por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
“Autopsicografia” é um dos poemas de Fernando Pessoa ele mesmo, isto é, não assinado pelos poetas personagens que ele criou, os célebres heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, mas, sim, pelo próprio autor (ortônimo).
Esta
distinção é importante para iniciar a análise do poema, pois “Autopsicografia”
é atribuído à pessoa do poeta
Fernando Pessoa sem máscaras, isto é, sem suas personas, que adquiriram autonomia e, digamos assim, vida própria.
Portanto,
“Autopsicografia” deveria ser bem revelador a respeito da personalidade do
autor dos poetas heterônimos. Talvez os versos do poema decifrassem o enigma da
pessoa que em sua criação poética se esquiva de uma apresentação de si para,
por fim, dizer algo de si através de outro – ou outros.
Literalmente,
o título significa uma “descrição do próprio Eu” (ou da mente, psique, alma). [Nota:
Aqui descarto uma interpretação possível do termo “psicografia” relacionado à
religião espírita, tendo em vista o fato de Fernando Pessoa ser discípulo do
mestre Caeiro].
Neste
sentido, o poema deveria desvendar o verdadeiro Eu do poeta Fernando Pessoa sob
suas múltiplas manifestações que se desdobram no Eu lírico dos heterônimos.
Algo como uma interpretação autopsicanalítica da natureza íntima do poeta que
emerge das profundezas à consciência. Mas não. Nenhuma confissão; nenhum
segredo desvendado.
De
início, estas nossas expectativas são frustradas. As cartas não são abertas
sobre a mesa.
O poeta...
Não
é Pessoa mas um genérico poeta.
Aparentemente,
Fernando Pessoa se vale de um ardil ao se omitir na figura de um poeta
impessoal, ou melhor, de um conceito.
Seria
então o poeta mais um de seus heterônimos?
Sem
dúvida, tenho uma profissão, sou professor, mas, quando quero dizer algo sobre
minha pessoa, não me refiro jamais a mim mesmo como professor, a não ser numa
entrevista de emprego... A profissão, para dizer com os existencialistas, é uma
das minhas muitas essências e não minha existência autêntica, que é livre, e,
sendo livre, pode escolher entre diversas essências: garçom, filósofo,
camponês, engenheiro, médico, professor, músico, escritor, poeta etc. Negar-se
à liberdade inerente da existência, reduzindo-a a uma essência pré-estabelecida
socialmente, é, para os existencialistas, um ato de má-fé.
Assim
sendo, estaria agindo Fernando Pessoa de má-fé, ao se apresentar na figura de
poeta quando aparentemente prometia revelar uma verdade sobre si mesmo, o seu
Eu autêntico?
A
resposta é não. Em Fernando Pessoa poeta
não é uma essência, entre muitas, mas
a existência concreta. Em última instância, Fernando Pessoa é que é uma ficção,
um heterônimo do ser que é poeta.
Entretanto,
ainda mais escandaloso do que a ardilosa “trapaça” de Fernando Pessoa em se
apresentar na figura de um poeta genérico é como o poeta define o poeta:
...é um fingidor
Não
este ou aquele poeta, mas todo poeta é um fingido. Portanto, uma sentença
universal e necessária.
Todavia,
tal sentença não é um axioma. Fingidor
não é uma qualidade inerente ao poeta, mas possivelmente um de seus muitos
atributos.
Se
não fosse muito descabido recorrer à lógica num comentário de um poema, e nos
fosse concedido a licença para tanto, a frase “o poeta é um fingidor” não é de
inerência, ou seja, do conceito de poeta
não se infere imediatamente fingidor.
Somente através da negação interna do
poeta pode se construir a identidade do poeta enquanto fingidor:
“O
poeta [não é o poeta, mas] é um fingidor”.
O
que significa dizer que a verdadeira face do poeta é a de um enganador, um
mentiroso, um impostor, um farsante, um hipócrita, um embusteiro... enfim!
