domingo, 30 de outubro de 2016

Presidenta ou presidente? Gênero não pode ser neologismo

Por Zarina Monti Airumã

A posse da ministra Carmem Lúcia ao posto da presidência do supremo tribunal federal gerou polêmica nas redes sociais. Isso porque ao ser interrogada sobre qual forma verbal gostaria de ser chamada, presidenta ou presidente, a ministra respondeu com empáfia: “Eu fui estudante e sou amante da língua portuguesa e acho que o cargo é de presidente, não é não?” Ato contínuo, a figura mais bizarra daquele “egrégio tribunal” (Nota 1), Gilmar Mendes, emendou: “Ontem até dizem que teve uma presidenta inocenta”.

(Nota 1: As aspas em “egrégio tribunal” não é porque acredito que a suprema côrte é um instrumento de justiça, mas que o judiciário brasileiro, por seu protagonismo político, pôs por terra, de uma vez por todas aqui no Brasil, a teoria dos três poderes de Montesquieu).

Após a declaração infeliz da presidente do stf Carmem Lúcia, houve uma enxurrada de comentários de internautas em fóruns de discussão que expunham, um atrás do outro, inúmeros registros da palavra presidenta em textos que iam desde Machado de Assis a Camilo Castelo Branco.

Já os fascistas, que exibem orgulhosamente uma ignorância atroz, embora se creem muito cultos (!!!), como era de se esperar, rejubilaram com a ministra.

Tal episódio, que poderia passar por trivial, esconde uma questão muito mais profunda do que parece.

Ao aproximarmos superficialmente da questão, a declaração de Carmem Lúcia demonstra, a princípio, que ela teria corrigido tardiamente Dilma Rousseff quando esta, ao ser eleita ao cargo da presidência da república, optou por ser chamada de presidenta, assim mesmo, no feminino.

Atravessando a superfície, numa análise mais detida da frase da atual presidente do stf, duas coisas sobressaem: primeiro, que ela, Carmem Lúcia, foi estudante (verbo no passado) e não é mais; e, segundo, que a ministra é uma amante bem infiel da língua portuguesa. Pois, além de manifestar uma visão simplista sobre a linguagem, rigorosamente, presidente não é cargo mas, sim, que preside [adjetivo] ou título [substantivo] de quem exerce o cargo da presidência. Como então o cargo não é presidente e, sim, função de quem preside, não acarretaria maiores constrangimentos dizer cargo de presidenta. Em o “cargo é de presidente”, o substantivo presidente está no genitivo regido pela preposição de antecedida pelo verbo ser, por significar possuidor do cargo. Logo, o cargo (é do ou é da) pertence ao presidente ou à presidenta. Pois é, ministra, achou errado!

Quanto a intervenção de Gilmar Mendes, vale o velho ditado: insistir em um erro é burrice.

Afora os deslizes gramaticais, se o cargo é de presidente, a mulher que o ocupa é, evidentemente, a presidenta.

De fato, a palavra presidenta é recorrente, na língua portuguesa, desde pelo menos o início do século XIX. (Ver referências no fim do texto). No francês, no espanhol e no galego, muito antes disso.

Se, no entanto, os anos de 1800 pareçam relativamente recentes, é bom lembrar que a generalização da palavra presidente como chefe de Estado também é recente. Data, obviamente, da vigência do presidencialismo.

A origem é latina e literalmente significa “estar à frente”. Os romanos, a partir da era cristã, utilizavam-na para designar genericamente governante de província ou outras funções na magistratura. Na república de Veneza, o vocábulo ganhou vitalidade, mas só a partir da independência dos EUA, no século XVIII, a partir de uma releitura idealizada da frugalidade romana, tornou-se de uso corrente o sentido supracitado.

