Arthur Schopenhauer foi
um filósofo romântico da primeira metade do século XIX, autor de Mundo como Vontade e Representação
(1818) e Parerga e Paralipomena (1851),
entre outros. Discípulo de Kant, para Schopenhauer o mundo é representação, isto
é, apreensão subjetiva do objeto que pode ser intuitiva, conceitual e ideal;
mas discorda do mestre quanto a incognoscibilidade da coisa-em-si, que pode ser intuída e conhecida como Vontade,
princípio irracional e metafísico fundamental da realidade que aparece sob a
forma de fenômenos que não são mais do que ilusões da consciência (transvestida
por uma racionalidade). A Vontade, cega e irracional, não tem qualquer finalidade,
sendo motivo de grande sofrimento, pois jamais poder satisfazer seu apetite voraz de querer-viver. Influenciado pela
filosofia oriental, Schopenhauer aceita o princípio budista de que tudo neste
mundo de aparência é dor e que só pode ser mitigada pelo não querer. Assim, a superação
de todo sofrimento só é possível pela renúncia quietista às tentações do mundo
e pela contemplação da obra de arte, principalmente, a música.
SCHOPENHAUER
Por Thomas Mann
Nossa
alegria diante de um sistema metafísico, nossa satisfação em presença de uma
construção do pensamento, em que a organização espiritual do mundo se mostra
num conjunto lógico, coerente a harmônico, sempre dependem eminentemente da
estética; têm a mesma origem que o prazer, que a alta satisfação, sempre serena
afinal, que a atividade artística nos proporciona quando cria a ordem e a forma
a nos permite abranger com a vista o caos da vida, dando-lhe transparência.
A
verdade e a beleza devem ser postas em relação; tomadas em si mesmas, sem o
apoio que mutuamente se prestam, são valores muito instáveis. A beleza que não se fundasse na verdade,
que não pudesse apelar para ela, que não nascesse dela, não vivesse graças a
ela, seria pura quimera - e "que é a verdade"? Tirados de um mundo de
fenômenos, de uma visão do mundo submetida a múltiplas condições, nossos
conceitos, como o discerne e o reconhece a filosofia crítica, não são para uso
transcendente mas só imanente; esse material de nosso pensamento e, com maior
razão, os juízos que nos permite construir, não são meios adequados para quem
quer apreender a própria essência das coisas e a verdadeira conexão do mundo e
da existência. Mesmo que, por uma experiência intimamente vivida, se determine
mais convencida e mais convincentemente o que está na base dos fenômenos ainda
não se terá trazido à luz a raiz das coisas. Só isto encoraja o espírito humano
a tentar este ensaio, que se lhe impõe a isto e o justifica; é a hipótese
necessária de que também o nosso próprio ser, o nosso mais profundo Eu, é um
elemento desse "substractum" do mundo, que aí deve ter raízes e que,
por conseguinte, dele talvez se tirem alguns dados que permitam esclarecer a
ligação do mundo dos fenômenos a da essência verdadeira das coisas.
A
história do pensamento de Schopenhauer faz-nos remontar à fonte do conhecimento
em que se abeberou o Ocidente, onde o espírito científico tanto quanto o senso
artístico da Europa tem origem aonde se encontram ainda unidos: ela conduz a
Platão. As coisas do mundo, ensinava o pensador grego, não têm existência
verdadeira; sempre em "devenir", jamais são. Não valem como objetos
do verdadeiro conhecimento, pois só existe conhecimento que é em si, por si e
sem mudança; ora, em sua multiplicidade , na relatividade de seu ser de
empréstimo, que bem se poderia chamar um não-ser, jamais podem ser senão o
objeto de uma opinião provocada por uma sensação. São sombras. O que só é
verdadeiramente, o que não cessa de ser, sem jamais se transformar nem se
perder, são os arquétipos, realidades a que essas sombras correspondem, são as
Ideias eternas, os protótipos de todas as coisas. Ignoram estes a
multiplicidade, porque, por essência, cada um deles é único, é precisa- mente o
original, cujas cópias ou sombras não são mais que coisas ostentando o mesmo
nome que ele, coisas isoladas, perecíveis e semelhantes. As ideias não poderiam
nascer nem desaparecer com eles, porque são intemporais e verdadeiramente
"existentes". Para elas não há "devenir" nem aniquilamento,
como para suas cópias caducas. Só delas, pois, há um conhecimento verdadeiro,
como do que é, em todos os tempos e de todos os pontos de vista.