O
poeta, justamente o poeta, tido como aquele que melhor expressa a autenticidade
das emoções! Sim, o poeta: sensível, verdadeiro, visionário, “antena da raça”
(Erza Pound).
Nada
disso! O poeta Fernando Pessoa ensina categoricamente o inverso: o poeta é um fingidor... um mentiroso!
Mas
“fingidor”, muito embora um atributo contingente, é uma característica geral do
poeta em geral. Afirmar isso, no entanto, carece de uma demonstração mais
detida. Vejamos:
[O
fingidor] Finge tão completamente
Dando
prosseguimento a análise lógica, a frase “o fingidor finge” é de inerência
lógica, porque fingidor pressupõe necessariamente aquele que finge. Ora,
afirmar que o fingidor mente nada acrescenta ao que já sabemos, não sendo senão
uma redundância. O que disso resulta, e não podia ser diferente, é que o
fingimento de quem finge não poderia deixar de ser pleno, total, completo.
Porém,
agora vem a grande sacada de Fernando Pessoa. O fingidor não finge qualquer
coisa, mas:
Finge
[tão completamente
Que
chega a fingir] que é dor
[A
dor] que deveras sente.
Rigorosamente,
o fingidor não sente dor, apenas simula a dor:
A
dor que [o poeta] deveras sente.
Do
que se conclui:
“O
poeta é um finge-dor”.
Há
aqui uma relação de identidade que só se constitui pela dor e, daí, pela
contradição entre a não dor (dor
fingida, dissimulada) e a dor (dor
verdadeira, autêntica).
Por
outro lado, se retomássemos a intenção implícita no título, não seria absurdo
afirmar que o poeta não é a pessoa do poeta mas, ao fingir a dor do poeta, o
poeta só pode sentir a dor da pessoa do poeta enquanto fingidor.
Logo,
o poeta é a mesma pessoa que finge a sua própria dor.
Estes
versos nos enchem de assombro. Como pode o poeta fingir algo que lhe é real?
Como pode o poeta, ainda que fingidor, ter duas dores, uma autêntica e outra
fingida e as duas serem, afinal, a mesma dor (da pessoa do poeta)?
Ao
que parece, Fernando Pessoa está dialogando com a tradição literária que
remonta à Arte Poética de Aristóteles
e seus antecessores, tendo por conceitos chaves techne, poiesis e mimesis.
Estas
palavras têm sido comumente traduzidas por “arte” (techne) (a tradução mais precisa é “conhecimento específico”),
“criação” (poiesis) e “imitação” (mimesis):
Caberia
ainda aqui esclarecer, para aqueles que gostam de etimologia, o sentido
original de “fingir”, pois este, de certo modo, guarda alguma relação de
conteúdo com os termos citados.
A
palavra “fingir” vem do latim fingire,
de fingo (terceira conjugação), e seu
sentido primordial é “formar”, “amassar”
[a massa], do qual radica do proto-indo-europeu, *dʰeyǵʰ-: “moldar”.
A
palavra latina fingo também deu
origem as palavras figura e ficção.
Portanto,
“fingir” é essencialmente modelar,
tal qual o ofício de um oleiro, que trabalha o barro na roda e produz objetos
de cerâmicas, como cântaros, tijolos, jarros etc.
Já
acepção grega de poesia, de ποίησις ou poiesis
(poíēsis), no latim poesis, significa
“criação”, “produção”, “composição”. Deriva do verbo ποιέω (poiéō), “fazer”.
Daí poeta ποιητής (poiētḗs): fazedor, compositor, criador, autor.
Em
Aristóteles, o conceito de poiesis
refere-se à produção verbal ou criação literária. (Provavelmente, porque, desde
Platão, pelo menos, este sentido já estava consagrado).
Para
Aristóteles, “(...) o poeta deve ser
mais um criador de narrativas (roteiros) do que de versos, na medida em que é
poeta devido à imitação, e esta sua imitação é das ações” (Poética).
