Por Machado de Assis
Capítulo Primeiro
A primeira vez que o Dr.
Estêvão Soares falou ao deputado Meneses foi no Teatro Lírico no tempo da
memorável luta entre lagruístas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao
outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um deles os seus serviços e
trocando os respectivos cartões de visita.
Só dous meses depois
encontraram-se outra vez.
Estêvão Soares teve de ir à
casa de um ministro de Estado para saber de uns papéis relativos a um parente
da província, e aí encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma
conferência política.
Houve sincero prazer em
ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estêvão a promessa
de que iria à casa dele daí a poucos dias.
O ministro depressa
despachou o jovem médico.
Chegando ao corredor,
Estêvão foi surpreendido com uma tremenda bátega d'água, que nesse momento
caía, e começava a alagar a rua.
O rapaz olhou a um e outro
lado a ver se passava algum veículo vazio, mas procurou inutilmente; todos que
passavam iam ocupados.
Apenas à porta estava um
coupé vazio à espera de alguém, que o rapaz supôs ser o deputado.
Daí a alguns minutos desce
com efeito o representante da nação, e admirou- se de ver o médico ainda à
porta.
- Que quer? disse-lhe
Estêvão; a chuva impediu-me de sair; aqui fiquei a ver se passa um tílburi.
- É natural que não passe, e
nesse caso ofereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha.
- Perdão; mas é um
incômodo...
- Ora, incômodo! É um
prazer. Vou deixá-lo em casa. Onde mora?
- Rua da Misericórdia n.°...
- Bem, suba.
Estêvão hesitou um pouco mas
não podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de tão boa vontade lhe
fazia um obséquio.
Subiram.
Mas em vez de mandar o
cocheiro para a Rua da Misericórdia, o deputado gritou:
- João, para casa! E entrou.
Estêvão olhou para ele
admirado.
- Já sei, disse-lhe Meneses;
admira-se de ver que faltei à minha palavra; mas eu desejo apenas que fique
conhecendo a minha casa a fim de lá voltar quanto antes.
O coupé rolava já pela rua
fora debaixo de uma chuva torrencial. Meneses foi o primeiro que rompeu o
silêncio de alguns minutos, dizendo ao jovem amigo:
- Espero que o romance da
nossa amizade não termine no primeiro capítulo.
Estêvão, que já reparara nas
maneiras solícitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu
falar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia
apresentado no Teatro Lírico disse no dia seguinte:
- Meneses é um misantropo, e
um céptico; não crê em nada, nem estima ninguém. Na política como na sociedade
faz um papel puramente negativo.
Esta era a impressão com que
Estêvão, apesar da simpatia que o arrastava, falou a segunda vez a Meneses, e
admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de afeto que elas
pareciam revelar.
À linguagem do deputado o
jovem médico respondeu com igual franqueza.
- Por que acabaremos no
primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo não é cousa que se despreze,
acolhe-se como um presente dos deuses.
- Dos deuses! disse Meneses
rindo; já vejo que é pagão.
- Alguma cousa, é verdade;
mas no bom sentido, respondeu Estêvão rindo também. Minha vida assemelha-se um
pouco à de Ulisses...
- Tem ao menos uma Ítaca,
sua pátria, e uma Penélope, sua esposa.
- Nem uma nem outra.
- Então entender-nos-emos.
Dizendo isto o deputado voltou
a cara para o outro lado, vendo a chuva que caía na vidraça da portinhola.
Decorreram. dous ou três
minutos, durante os quais Estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o
companheiro de viagem.
Meneses voltou-se e entrou
em novo assunto.
Quando o coupé entrou na Rua
do Lavradio, Meneses disse ao médico:
- Moro nesta rua; estamos
perto de casa. Promete-me que há de vir ver-me algumas vezes?
- Amanhã mesmo.
- Bem. Como vai a sua
clínica?
- Apenas começo, disse
Estêvão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma cousa.
- O seu companheiro, na
noite em que mo apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento.