Ter
espírito científico e preparar-se para a ciência é manifestamente subordinar à
ideia a multiplicidade dos fenômenos, combinar somente com ela a verdade e a
autêntica realidade e firmemente se ater à abstração contemplativa, à
espiritualização do conhecimento. Por esta distinção de valor entre o fenômeno
e a ideia, a matéria e o espírito, o mundo da aparência e o mundo da verdade, o
temporal e o eterno, Platão representa um acontecimento prodigioso na história
do espírito humano e, pois, na ordem da ciência e da moral.
Sentem
todos que a esta elevação da ideia, realidade única, acima dos fenômenos e da
sua efêmera multiplicidade, se liga uma ideia profundamente moral, a
desvalorização do sensível em benefício do espiritual, do temporal em proveito
do eterno, e isto está inteiramente no espírito do futuro cristianismo: porque,
por assim dizer, o passageiro fenômeno e a afeição sensual que inspira, com
isso se transportam para o domínio do pecado: - só aquele que se volta para o
eterno encontra a salvação, a verdade. Vista sob esse aspecto, a filosofia de
Platão mostra o parentesco e a aliança entre a ciência e o ascetismo moral.
Mas
outro valor tem esta distinção: o valor artístico. De acordo com essa doutrina,
com efeito, o tempo é simplesmente esta visão recortada e fragmentada que um
ser individual pode ter Ideias, as quais, situadas fora do tempo, são eternas.
"O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a imagem móvel da
eternidade". Com isso, essa doutrina pré-cristã e já cristã apresenta-nos
também, em sua ascética sabedoria, um atrativo, um encanto de sensualidade
infinitamente artística. Com efeito, conceber o mundo como uma fantasmagoria,
multicor e móbil de imagens que deixam transparecer a Ideia, o Espírito, é
atitude eminentemente artística, que, por assim dizer, de pronto restitui o
artista a si mesmo. Na verdade, é ele quem, pleno de alegria sensual e
pecaminosa, pode sentir-se preso aos fenômenos do mundo, às imagens do mundo,
pois sabe que pertence ao mesmo tempo ao mundo da Ideia e do Espírito, porque é
o Mago, graças ao qual podem estes nos aparecer através dos fenômenos. Surge
aqui a missão mediadora do artista, seu papel de mediador nas encantações
herméticas entre o mundo do alto e o mundo de baixo, entre a Ideia e o
fenômeno, o espírito e a sensualidade; porque tal é, de fato, a posição
verdadeiramente cósmica da arte; sua estranha situação e a comprometida
dignidade de sua ação no mundo não podem definir-se nem explicar-se de outra
maneira. O símbolo da lua, este emblema cósmico de toda mediação, é próprio da
arte.
Platão
artista... Uma filosofia, não o esqueçamos, não age somente - e por vezes age
muito pouco - por sua moral, pela doutrina que põe na sua interpretação e na
sua experiência do mundo, mas também e sobretudo por esta própria experiência
que, aliás, constitui a parte essencial, primeira e pessoal de uma filosofia -
e que não é absolutamente um simples acréscimo intelectual e moral à doutrina
de salvação e de verdade. Muito resta ainda quando se arrancou de um filósofo
sua filosofia e grave seria se nada restasse. Nietzsche, o discípulo de
Schopenhauer, que renegou seu mestre em espírito, escreveu sobre ele estes
versos:
O
que ele ensinou não mais existe,
O
que ele viveu permanece de pé,
Contemplai-o,
pois!
Nada
pôde submetê-lo.
A
doutrina de Schopenhauer, de que falaremos agora, e o dinamismo de sua verdade
têm-se prestado a tantos abusos como a mensagem de Platão, a qual, não obstante
seu ascetismo científico, pôde ser amoedada em valores de arte e especialmente
ser explorada por um artista de colossal talento, Ricardo Wagner (de quem
talvez tratemos mais tarde). Mas a culpa não cabe certamente ao outro mestre e
iniciador de Schopenhauer, àquele que o ajudou a construir seu sistema de
pensamento: Kant, puro espírito, cuja natureza tanto o afastava da arte quanto
o dispunha à crítica.
