domingo, 20 de agosto de 2017

Schopenhauer por Thomas Mann - parte (2)


Thomas Mann foi um escritor alemão do século XX, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1929. Romancista e ensaísta, é considerado um expoente do realismo alemão, levando o romance clássico do século XIX à perfeição, ao mesmo tempo em que incorporou técnicas do romance do século XX. Sua obra discorre sobre a condição humana, através de alegorias que tratam da falta de sentido da vida na sociedade burguesa. Em 1933, Thomas Mann teve de abandonar a Alemanha ao se contrapor à ascensão do partido nazista. Em 1938, exilou-se nos EUA, onde se radicaliza. Após a guerra, Thomas Mann se naturalizou estadunidense. Suas principais obras são: Os Buddenbrook: decadência de uma família (1901), vencedor do Nobel; A morte em Veneza (1912); José e seus irmãos (romance dividido em quatro partes: A história de Jacob [1930]; O jovem José [1931]; José no Egito (1932-36]; e José, o provedor [1940-43]); e o célebre Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn, contada por um amigo (1943-47).

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(continuação) Todas as vezes que Schopenhauer evoca o sofrimento do mundo, a lamentável angústia e a fúria de viver das múltiplas encarnações do querer (ele trata disso frequentemente e com minúcias), sua já excepcional eloquência e seu gênio de escritor atingem os cimos mais resplandecentes e mais gélidos de sua perfeição. Fala com uma veemência decidida, com o cunho da experiência, no tom de quem sabe, de quem com isso se aterroriza e é arrebatado pela sua verdade potente. Há em certas páginas uma zombaria sarcástica que ele lança à vida, o olhar faiscante, os lábios apertados, mesclando-a com citações gregas e latinas; cheio de piedade e sem piedade, ata ao pelourinho a miséria do mundo, lavra o respectivo certificado, faz-lhe a conta e presta-lhe contas; aliás, muito longe de esmagar tanto como se deveria esperar de tal precisão e de tão sombrio talento de expressão, ao contrário, enche de satisfação estranhamente profunda pelo protesto do espírito pela revolta humana, que aí se revela num contido tremor de voz. Esta satisfação todos as experimentam, porque, quando esse homem, ao mesmo tempo espírito que ajuíza e grande escritor, fala do sofrimento do mundo em geral, fala também do teu e do meu sofrimento, e nós regozijamos por nos sentirmos vingados pelo verbo grandioso.

Miséria, aflição, preocupação de conservar a vida, primeiro; depois, quando estas foram penosamente banidas, instinto de reprodução, dor de amar, ciúme, inveja, ódio, angústia, ambição, avareza, cupidez, doença e assim, inesgotavelmente, todos os males oriundos da contradição interna da vontade surgem da caixa de Pandora. E que resta no fundo? A esperança? Oh! não, o tédio! Porque todas as existências humanas se balançam entre a dor ao tédio. A dor é o elemento positivo; a alegria não é mais que sua interrupção, um elemento negativo pois, e logo se transforma em tédio da mesma forma que a dominante, a que cabe o desenvolvimento sinuoso da melodia, ou a harmonia, na qual se introduz a desarmonia, se as prolongássemos sem interrupção, provocariam insuportável tédio. Felicidades positivas? Há algumas. Mas, comparadas ao longo tormento de nossa cobiça, ao infinito de nossas exigências, são curtas e mesquinhas e, para um desejo satisfeito, dez ao menos restam insatisfeitos. Aliás, é só aparente a satisfação, porque, apenas atendido, um desejo cede o lugar a outro: o primeiro é um erro reconhecido, o seguinte um erro que não foi ainda. Nenhuma satisfação do querer que atinge seu objeto pode durar; semelha a esmola que, dada ao mendigo, prolonga sua lamentável existência de hoje para amanhã. A felicidade? Seria o repouso. Mas este é precisamente incompatível com a vontade. Perseguir, evitar, recear a infelicidade, procurar avidamente o gozo - tudo se assemelha; a inquietude causada pelas exigências sempre renascentes da vontade enche e agita sem demora a consciência e, assim, o sujeito que sempre quer jaz sob a roda de Ixion, enche incansavelmente o tonel das Danaides; é Tântalo e a sua sede eterna.