(A título de curiosidade, o Dicionário de Etimologia da Língua Portuguesa Pedro Machado registra do ano de 1457, “calisto terceiro era presidente na Ygreja”, Desc. I, p. 545; e “havendo quinze anos, um mês e sete dias que presidia na Igreja de Deus”, Frei Bernardo de Brito, Monarquia Lusitana VI, cap. II, século XVI. “Presidência” data do século XVII. Ao que parece, o termo no português era empregado no jargão eclesiástico, para se referir ao papado).

Mas se para nós a palavra presidente no feminino causa estranheza, o que não ocorreria o mesmo com a palavra governanta, é porque o contexto social até os dias de hoje impediu a mulher de ocupar funções de liderança, como a presidência de qualquer coisa.

Isso porque a linguagem é um reflexo da composição social. Governanta, no caso, era uma funcionária que se empregava numa casa de família para educar crianças. Governante é o chefe de Estado, o mandatário, o comandante etc. O significante é o mesmo, mas o conteúdo ideologicamente distinto.

A mulher, nas sociedade patriarcais, sempre ocupou posições inferiores, geralmente ligadas a tarefas domésticas. Portanto, o respectivo contexto sociológico sempre determinou as distinções de gênero em sociedade, relegando aos escalões inferiores a condição da mulher, refletindo na linguagem, que foi forjada com o selo masculino. A neutralidade da linguagem, por isso, dissimula uma ideologia fortemente machista, de séculos e mais séculos de violência, dominação e opressão.

Ora, em um mundo em que até bem pouco tempo as mulheres tiveram de se organizar e lutar por seus direito, como sufrágio universal, ou seja, conquistar o direito de votar em um presidente (!!!), o grande equívoco foi acreditar que a presidenta Dilma Rousseff teria inventado um neologismo, criado para marcar o ineditismo do fato de uma mulher se tornar autoridade máxima da república.

No Brasil, por exemplo, dos 36 presidentes, apenas um é mulher: Dilma Rousseff. (Nota-se a desinência masculina marcando coletividade ou sempre dissimulada pela neutralidade). Assim, como a palavra presidenta poderia soar bem aos ouvidos acostumados a ouvir palavras denominando homens sempre mandando em tudo? Como poderia a palavra presidenta ser de uso disseminado se, até bem pouco tempo atrás, as mulheres sequer podiam votar?

Mas, ainda que presidenta fosse um neologismo, seria extremamente justificável a novidade ortográfica, e a recusa em chamá-la pelo termo, apoiando-se numa suposta ortodoxia, por parte de setores reacionários, indica apenas uma tendência social refratária a mudanças.

Ainda assim, muitos saíram em defesa da presidente do supremo tribunal, argumentando que o stf não era ambiente para experiencialismos linguísticos, como o uso de neologismos. (Como se aquele ambiente fosse uma casa respeitável!)

Nada mais falacioso.

Ora, em termos rigorosos, qual palavra da língua portuguesa não é neologismo? Ou alguém acredita em um etéreo mundo das ideias de palavras e regras gramaticais puras, eternas, e imutáveis?

Na verdade, como é bem sabido, a língua portuguesa é, como todas as línguas neolatinas, derivada do latim vulgar, isto é, o latim mal falado, popular, contaminado por barbarismos e estrangeirismos, e de maneira alguma é a flor do Lácio; é um de seus filhos bastardos.

Toda a língua tem uma natureza plástica, contraditória, mutável. Se não fosse assim, os europeus e os indianos ainda falariam o mesmo idioma, o indo-europeu.

A língua portuguesa não é diferente. Ela se transformou, ao longo do tempo (diacronia), está em constante variação (sincronia) e será uma língua distinta no futuro. Tal fenômeno é bem conhecido entre os linguistas e é inevitável.

Mas não é preciso ir tão longe. O neologismo “você”, por exemplo, formado por aglutinação do pronome de tratamento “vossa mercê”, hoje é tão “natural” que nenhum gramático, por mais purista ou saudosista que seja, interditaria o seu uso sob pena de cometer erro gravíssimo.