Emanuel
Kant, crítico do conhecimento, que, do domínio da especulação, onde seu voo a
extraviara, reconduziu a filosofia para o espírito humano, tomou-o por objeto
de suas investigações e traçou limites à razão; Kant, na segunda metade do
século XVIII, ensinava em Kõnigsberg, na Prússia, princípios muito semelhantes
aos que dois milênios antes o pensador ateniense havia exposto. Toda a nossa
experiência do mundo - dizia ele - está submetida a três leis e condições que
são as "formas em que necessariamente se elabora todo o nosso
conhecimento. Chamam-se tempo, espaço, causalidade. Mas não apreendem o mundo
tal como ele pode ser em si e por si, independentemente de nosso esforço por
percebê-lo, a "coisa em si"; atêm-se somente à sua aparência
fenomenal, porque não são mais que as formas de nosso conhecimento. Nenhuma,
multiplicidade, nenhuma aparição e desaparição é possível senão por elas três;
elas são, pois, sustentadas unicamente pela aparência e absolutamente nada
podem saber da "coisa em si", à qual não se poderia de maneira alguma
aplicá-las. Isso se estende mesmo até ao nosso próprio Eu: conhecemo-lo somente
como aparência, não em sua essência. Em outros termos: espaço, tempo,
causalidade, são dispositivos de nossa inteligência, e a concepção das coisas
que nos chega em imagem, condicionada por eles, se chama, pois imanente;
transcendente seria a que poderíamos atingir se a razão, voltando-se sobre si
mesma, se tornasse crítica da razão, depois de ter peneirado o caráter de meros
modos de conhecimento que essas três formas interpostas têm''.
.
Tal
é a concepção fundamental de Kant. Vê-se que muito se aproxima da de Platão.
Apresentam ambas o mundo visível como uma aparência, isto é, como uma parição
inconsistente, que só adquire importância e alguma realidade pelo que nela
transparece e se exprime. Para ambas, a verdadeira realidade se encontra acima,
atrás, em resumo, "para além" de sua aparência e pouco importa, em
suma, que se chame "Ideia" ou "Coisa em si". Schopenhauer abrigava esses dois conceitos no
mais profundo de seu pensamento.
Com
predileção, cedo estudou Platão e Kant (em Gottingem 1809-1811). A todos os
pensadores preferia esses dois, tão afastados no espaço e no tempo. Tomou-lhes
emprestado o que podia ser-lhe útil e, para o seu temperamento tradicionalista,
foi grande satisfação poder utilizá-lo tão perfeitamente; mas, transformou-o
totalmente, conforme a sua própria natureza, que era inteiramente diferente,
muito mais moderna, mais impetuosa e mais dolorosa.
Tomou
as "Ideias" e a "Coisa em si". Mas, com esta, ousou
temerária tentativa, quase interdita, cuja necessidade, porém, sentia,
profundamente, com o ardor de possante convicção: definiu-a, chamou-a por seu
nome, afirmou - posto que após Kant fosse impossível saber qualquer coisa a
respeito - que sabia o que ela é: a Vontade. Seria a causa primeira e
irredutível do ser, sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a
potência presente e operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo
visível e de toda a vida, porque seria o querer-viver. Ela o seria a ponto que
dizer "vontade" seria falar precisamente da vontade de vida e
servir-se da fórmula mais explícita, enunciar de fato um pleonasmo. Jamais a
vontade quereria outra coisa senão a vida. E por que a quereria? Por que a achasse
desejável? Por que tal era o resultado de alguma investigação objetiva sobre o
valor da vida? Oh? Não! A esse querer, qualquer conhecimento continuaria a ser
perfeitamente estranho; seria algo que não dependeria absolutamente dela, algo
de primordial e de incondicionado, um impulso cego, um instinto absolutamente
gratuito, de uma profundeza sem fundo e dependeria tampouco de quaisquer juízos
sobre o valor da vida que, ao contrário, seriam estes juízos que dependeriam
inteiramente do grau de potência do querer-viver.