Ainda
Aristóteles: “A poesia épica e a trágica, bem como a cômica e a ditirâmbica e a
maioria da interpretação com flauta e instrumentos de cordas dedilhados são
todas, encaradas como um todo, tipos de imitação. Diferem, entretanto, entre
si, em três aspectos, a saber, nos meios, nos objetos ou nos modos de imitação”
(Poética).
Platão,
no entanto, não se contenta em pensar a arte pura e simplesmente. O filósofo
faz um juízo de valor sobre ela; um valor pejorativo.
Em
sua “República”, Platão idealiza uma cidade perfeita, governada apenas por
filósofos, que a administram através da ciência (episteme), discurso que versa sobre conceito (logos) e a verdade, que, para Platão, é indissociada de
utilitarismo. A arte, ao contrário, é supérflua por ser imitação (mimesis) – da verdade, portanto,
simulacro, falsidade – um pintor, por exemplo, não precisa conhecer o ofício de
fazer sapatos para desenhar um sapato. Neste sentido, a arte que desvia da verdade
e ilude deve ser censurada numa sociedade de sábios que buscam a verdade. E, para
Platão, a arte por excelência própria a sofismas é a poesia. Por conseguinte,
na República de Platão, Sócrates expulsa os poetas da cidade:
“Aqui
está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo da poesia, por,
justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. (...) mesmo
assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver
argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a
receberemos com gosto, pois temos consciência do encantamento que sobre nós
exerce, mas seria impiedade trair o que julgamento ser verdadeiro. Ou não
sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando contemplas
através de Homero?” (PLATÃO, A República).
De
tudo que foi dito, poderíamos dizer que em Pessoa o poeta é um imitador (fingidor),
ou melhor, um artesão que molda palavras, matéria-prima da criação poética.
A
dor do poeta é então a palavra “dor”, dita ou escrita, não a dor em si.
Na
verdade, Fernando Pessoa vai contra a ideia platônica de que imitação é
falsidade. A dor criada, moldada, dita, escrita, lida, à parte e pelo poeta, é
de fato a verdade verdadeira.
O
poeta não é como o ator que interpreta um papel e que depois da encenação retoma
a sua vida cotidiana, completamente diversa da do personagem interpretado.
Não,
o poeta é Édipo que interpreta a sua própria tragédia e que por traz de sua
máscara de tristeza há uma face totalmente consternada por uma dor não menos profunda.
Andamos
em círculos!!!
De
volta ao paradoxo: a dor sentida pelo poeta e a dor fingida pelo poeta são a
mesma dor. (Lembro-me das aulas de dialética: A é A não são idênticos, porque a
repetição já introduz uma mínima diferença que é elevada à enésima potência -
Deleuze).
A
palavra “dor” não é dor mas um simulacro tão verdadeiro quanto dor verdadeira.
Na
segunda estrofe, algo ainda mais chocante: o poeta se metamorfosea num
terceiro: “os que leem”...
E os
que leem o que escreve [a dor escrita],
Na
dor lida sentem bem (...)
Mais
uma vez Fernando Pessoa surpreende. A conexão entre poeta e leitor não se faz
pela dor do poeta, e, sim, pela dor fingida. Esta tem uma dupla determinação: escrita e lida. A dor lida é um momento da dor escrita. E a dor lida é tão
sentida (completamente) como a dor escrita; mas não é a dor do poeta tampouco a
do leitor.
Não
as duas que ele [o poeta] teve,
Mas
só a que eles [leitores] não têm.
Acontece
que, por uma lei da empatia ou alteridade, para sentir a dor do poeta, por meio
de suas mediações negativas, escrita ou lida (dita ou ouvida), o leitor deve
ter uma dor exatamente igual à dor do poeta. Porém, o leitor não é o poeta e,
portanto, sua dor não é a do poeta.
Em
termos dialéticos, há dois polos contraditórios: o poeta e o leitor. Pois
somente negando o poeta, o leitor pode sentir a dor do poeta, e, sentindo a dor
do poeta, o leitor é o poeta e, portanto, também é um fingidor.