Portanto, a norma culta é uma ficção. Um arquétipo que só encontra respaldo nos livros de gramática. Funciona como um lastro e, de certa forma, como um segregador social quando alguma circunstância obriga o seu uso, geralmente restrito à escrita, em provas de concurso público, editoras etc.

No dia a dia, entretanto, assim como no trânsito, ninguém respeita as regras (gramaticais). Porém, diferentemente do trânsito, onde as infrações das normas podem acarretar acidentes gravíssimos, o estrito cumprimento da gramática normativa inviabilizaria a plena fluência da comunicação, já que a fala é regida por outras leis.

Há, sem dúvida, um descompasso entre a gramática e a língua viva. Aquela sempre chega atrasada e de tempos em tempos tem de ser atualizada, ou melhor, corrigida pelo uso coloquial!

Um caso clássico disso foi imortalizado por Oswald de Andrade no poema Pronomiais: “Dê-me um cigarro; Diz a gramática; do professor e do aluno; E do mulato sabido; Mas o bom negro e o bom branco; Da nação brasileira; Dizem todos os dias; Deixa disso camarada; Me dá um cigarro”. Hoje, a gramática se rendeu ao uso vulgar e consagrou como correto a colocação pronominal um tanto idiossincrática do brasileiro, que outrora ou em terra lusitana seria pecado gramatical (Nota 2).

(Nota 2: O referido pronome de tratamento “você” também foi assimilado normativamente pela gramática portuguesa, embora no português brasileiro ocasionou um grande estrago, com a supressão da segunda pessoa, bem como sua respectiva conjugação verbal, que caiu em desuso, a desestabilização dos demonstrativos “este” e “esse” etc.).

Aliás, um dos primeiros exercícios do curso de linguística é mostrar como os defensores da norma culta cometem erros grosseiros de português. Os exemplos são numerosos. Tais exercícios, além de proporcionar boas gargalhadas em sala de aula, é uma espécie de batismo de fogo para os estudantes, que são alertados a atentarem para a complexidade da língua, de evitar preconceitos linguísticos, eivados por questões de classe social, regionais, de gênero etc.

Mas o que subjaz toda esta discussão, no entanto, é uma questão política e não linguística.

Quando Dilma Rousseff foi eleita, ela procurou no vernáculo (e encontrou) uma designação que melhor qualificava o fato, inédito no Brasil, de um mulher comandar a presidência da república. Tal ato estava repleto de simbolismo, demarcava o empoderamento da mulher em posições tradicionalmente reservadas a homens.

A palavra presidenta, então, virou questão de honra para os conservadores. Estes sempre demonstraram má vontade e recusa em atender o pedido da presidenta. (Jamais tiveram a delicadeza de um Lewandowski). Chamavam-na reiteradamente de presidente, numa clara atitude provocativa e afrontosa. Mais do que um representante dos Partidos dos Trabalhadores, o que lhes causava ojeriza era o fato de uma mulher chegar ao poder.

Por isso, Carmem Lúcia ao optar pela forma supostamente neutra, no entanto, carregada de sentidos implícitos machistas, escreveu mais uma passagem vergonhosa, dentre muitas, na anedótica história brasileira, fazendo jus ao complô de conspiradores golpistas que, ao assaltarem o poder, rebaixaram todas as mulheres (e negros também) a cargos de segundo escalão no governo.

Carmem Lúcia abdicou de sua condição de mulher.

Ao querer de modo sutil humilhar Dilma, a ministra acabou por patentear solenemente toda a sua mediocridade. Com seu cinismo maldoso, apenas exibiu a prepotência dos tolos.

Dilma passou incólume pelo escândalo de corrupção que atingiu todos os partidos, inclusive o Partido dos Trabalhadores. Ela se tornou um incômodo para a classe política. Foi vítima de um pacto nacional pela corrupção que envolveu os três poderes, todas as instituições brasileiras, os setores empresariais e a própria sociedade.