A
vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à causalidade,
cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu desejo e de sua
alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta objetivação se
realizaria de tal maneira que sua unidade primitiva se tornaria multiplicidade,
o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação. Para saciar seu
desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse princípio,
espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenômenos,
o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais isolado desses
fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da vontade, sua
objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso ainda: seria representação,
minha representação, como a tua, a de todo indivíduo e a representação que cada
qual faz de si para si - especialmente por meio da inteligência que conhece e
que, nos graus superiores de sua objetivação, a vontade criou para torná-la
para si - especialmente por meio da inteligência que produziria a vontade, mas,
ao inverso, esta que engendraria aquela. Não seriam a inteligência, o espírito,
a faculdade de conhecer, que constituiriam o elemento primeiro e dominador;
seria a vontade, e a inteligência, sua serva. Seria possível o contrário, uma
vez que a própria faculdade de conhecer se liga à objetivação da vontade nos
graus superiores e que, sem ela, não teria nenhuma ocasião de se realizar? Num
mundo que é inteiramente obra da vontade, do instinto de viver absoluto,
gratuito, ignorando razões e juízos de valor, não poderia a inteligência
necessariamente pretender senão segundo lugar. A sensibilidade, os nervos, o
cérebro, tanto como outras partes do organismo - em particular da mesma maneira
que o oposto do cérebro, órgão de conhecimento, seu polo contrário - o aparelho
reprodutor - seriam a expressão da vontade num dado momento de sua objetivação
e a representação resultante, igualmente destinada a seu serviço, não teria
mais seu fim em si, mas constituiria um simples meio, um instrumento, que
permitiria à vontade atender a seus fins, exatamente como esses outros órgãos.
Essas relações da inteligência e da vontade, essa afirmação de Schopenhauer de
que a primeira era apenas o dócil instrumento da segunda implicam muito de
cômico e de humilhante angústia; determinam o conteúdo de todas as inclinações
e aptidões do homem para se iludir e imaginar que sua vontade recebe instruções
e dados da inteligência, ao passo que, segundo o nosso filósofo, é precisamente
o contrário; a inteligência - independentemente de sua tarefa, que consiste em
projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e em ajudá-la em sua
luta pela existência num grau mais elevado - tem por única missão servir de
porta-voz à vontade, justificá-la, provê-la de motivos "morais", em
suma, racionalizar nossos instintos.
Era
uma apreciação notavelmente pessimista; e, de fato, todos os compêndios nos
ensinam que Schopenhauer foi em primeiro lugar o filósofo da vontade e, em
segundo lugar, o do pessimismo. Mas, não há primeiro nem segundo; as duas
coisas não são mais que uma: ele foi a segunda, porque foi a outra e ao mesmo
tempo; ele foi necessariamente pessimista, porque era o filósofo e o psicólogo
da vontade. Se a encaramos como o oposto da satisfação beata, a vontade é em si
mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação, esforço em vista de algo,
inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento, e um mundo da vontade
outra coisa não pode ser senão o mundo do sofrimento. Objetivando-se em tudo
que existe, a vontade expia no mundo físico sua alegria metafísica e a expia no
sentido próprio da palavra: "expia" da maneira mais terrível no mundo
que ela criou e que, sendo o mundo do desejo e do tormento, se revela sinistro.
É que, tornando-se mundo segundo o princípio de individuação, pela sua
fragmentação na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e,
embora, não obstante todo o seu esmigalhamento, continue una, torna-se uma
vontade que está milhões de vezes em luta consigo mesma, que se combate e se
desconhece a si própria, que, em cada uma de suas manifestações, procura seu
bem-estar, seu "lugar ao sol", a expensas de outra e, ainda mais, a
expensas de todas as outras, não cessando, pois, de morder a própria carne,
como aquele habitante do Tártaro que avidamente se devorava a si mesmo. É preciso
compreender isso literalmente. As "Ideias" de Platão adquirem, em
Schopenhauer, uma voracidade incurável, porque, graus atingidos pela vontade
que se objetiva, disputam uma à outra a matéria, o espaço, o tempo. Deve o
mundo vegetal servir de alimento ao mundo animal e cada animal, por sua vez, de
presa e alimento a outro, e assim a vontade de vida não cessa de se devorar a
si mesma. O homem, enfim, considera o todo como criado para seu uso e contribui
por seu lado para assinalar com a mais espantosa evidência o horror do combate
de todos contra todos, o auto-estraçalhamento da vontade, segundo a máxima
"Homo hominis lupas".
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