- Tenho vontade de fazer
alguma cousa.
Daí a dez minutos parava o
coupé à porta de uma casa da Rua do Lavradio. Apearam-se os dous e subiram.
Meneses mostrou a Estêvão o
seu gabinete de trabalho, onde haviam duas longas estantes de livros.
- É a minha família, disse o
deputado mostrando os livros. História, filosofia, poesia... e alguns livros de
política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier é aqui que o hei de receber.
Estêvão prometeu voltar no
dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por ele, e que o levou
à Rua da Misericórdia.
Entrando em casa Estêvão
dizia consigo:
"Onde está a
misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo são mais rudes do que as
dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou em mim o homem que
procurava."
Capítulo II
Estêvão era o tipo do rapaz
sério. Tinha talento, ambição e vontade de saber, três armas poderosas nas mãos
de um homem que tenha consciência de si.
Desde os dezesseis anos a
sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso
médico, Estêvão entrou na academia um pouco forçado, não queria desobedecer ao
pai. A sua vocação era toda para as matemáticas. Que importa? disse ele ao
saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a matemática. Com efeito
teve tempo para uma e outra cousa; teve tempo ainda para estudar a literatura,
e as principais obras da antiguidade e contemporâneas eram-lhe tão familiares como
os tratados de operações e de higiene.
Para estudar tanto, foi-lhe
preciso sacrificar uma parte da saúde. Estêvão aos vinte e quatro anos
adquirira uma magreza, que não era a dos dezesseis; tinha a tez pálida e a
cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da leitura. Mas
esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não Ihe alteraram a
regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho
e a expressão. Era além disso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é
coisa diferente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo,
tudo mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caráter. Podia-se
notar-lhe muitas infrações ao código da moda; ninguém poderia dizer que ele
faltasse nunca às boas regras do gentleman.
Perdera os pais aos vinte
anos, mas ficara-lhe bastante juízo para continuar sozinho a viagem do mundo. O
estudo serviu-lhe de refúgio e bordão. Não sabia nada do que era o amor.
Ocupara-se tanto com a cabeça que esquecera- se de que tinha um coração dentro
do peito. Não se infira daqui que Estêvão fosse puramente um positivista. Pelo
contrário, a alma dele possuía ainda em toda a plenitude da graça e da força as
duas asas que a natureza lhe dera.
Não raras vezes rompia ela
do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu, em busca de não sei que
ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava desses êxtases, Estêvão
curava-se deles enterrando-se nos volumes à cata de uma verdade científica.
Newton era-lhe o antídoto de Goethe.
Além disso, Estêvão tinha
ideias singulares. Havia um padre, amigo dele, rapaz de trinta anos, da escola
de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de Calipso. Ora, o padre dizia
muitas vezes a Estêvão que só uma cousa lhe faltava para ser completo: era
casar-se.
- Quando você tiver,
dizia-lhe, uma mulher amada e amante ao pé de si, será um homem feliz e
completo. Dividirá então o tempo entre as duas cousas mais elevadas que a
natureza deu ao homem, a inteligência e o coração.
Nesse dia quero eu mesmo
casá-lo...
- Padre Luís, respondia
Estêvão, faça-me então o serviço completo: traga-me a mulher e a bênção.
O padre sorria-se ao ouvir a
resposta do médico, e como o sorriso parecia a Estêvão uma nova pergunta, o
médico continuava:
- Se encontrar uma mulher
tão completa como eu exijo, afirmo-lhe que me casarei. Dirá que as obras
humanas são imperfeitas, e eu não contestarei, Padre Luís; mas nesse caso
deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições.
Daqui engendrava-se sempre
uma discussão, que se animava e crescia até o ponto em que Estêvão concluía por
este modo:
- Padre Luís, uma menina que
deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente alguns livros mal escolhidos;
que interrompe uma lição para ouvir contar uma cena de namoro; que em matéria
de arte só conhece os figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no
baile, e que antes de suspirar por um homem, examina-lhe a correção da gravata,
e o apertado do botim; Padre Luís, esta menina pode vir a ser um esplêndido
ornamento de salão e até uma fecunda mãe de família, mas nunca será uma mulher.