Contudo, pode-se salvar o mundo da miséria, do erro, do engano e da penitência que é a vida; e a salvação está ao alcance do homem, que realiza a mais alta e a mais evoluída objetivação da vontade, mas também, por esta mesma razão, a mais capaz de sofrer e a mais rica de sofrimento. Crê-se que isso possa ser a morte? Muito falta para tal. A morte pertence inteiramente ao domínio dos fenômenos e do empírico, à esfera da multiplicidade e da mudança; nenhum contacto tem com a realidade transcendente e verdadeira. O que morre conosco é unicamente a individuação; a vontade, que é vontade de viver e forma o núcleo de nosso ser, não é sequer atingida por ela; tão demoradamente quanto se afirma a si mesma, poderá sempre encontrar os caminhos que dão acesso à vida. Resulta daí, digamo-lo de passagem, que o suicídio é absurdo e imoral, pois nada conserta: o que o indivíduo nega e suprime, destruindo-se, é unicamente sua individuação, mas não o erro original, a vontade de viver, que, pelo suicídio, não fez mais que tender para uma realização mais feliz. A salvação, pois, de maneira alguma se chama "morte"; liga-se a condição muito diferente. Ninguém imagina a que mediador devemos eventualmente esta benção. É a inteligência.

Mas a inteligência não é o produto da vontade, seu instrumento, sua luz na escuridão, a serva que lhe foi reservada? É assim e assim continua. Nem sempre, porém, nem em todos os casos. Em circunstâncias particularmente felizes - oh! pode-se mesmo dizer bem-aventuradas - em circunstâncias excepcionais por consequência, esse criado que é o intelecto, esse pobre servente pode tornar-se mestre de seu mestre; pode pregar-lhe uma peça, emancipar-se, tornar-se autônomo e, ao menos durante algum tempo, estabelecer sobre o mundo sua soberania benfazeja de bondade e de luz, na qual, despojada de seu poder e de sua influência, a vontade cede à doçura de um delicioso aniquilamento. Há um estado em que esse milagre se realiza: o conhecimento se separa violentamente da vontade, o sujeito deixa de ser um simples indivíduo, tornando-se, puro e sem vontade, o sujeito do conhecimento. Chama-se-lhe estado estético. É uma das maiores e mais profundas experiências de Schopenhauer. Tanto dispõe o filósofo de acentos medonhos para descrever os tormentos que a dominação do querer acarreta, quanto sua prosa encontra tons seráficos e sua gratidão transborda e se derrama quando - e ele o faz com uma abundância inesgotável - fala nas bênçãos da Arte. Interpretou esta experiência, uma das mais pessoais talvez de sua vida, e lhe deu forma como discípulo de Platão e de Kant. Ele definira o belo "o que apraz de maneira desinteressada". Para Schopenhauer isso significa acertadamente: sem relação com a vontade. O prazer estético seria puro, desinteressado, livre do querer; seria "representação", no sentido mais forte e mais sereno, contemplação clara, imperturbada, cheia de calma. E por que seria? Aqui, Platão deve vir-lhe em ajuda, Platão e o "esteticismo" latente de sua doutrina das Ideias. As Ideias! Foram elas que, no estado estético, tornaram visíveis, através dos fenômenos, essas cópias da eternidade; o olhar direto que nelas incidisse seria a contemplação objetiva, pura, larga, luminosa como o sol, da qual só o gênio - e ainda em suas horas e instantes de genialidade - seria julgado digno e, com ele, quem soubesse acolher e gozar a obra estética.

Apolo que vê longe, o Deus das Musas, é um Deus do afastamento e da distância; não é o da confusão, das "pathos" e da patologia, nem do sofrimento, mas da liberdade, um Deus objetivo, o Deus da Ironia. Por esta, como viu Schopenhauer, pela objetividade genial, o conhecimento seria, pois, arrancado à escravidão da vontade; a atenção deixaria, enfim, de ser perturbada por qualquer móvel da vontade; nós nos abandonaríamos e as coisas não seriam mais objetos da vontade, mas simples objetos da representação: um repouso até então desconhecido ser-nos-ia afinal oferecido. “Estamos perfeitamente bem”, escrevia nosso autor. “É o estado sem dor que Epicuro celebrava como o maior dos bens e como condição dos deuses; nesse instante, nós nos libertamos da necessidade desprezível de querer, celebramos o sabbat dos trabalhos forçados da vontade, a roda de Ixion para”. Palavras célebres, tantas vezes citadas. O belo e o alívio imenso que o contemplá-lo proporciona arrancaram-nas a essa alma amarga e atormentada. Serão verdadeiras?

Mas que é a verdade? Uma experiência vivida que encontra tais palavras é verdadeira; justifica-se pela força do sentimento. Dever-se-ia crer, talvez, que essas palavras de um reconhecimento total e ilimitado foram escritas para caracterizar uma felicidade relativa e que seria ainda puramente negativa? Porque, de maneira geral, a felicidade, simples suspensão de uma tortura, é negativa; e não é de outro modo para quem procura a contemplação estética das Ideias, para a objetividade que acalma o querer, como o provam, aliás, sem dúvida possível, as imagens que essa felicidade inspira a Schopenhauer. Também só é efêmera, provisória. O estado de artista, julgava ele, a parada diante de uma imagem iluminada pela Ideia, não representaria a salvação definitiva. O estado estético seria apenas uma etapa; deveria levar-nos a estado mais perfeito, em que a vontade, que no primeiro não havia encontrado mais que passageira satisfação, seria para sempre submergida pelos raios do conhecimento, expulsa do terreno e aniquilada. O acabamento do artista seria o santo.