Se
retomássemos o exemplo de Édipo, seria quase como dizer que Édipo assiste da
plateia do anfiteatro a representação de sua vida em cena, sendo ele próprio o ator.
O protagonista é ao mesmo tempo dois: ator-espectador; e um terceiro: ele é ator
e espectador sem ser realmente nenhum dos dois.
Portanto,
Fernando Pessoa não compõe sozinho. O leitor é coautor. Dito de outro modo,
Fernando Pessoa descobre no leitor não um mero interlocutor passivo, mas um
criador do sentido da poesia que se aparta e ganha autonomia de ambos.
Na
terceira e última estrofe, Fernando Pessoa novamente renuncia a interferência
da pessoa do poeta e, aparentemente, engendra uma descontinuidade em relação às
estrofes anteriores.
E
assim nas calhas de roda
Gira,
a entreter a razão,
Esse
comboio de corda
Que
se chama coração.
Aqui
há uma clara antinomia entre emoção e razão. A razão é entretida pelo coração.
A palavra “entreter” é polissêmica, possuindo vários sentidos. Dentre eles:
deter, manter, conservar, divertir, distrair, iludir etc. Seu sentido mais cru
é simplesmente entre + ter. O que, no fundo, se depreende de todos estes
significados é que a razão é dominada pela emoção.
E
este é o gancho que liga indiretamente a última estrofe às duas anteriores.
A
lógica não entende as coisas do coração que tem uma lógica própria alógica.
Esta
estrofe poderia ser perfeitamente bem interpretada como a notória frase de
Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Nota-se
que Fernando Pessoa denomina o coração com a expressão comboio de corda, uma analogia claramente mecânica, que subjaz um
sentido materialista ou físico do sentimento. O coração é uma máquina.
Muitos
veem nesta imagem a figura de um trem de brinquedo rodando sobre trilhos. Eu
prefiro a imagem de um relógio de corda, com seu sistema de rodas, girando e
pulsando, num constante tic-tac. Vale lembrar a raiz etimológica da palavra
“coração”, que tem origem no latim cor
(coração, alma, mente), da terceira conjugação, neutro, do caso nominativo
(acusativo e vocativo), singular - sua forma plural, nos respectivos casos, é corda. Talvez, Fernando Pessoa tenha
feito um trocadilho com a palavra “corda”, do latim chorda, que significa fio, fibra, corda – daí acorde musical (em
inglês “chord”), das cordas da lira. Na lírica de Fernando Pessoa, a música é dissonante.
Da
mesma raiz de cor vem também as
palavras “acordar”, “acordo”, “concordar”, “concórdia”, “discórdia”, “cordial”,
“cordato” etc.
Quando
duas pessoas estão de acordo é porque, em seu sentido literal, seus corações
batem juntos.
Portanto,
o poeta fala a língua do coração, irredutível à razão, e que é capaz de
concordar aquilo que está inerentemente em desacordo.
Para
concluir, Fernando Pessoa rompe com a tradição socrático-platônica. Tal como
Nietzsche, para o poeta, a mentira é a verdade e vice-versa. Da mesma forma,
Pessoa rompe com o principium individuationis;
em “Autopsicografia”, o poeta não é um indivíduo distinto, mas uma metamorfose
de múltiplos Eus. A fronteira entre escritor e leitor é demarcada por uma tênue
linha fictícia, geradora de ilusão. O que Fernando Pessoa nos ensina é que não
há individualidade stricto sensu e,
sim, que a personalidade é muito mais fluída e porosa do que nos quer fazer
acreditar o pensamento racional. Somos fragmentos espalhados, contraditórios e
misturados em um mundo tão caótico quanto nós mesmos.
Ao
ler “Autopsicografia”, estamos diante de um Fernando Pessoa que reflete a nós
mesmo como uma imagem num espelho. É sobre nós que versa o poema. O que não
significa que não há integridade entre as múltiplas partes confusas. Fernando
Pessoa alerta: “Sê inteiro”. Ou seja, ser íntegro é ser diferente.
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Jean Pires de Azevedo Gonçalves é autor de:
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