Esta sentença de Estêvão
tinha o defeito de certas regras absolutas. Por isso, o padre dizia-lhe sempre:
- Tem você razão; mas eu não
lhe digo que case com a regra; procure a exceção que há de encontrar e leve-a
ao altar, onde eu estarei para os unir.
Tais eram os sentimentos de
Estêvão em relação ao amor e à mulher. A natureza dera-lhe em parte esses
sentimentos, mas em parte adquiriu-os ele nos livros. Exigia a perfeição
intelectual e moral de uma Heloísa; e partia da exceção para estabelecer uma
regra. Era intolerante para os erros veniais.
Não os reconhecia como tais.
Não há erro venial, dizia ele, em matéria de costumes e de amor.
Contribuíra para esta
rigidez de ânimo o espetáculo da própria família de Estêvão. Até aos vinte anos
foi ele testemunha do que era a santidade do amor mantido pela virtude
doméstica. Sua mãe, que morrera com trinta e oito anos, amou o marido até os
últimos dias, e poucos meses lhe sobreviveu. Estêvão soube que fora ardente e
entusiástico o amor de seus pais, na estação do noivado, durante a manhã
conjugal; conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal a que ele
assistiu viu o amor calmo, solícito e confiante, cheio de dedicação e respeito,
praticado como um culto; sem recriminações nem pesares, e tão profundo como no
primeiro dia. Os pais de Estêvão morreram amados e felizes na tranquila
seriedade do dever.
No ânímo de Estêvão, o amor
que funda a família devia ser aquilo ou não seria nada. Era justiça; mas a
intolerância de Estêvão começava na convicção que ele tinha de que com a dele
morrera a última família, e fora com ela a derradeira tradição do amor. Que era
preciso para derrubar todo este sistema, ainda que momentâneo? Uma cousa
pequeníssima: um sorriso e dous olhos.
Mas como esses dous olhos
não apareciam, Estêvão entregava-se na maior parte do tempo aos seus estudos
científicos, empregando as horas vagas em algumas distrações que o não prendiam
por muito tempo.
Morava só; tinha um escravo,
da mesma idade que ele, e cria da casa do pai, - mais irmão do que escravo, na
dedicação e no afeto. Recebia alguns amigos, a quem visitava de quando em
quando de quando, entre os quais incluímos o jovem Padre Luís, a quem Estevão
chamava - Platão de sotaina.
Naturalmente bom e afetuoso,
generoso e cavalheiresco, sem ódios nem rancores, entusiasta por todas as
cousas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estevão Soares, aos vinte e quatro
anos de idade.
Do seu retrato físico já
dissemos alguma cousa. Bastará acrescentar que tinha uma bela cabeça, coberta
de bastos cabelos castanhos, dous olhos da mesma cor, vivos e observadores; a
palidez do rosto fazia realçar o bigode naturalmente encaracolado. Era alto e
tinha mãos admiráveis.
Capítulo III
Estêvão Soares visitou
Meneses no dia seguinte.
O deputado esperava-o, e
recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estêvão marcara a hora da visita, que
impossibilitava a presença de Meneses na Camara; mas o deputado importou-se
pouco com isso: não foi à Camara.
Mas teve a delicadeza de o
não dizer a Estevão.
Meneses estava no gabinete
quando o criado anunciou-lhe a chegada do médico. Foi recebê-lo à porta.
- Pontual como um rei,
disse-lhe alegremente.
- Era dever. Lembro-lhe que
não me esqueci.
- E agradeço-lho.
Sentaram-se os dous.
- Agradeço-lhe porque eu
receava sobretudo que me houvesse compreendido mal; e que os impulsos da minha
simpatia não merecessem da sua parte nenhuma consideração...
Estêvão ia protestar.
- Perdão, continuou Meneses,
bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho
47 anos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.