De maneira geral, que é a ética? É a ciência das ações dos homens, a ciência do bem e do mal. Ciência? A vontade cega, sem razão nem senso, poderia receber ensinamento? Evidentemente, não se poderia ensinar a virtude, assim como não se poderia formar um artista explicando-se-lhe o que constitui o estado estético, nem se poderia levar um homem a praticar o bem e a evitar o mal com o explicar-se-lhe o sentido e significação de um e outro. Verdadeiramente nenhuma prescrição havia a fazer à vontade: seria livre, absoluta e todo-poderosa. A liberdade encontrar-se-ia mesmo unicamente nela, existiria exclusivamente no transcendente, jamais no empírico, na objetivação da vontade, que repousaria no espaço, no tempo e na causalidade, no mundo. Aqui, tudo estaria submetido à inflexível causalidade, ligado e determinado como causa e efeito; a liberdade encontrar-se-ia para além das aparências fenomenais, como a vontade, mas lá estaria presente e com poder absoluto, lá estaria a liberdade da vontade. Como acontece frequentemente, a "sã razão humana" enganava-se inteiramente quanto à liberdade, que não estaria no ato, mas no ser, não no "operari", mas no "esse"; no ato, é verdade, reinariam, pois, inelutavelmente a necessidade e o determinismo, mas o ser continuaria originalmente e metafìsicamente livre. Certo, o homem que tivesse cometido um ato culposo deveria necessariamente, na qualidade de caráter empírico, sob a influência de móveis determinados, agir assim, mas teria podido ser outro, e mesmo o remorso, a angústia da consciência visariam o ser, não o ato.

Cruel e duro pensamento, insultante, desapiedado, arrogante! Aceitá-lo repugna ao nosso sentimento, e eis que nosso sentimento apela para sua mística. A verdade mística, na qual se funda, longe de deixar cair no esquecimento o par de conceitos culpa-mérito, ao contrário, equivale a espantoso aprofundamento. Por isso, é verdade, ambos escapam à esfera moral concebida em estreito sentido. Mas os espíritos aristocráticos, precisamente os que não faziam grande caso da “justiça”, sempre se inclinaram a privar a moralidade da culpa e do mérito. Goethe fala complacentemente de "méritos inatos", o que é uma reunião de palavras deveras absurda do duplo ponto de vista da lógica e de moral. Porque o "mérito" é inteiramente e por natureza um conceito moral, e o que é inato, como a beleza, a inteligência, a distinção, o talento, ou conferindo-lhe o valor do destino, a felicidade, nada disso logicamente pode ser mérito. Para que aqui se pudesse falar de mérito, fora preciso que tudo isso fosse resultado de livre escolha, a expressão de uma vontade colocada ante os fenômenos, e é precisamente o que Schopenhauer afirma quando declara, com dureza aristocrática, que, feliz ou infeliz, cada um sempre recebe apenas o que lhe é devido.

Mas a aristocrática aceitação da injustiça e da diversidade no destino dos homens não demora a se resolver em uma igualdade, a mais determinada e a mais democrática de todas, pelo simples fato de que o raciocínio reduz a desigualdade e a diferença e mesmo a disparidade a uma ilusão. Para designar esta ilusão, serve-se Schopenhauer De um nome emprestado à sabedoria hindu, que ele admira muito, dada a concordância dela com a sua própria visão do mundo; chama-a “o véu de Maia”. Mas já muito antes, segundo o costume dos sábios ocidentais, tinha-se expressado em latim; esta grande ilusão que representa a injusta desigualdade das fortunas, dos caracteres, das situações e dos destinos repousa no "principium individuationis". Diferença e injustiça não são mais do que as consequências que a multiplicidade no seio do tempo e do espaço implica, mas aquela que não é mais que aparência, é a representação que nós, seres individuais, graças à organização de nossa inteligência, podemos ter de um mundo que, em sua verdadeira realidade, é a objetivação da vontade de viver una e única no todo e nas partes, em mim e em ti. Mas aquilo, o indivíduo, que tem o sentimento de sua unicidade em face do mundo, não o reconhece. E como poderia reconhecê-lo se as condições de seu conhecimento, o "véu de Maia", que envolve seu olhar e o mundo, o impedem de contemplar a verdade? Não vê ele a essência das coisas, que é una, mas suas aparências fenomenais, separadas, diferentes, e mais ainda, opostas: alegria e tormento, carrasco e vítima, vida contente aqui, e ali lamentável. Dizes sim a um, especialmente por tua própria conta, e repudias ao outro, sobretudo no que te diz respeito. A vontade, que é tua origem e tua essência, faz-te aspirar à felicidade, às alegrias e aos prazeres da vida; estendes para ela as mãos, aperta-as com força contra teu peito; e esquece-te de que, admitindo assim a vontade, admites também todos os tormentos do mundo e os apertas contra ti. O que, ao mesmo tempo, tu fazes de mau, o mal que cometes, tua revolta contra a injustiça da vida, e também a inveja, a aspiração e o desejo, a tua cobiça do mundo, tudo isso provém da ilusão da multiplicidade, deste erro, que tu não és o mundo e o mundo não é tu. Sim, tudo isso vem desta diferença entre "eu" e "tu", que não é mais que uma ilusão, a ilusão de Maia.