As manifestações e os panelaços não eram, afinal, contra a corrupção; eram contra a corrupção de um partido, contra um projeto de poder de longa duração, contra a “ditadura comunista”, contra a “revolução bolivariana”, contra o Foro de São Paulo, contra a PEC das domésticas etc., etc., etc.

A missão dos usurpadores foi trazer de volta a paz dos corruptos. A sociedade civil, numa atitude cúmplice, de quem também age nas sombras, se comportou como o avestruz, que põe a cabeça dentro de um buraco para não ver o perigo.

A estrutura social do Brasil mais parece com a do Ancien Régime. Os ricos e poderosos isolados do resto do povo, numa espécie de Palácio de Versalhes de cristal, inventaram um Estado que é um Leviatã às avessas.

Antes de terminar, gostaria de mencionar que o radical da palavra ministro vem da palavra latina “mininus”, isto é, pequeno, parvo, menor.

A associação fortuita do nome de Carmen Lucia ao do grande escritor Machado de Assis é a maior glória que poderia ter sido alcançada pela atual presidente do stf, ainda que tal associação abra um abismo entre eles e revele a monumental pequenez da ministra.

Num país em que Josés Dias são elevados à categoria de sumidades intelectuais (vide FHC), não é difícil de entender MINIstros como Carmem Lúcia.

Carmem Lúcia ou Machado de Assis é uma questão de escolha. É uma decisão cultural e ao mesmo tempo política, entre o retrocesso e os avanços sociais. Eu fico com Machado de Assis. Mas também com Clarice Lispector, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Laura Esquivel, Emily Brontë, etc. ,etc., etc.

Em tempo: numa pesquisa rápida na internet, separei alguns registros de presidenta. Todos estão linkados e podem ser encontrados nos seguintes sites: “Discórdia Gramatical” (excelentes artigos) e “dicionarioegramatica.com” (um prato cheio para que gosta de estudar a língua portuguesa):

Diccionario portatil portuguez-frances e francez-portuguez (1812), de Domingos Borges de Barros, diplomata e senador brasileiro (p. 347): Presidenta, s.f. président.

Gazeta de Lisboa registra, numa edição de 1818: uma corveta chamada “Presidenta”.

Historias de meninos para quem não for creança, de António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira (1835), faz menção a uma marquesa como “presidenta”:

Otim literario em fórma de soliloquios, de José Agostinho de Macedo, tomo III (1841): “(...) e a presidenta das gritadoras da escólas de Athenas…”

Revista Popular de Lisboa (1851) também se referia à “presidenta” de uma reunião.

Archivo pittoresco  (1858), jornal de Lisboa: “Como presidenta ia a madre Maria Espírito Santo (...)”

Dicionário Caldas Aulete (1881) de Antônio Feliciano de Castilho.

Tradução da obra As Sabichonas (Les Femmes Savantes), do dramaturgo francês Molière, por meio do escritor português Antonio Feliciano de Castilho, em 1872: “Mais gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153); “Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230).

Dicionário de Português-Alemão de Michaëlis (1876).

O Universo Ilustrado (1878) menciona “presidenta”.

Anos depois, no Brasil, Machado de Assis utilizaria o vocábulo em Memórias Póstumas de Brás Cubas(publicada pela primeira vez em 1881): “Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as cousas de um modo administrativo”.

Dicionário Cândido de Figueiredo (1899): "Presidenta, f. (neol.) mulher que preside; mulher de um presidente. (Fem. de presidente.)"

Vocabulário oficial da língua portuguesa, elaborado em 1912 por Gonçalves Viana.

Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras desde a sua primeira edição, em 1932; no Dicionário da Academia Brasileira de Letras; e estava já no primeiro Vocabulário Ortográfico sancionado pela Academia de Lisboa, de Portugal, em 1912 (o vocabulário integral pode ser acessado aqui).

Vocabulário do português por Rebelo Gonçalves (1966).

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