- A velhice, quando é
respeitável, deve ser respeitada; e amadas quando é amável. Mas V. Ex.a não é
velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer que está na segunda
mocidade.
- Parece-lhe isso...
- Parece e é.
- Seja como for, disse
Meneses, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos anos tem?
- Olhe lá, podia ser meu
filho. Tem seus pais vivos?
- Morreram há quatro anos.
- Lembra-me haver dito que
era solteiro...
- De maneira que os seus
cuidados são todos para a ciência?
- É a minha esposa.
- Sim, a sua esposa
intelectual; mas essa não basta a um homem como o senhor... Enfim, isso é com o
tempo; está ainda moço.
Durante este diálogo,
Estevão contemplava e observava Meneses, em cujo rosto batia a claridade que
entrava por uma das janelas. Era uma cabeça severa, cheia de cabelos já
grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco
amortecidos; adivinhava-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As
suíças também grisalhas eram como as de lord Palmerston, segundo dizem as
gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as
sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do tempo. A
testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se
que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma
velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora
aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia
um raio de lua no meio de uma velha ruína. Vi que o sorriso era amável, mas não
era alegre.
Todo aquele conjunto
impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez mais arrastado para aquele
homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.
A conversa continuou no tom
afetuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o oposto da
primeira entrevista do amor; nesta a mudez é a grande eloquência; naquela
inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das
ideias.
Não se falou de política.
Estêvão aludiu de passagem às funções de Meneses, mas foi um verdadeiro
incidente a que o deputado não prestou atenção.
No fim de uma hora, Estêvão
levantou-se para sair; tinha de ir ver um doente.
- O motivo é sagrado; senão
retinha-o.
- Mas eu voltarei outras
vezes.
- Sem dúvida alguma, e eu
irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... Olhe,
venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da Câmara estou
completamente livre.
Estêvão saiu prometendo
tudo.
Voltou lá, com efeito, e
jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao
teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim
de um mês eram dous amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e
os sentimentos. Meneses gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso,
estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o
dominava. Pela sua parte o médico via em Meneses um homem que sabia ligar a
austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras,
instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É
verdade que em algumas ocasiões Meneses parecia mais disposto a ouvir do que a
falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver
os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas
eram rápidos esses momentos, e Meneses voltava logo aos seus modos habituais.
"Não é um misantropo,
pensava então Estêvão; mas este homem tem um drama dentro de si."
A observação de Estêvão
adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no
Teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Meneses para uma mulher vestida de
preto que se achava em um camarote da primeira ordem.
- Não conheço aquela mulher,
disse Estêvão. Sabe quem é?
Meneses olhou para o
camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:
- Não conheço.
A conversa ficou aí; mas o
médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Meneses, e este duas vezes
para ela, encontrando-se os olhos de ambos.
No fim do espetáculo, os
dous amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de
preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis
vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não?
Era impossível sabê-lo. Meneses passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada
que dá para o lado da Rua dos Ciganos, pararam os dous porque havia grande
afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se passo apressado; Meneses voltou o
rosto, e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade.
Estêvão compreendeu, mas nada
viu.
Pela sua parte, Meneses não
deu sinal algum.
Apenas se desembaraçaram da
multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico.
- Que efeito lhe faz,
perguntou ele, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão
de sedas e de perfumes?
Estêvão respondeu
distraidamente, e Meneses continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco
minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.
Capítulo IV
Um dia Estêvão Soares foi
convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai.
A sociedade era luzida e
numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de
conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu.
Mas ao entrar levava o
coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos
poetas da Arcádia; era a flecha do amor.
Do amor? A falar a verdade
não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era
ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um
sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele
a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas
perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.
A mulher em questão não era
uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e
terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas
feições. Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as
maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar à casa não pôde dormir.
Como verdadeiro médico que
era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e
procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemáticas,
isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito
alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva.
O cansaço foi mais feliz que
Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu.
Mas sonhou com a viúva.
