, virou questão de honra para os conservadores. Estes
sempre demonstraram má vontade e recusa em atender o pedido da presidenta.
(Jamais tiveram a delicadeza de um Lewandowski). Chamavam-na reiteradamente de
presidente, numa clara atitude provocativa e afrontosa. Mais do que um
representante dos Partidos dos Trabalhadores, o que lhes causava ojeriza era o
fato de uma mulher chegar ao poder.
Por
isso, Carmem Lúcia ao optar pela forma supostamente neutra, no entanto,
carregada de sentidos implícitos machistas, escreveu mais uma passagem
vergonhosa, dentre muitas, na anedótica história brasileira, fazendo jus ao
complô de conspiradores golpistas que, ao assaltarem o poder, rebaixaram todas
as mulheres (e negros também) a cargos de segundo escalão no governo.
Carmem
Lúcia abdicou de sua condição de mulher.
Ao
querer de modo sutil humilhar Dilma, a ministra acabou por patentear
solenemente toda a sua mediocridade. Com seu cinismo maldoso, apenas exibiu a
prepotência dos tolos.
Dilma
passou incólume pelo escândalo de corrupção que atingiu todos os partidos,
inclusive o Partido dos Trabalhadores. Ela se tornou um incômodo para a classe
política. Foi vítima de um pacto nacional pela corrupção que envolveu os três
poderes, todas as instituições brasileiras, os setores empresariais e a própria
sociedade.
As
manifestações e os panelaços não eram, afinal, contra a corrupção; eram contra
a corrupção de um partido, contra um projeto de poder de longa duração, contra
a “ditadura comunista”, contra a “revolução bolivariana”, contra o Foro de São
Paulo, contra a PEC das domésticas etc., etc., etc.
A
missão dos usurpadores foi trazer de volta a paz dos corruptos. A sociedade
civil, numa atitude cúmplice, de quem também age nas sombras, se comportou como
o avestruz, que põe a cabeça dentro de um buraco para não ver o perigo.
A
estrutura social do Brasil mais parece com a do Ancien Régime. Os ricos e
poderosos isolados do resto do povo, numa espécie de Palácio de Versalhes de
cristal, inventaram um Estado que é um Leviatã às avessas.
Antes
de terminar, gostaria de mencionar que o radical da palavra ministro vem da
palavra latina “mininus”, isto é, pequeno, parvo, menor.
A
associação fortuita do nome de Carmen Lucia ao do grande escritor Machado de
Assis é a maior glória que poderia ter sido alcançada pela atual presidente do
stf, ainda que tal associação abra um abismo entre eles e revele a monumental
pequenez da ministra.
Num
país em que Josés Dias são elevados à categoria de sumidades intelectuais (vide
FHC), não é difícil de entender MINIstros como Carmem Lúcia.
Carmem
Lúcia ou Machado de Assis é uma questão de escolha. É uma decisão cultural e ao
mesmo tempo política, entre o retrocesso e os avanços sociais. Eu fico com
Machado de Assis. Mas também com Clarice Lispector, Virginia Woolf, Simone de
Beauvoir, Laura Esquivel, Emily Brontë, etc. ,etc., etc.
Em
tempo: numa pesquisa rápida na internet, separei alguns registros de
presidenta. Todos estão linkados e podem ser encontrados nos seguintes sites:
“Discórdia Gramatical” (excelentes artigos) e “dicionarioegramatica.com” (um
prato cheio para que gosta de estudar a língua portuguesa):
Diccionario
portatil portuguez-frances e francez-portuguez (1812), de Domingos Borges de
Barros, diplomata e senador brasileiro (p. 347): Presidenta, s.f. président.
Gazeta
de Lisboa registra, numa edição de 1818: uma corveta chamada “Presidenta”.
Historias
de meninos para quem não for creança, de António Lobo de Barbosa Ferreira
Teixeira (1835), faz menção a uma marquesa como “presidenta”:
Otim
literario em fórma de soliloquios, de José Agostinho de Macedo, tomo III (1841):
“(...) e a presidenta das gritadoras da escólas de Athenas…”
Revista
Popular de Lisboa (1851) também se referia à “presidenta” de uma reunião.
Archivo
pittoresco (1858), jornal de Lisboa:
“Como presidenta ia a madre Maria Espírito Santo (...)”
Dicionário
Caldas Aulete (1881) de Antônio Feliciano de Castilho.
Tradução
da obra As Sabichonas (Les Femmes Savantes), do dramaturgo francês Molière, por
meio do escritor português Antonio Feliciano de Castilho, em 1872: “Mais
gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às
minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153);
“Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230).
Dicionário
de Português-Alemão de Michaëlis (1876).
O
Universo Ilustrado (1878) menciona “presidenta”.
Anos
depois, no Brasil, Machado de Assis utilizaria o vocábulo em Memórias Póstumas
de Brás Cubas(publicada pela primeira vez em 1881): “Na verdade, um presidente,
uma presidenta, um secretário, era resolver as cousas de um modo
administrativo”.
Dicionário
Cândido de Figueiredo (1899): "Presidenta, f. (neol.) mulher que preside;
mulher de um presidente. (Fem. de presidente.)"
Vocabulário
oficial da língua portuguesa, elaborado em 1912 por Gonçalves Viana.
Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras desde
a sua primeira edição, em 1932; no Dicionário da Academia Brasileira de Letras;
e estava já no primeiro Vocabulário Ortográfico sancionado pela Academia de Lisboa,
de Portugal, em 1912 (o vocabulário integral pode ser acessado aqui).
Vocabulário
do português por Rebelo Gonçalves (1966).
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