Vem daí igualmente teu medo da morte. A morte não é mais que a supressão de um erro, de um descaminho, porque cada individuação é um descaminho. Não é mais que o desaparecimento de uma parede imaginária que separa o resto do mundo o eu, em que tu te achas encerrado. Crês que, à. tua morte, este resto do mundo continuará a existir, ao passo que tu – horrível pensamento! – não existirás mais. Ora, eu te digo: este mundo, que é tua representação, não será mais: mas tu (mais exatamente: aquilo que, em ti, teme a morte, que não a quer, porque é a vontade de viver), tu permanecerás, viverás, porque a vontade, que é a tua substância, poderá sempre encontrar o caminho da vida. Não te pertence toda a eternidade? E com a vida, que para esta não é mais que um tempo, quando, na verdade, ela é contínua presença, de novo o tempo te será dado em partilha. À tua vontade está assegurada a vida, com todas as suas alegrias e todos os seus tormentos, durante o tempo que ela a quiser. Melhor seria para ti que ela não a quisesse.

Esperando, vives tal qual és. Vês e amas, olhas e desejas, cobiças a imagem que te é estranha, tão estranha, tão outra, diferente de ti sofres por isso, queres atraí-la a ti, em ti, ser ela. Mas ser uma coisa não é vê-la; para isso muito falta; é incomparavelmente mais penoso e mais lamentável. O desejo é um logro causado pela representação. Tu és dado a ti mesmo, teu corpo te é dado a princípio como representação, assim como tudo o resto do mundo, mas ao mesmo tempo como vontade, e é a única coisa no mundo que te foi dada também como vontade. Tudo o mais não é para ti senão representação. O mundo inteiro parece-te um bailado, um espetáculo, ao qual o teu primeiro e natural julgamento está longe de atribuir tamanha realidade quanto a ti, o espectador; estás longe de torná-lo tão a sério quanta a ti, no mesmo grau e com o mesmo sentido. Ao Eu, escravo do princípio de individuação, envolto no véu de Maia, todos os outros seres aparecem como máscara e fantasmas, aos quais não está absolutamente em condições de atribuir uma existência tão importante e tão séria quanto a tua mesma. Só tu importas, não é? Único ser real. Tu és o centro do mundo, e tudo conspira para teu bem-estar, para, no máximo possível, afastar de ti os sofrimentos da vida, para te procurar profusão de felicidades. O que aos outros acontece é de uma importância incomparavelmente menor, não te faz bem nem mal. Tal é o ponto de vista do egoísmo natural, inteiro e inteiramente cego, o aprisionamento sem remissão no princípio de individuação. Penetrar com o olhar esse princípio, penetrar por intuição seu caráter enganador, que vela a verdade, pressentir confusamente que não há diferença entre Eu e Tu, ter o sentimento de que por tudo e em todos os seres não há mais que uma só e mesma vontade, é o começo e a essência de toda ética. O mal é aquele que, desde que nenhuma força exterior o impeça, comete o mal, isto é, um homem que não se contenta com afirmar a vontade de viver tal qual aparece em seu corpo, mas, além disso, nega a que aparece nos outros e se esforça por aniquilar-lhes a existência, desde que entrave o caminho aos esforços de sua própria vontade.

No caráter mau exprime-se uma vontade imperiosa, que ultrapassa a afirmação de seu próprio corpo, mas, sobretudo, uma profunda impotência do conhecimento para se libertar das aparências assim como do princípio de individuação, a ponto de se manter duro como o ferro na diferença que este princípio estabelece entre sua própria pessoa e todas as outras; é precisamente porque considera a essência das outras inteiramente estranha à sua, separada dela por um abismo, e porque nelas não vê, no sentido literal da palavra, mais que máscaras vazias, atribuindo-se, com a mais profunda convicção, a única realidade que exista.





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