Sonhou que a apertava em
seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e
perante a sociedade.
Quando acordou e lembrou-se
do sonho, Estêvão sorriu.
- Casar-me! disse ele. Era o
que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e ambicioso
que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher... e
boa noite.
Começou a vestir-se.
Trouxeram-lhe o almoço;
Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes.
Mas ao passar pela Rua do
Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva
disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não
o decorou.
Queria e não queria;
protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número
da casa naquele momento.
Como ninguém podia
dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.
No dia seguinte, porém, teve
o cuidado de passar duas vezes pela Rua do Conde a ver se descobria a
encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando ia tomar um tílburi e voltar
para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrara Madalena.
Estêvão já tinha pensado
nele; mas imediatamente tirou dali o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde
morava a viúva era uma cousa que podia traí-lo.
Estêvão já empregava o verbo
trair.
O homem em questão, depois
de cumprimentar ao médico, e trocar com ele algumas palavras, disse-lhe que ia
à casa de Madalena, e despediu-se.
Estêvão estremeceu de
satisfação.
Acompanhou de longe o amigo
e viu-o entrar em uma casa. "É ali" pensou ele.
E afastou-se rapidamente.
Quando entrou em casa achou
uma carta para ele; a letra, que Ihe era desconhecida, estava traçada com
elegância e cuidado: a carta recendia de sândalo.
O médico rompeu o lacre. A
carta dizia assim:
Amanhã toma-se chá em minha
casa. Se quiser vir passar algumas horas conosco dar-nos-á sumo prazer.
Madalena C...
Estêvão leu e releu o
bilhete; teve ideia de levá-lo aos lábios, mas envergonhado diante de si
próprio por uma ideia que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o
bilhete e meteu-o no bolso.
Estêvão era um pouco
fatalista.
"Se eu não fosse àquele
baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha
conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as cousas podem nascer
deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa
dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É
preciso romper com estas ideias, e continuar a vida tranquila que tenho
tido."
Estava nisto quando Meneses
lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para jantar. Estêvão saiu com o deputado.
Em caminho fez-lhe perguntas curiosas.
Por exemplo:
- Acredita no destino, meu
amigo? Pensa que há um deus do bem e um deus do mal, em conflito travado sobre
a vida do homem?
- O destino é a vontade,
respondia Meneses; cada homem faz o seu destino.
- Mas enfim nós temos
pressentimentos... Às vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos
parte; não lhe parece que é um deus benfazejo que no-los segreda?
- Fala como um pagão; eu não
creio em nada disso. Creio que tenho o estômago vazio, e o que melhor podemos
fazer é jantar aqui mesmo no Hotel de Europa em vez de ir à Rua do Lavradio.
Subiram ao Hotel de Europa.
Ali haviam vários deputados
que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses. Estêvão ouvia e
respondia, sem esquecer nunca a viúva, a carta e o sândalo.
Assim, pois, davam-se
contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estêvão.
Dizia por exemplo um
deputado:
- O governo é reator; as
províncias não podem mais suportá-lo. Os princípios estão todos preteridos, na
minha província foram demitidos alguns subdelegados pela circunstância única de
serem meus parentes; meu cunhado, que era diretor das rendas, foi posto fora do
lugar, e este deu-se a um peralta contraparente dos Valadares. Eu confesso que
vou romper amanhã a oposição.
Estêvão olhava para o
deputado; mas no interior estava dizendo isto:
"Com efeito, Madalena é
bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos de matar. Os cabelos são
lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria
feliz; mas quem sabe?... Contudo sinto que vou amá-la. Já é irresistível; é
preciso amá-la; e ela? que quer dizer aquele convite? Amar-me-á?"
Estêvão embebera-se tanto
nesta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não
achava a situação negra e carrancuda, Estêvão entregue ao seu pensamento
respondeu:
- É lindíssima!
- Ah! disse o deputado, vejo
que o senhor é ministerialista.
Estêvão sorriu; mas Meneses
franziu o sobrolho. Compreendera tudo.
Capítulo V
Quando saíram, o deputado
disse ao médico:
- Meu amigo, você é desleal
comigo...
- Por quê? perguntou Estêvão
meio sério e meio risonho, não compreendendo a observação do deputado.
- Sim, continuou Meneses;
você esconde-me um segredo...
- Eu?
- É verdade: e um segredo de
amor.
- Ah!... disse Estêvão; por
que diz isso?
- Reparei há pouco que, ao
passo que os mais conversavam em política, você pensava em uma mulher, e
mulher... lindíssima...
Estêvão compreendeu que
estava descoberto; não negou.
- É verdade, pensava em uma
mulher.
- E eu serei o último a
saber?
- Mas saber o quê? Não há
amor, não há nada. Encontrei uma mulher que me impressionou e ainda agora me
preocupa; mas é bem possível que não passe disto. Aí está. É um capítulo
interrompido; um romance que fica na primeira página. Eu lhe digo: há de me ser
difícil amar.
- Por quê?
- Eu sei? custa-me a crer no
amor.
Meneses olhou fixamente para
Estêvão, sorriu, abanou a cabeça e disse:
- Olhe, deixe a descrença
para os que já sofreram as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda
nada desse sentimento. Na sua idade ninguém é céptico... Demais, se a mulher é
bonita, eu aposto que daqui a pouco há de dizer-me o contrário.
- Pode ser... respondeu Estêvão.
E ao mesmo tempo entrou a
pensar nas palavras de Meneses, palavras que ele comparava ao episódio do
Teatro Lírico.
Entretanto, Estêvão foi ao
convite de Madalena. Preparou-se e perfumou-se como se fosse falar a uma noiva.
Que sairia daquele encontro? Viria de lá livre ou cativo? Já seria amado?
Estêvão não deixou de pensá-lo; aquele convite parecia-lhe uma prova
irrecusável. O médico entrando num tílburi começou a formar vários castelos no
ar.
Enfim chegou à casa.
Capítulo VI
Madalena estava na sala
acompanhada de um filho. Ninguém mais.
Eram nove horas e meia.
- Viria eu cedo demais?
perguntou ele à dona da casa.
- O senhor nunca vem cedo.
Estêvão inclinou-se.
Madalena continuou:
- Se me acha só, é porque,
tendo enfermado um pouco, mandei desavisar as poucas pessoas que eu havia
convidado.
- Ah! mas eu não recebi...
- Naturalmente; eu não lhe
mandei dizer nada. Era a primeira vez que o convidava; não queria por modo
algum arredar de casa um homem tão distinto.
Estas palavras de Madalena
não valiam cousa alguma, nem mesmo como desculpa, porque a desculpa é
fraquíssima.
Estêvão compreendeu logo que
havia algum motivo oculto. Seria o amor?
Estêvão pensou que era, e
doeu-se, porque, apesar de tudo, sonhara uma paixão mais reservada e menos
precipitada. Não queria, embora lhe agradasse, ser objeto daquela preferência;
e mais que tudo achava-se embaraçadíssimo diante de uma mulher a quem começava
a amar, e que talvez o amasse. Que lhe diria? Era a primeira vez que o médico
achava-se em tais apuros. Há toda a razão para supor que Estêvão naquele
momento preferia estar cem léguas distante, e contudo, longe que estivesse
pensaria nela.
Madalena era excessivamente
bela, embora mostrasse no rosto sinais de longo sofrimento. Era alta, cheia,
tinha um belíssimo colo, magníficos braços, olhos castanhos e grandes, boca
feita para ninho de amores.
Naquele momento trajava um
vestido preto. A cor preta ia-lhe muito bem.
Estêvão contemplava aquela
figura com amor e adoração; ouvia-a falar e sentia-se encantado e dominado por
um sentimento que não podia explicar.
Era um misto de amor e de
receio.
Madalena mostrou-se delicada
e solícita. Falou no merecimento do rapaz e na sua nascente reputação, e instou
com ele para que fosse algumas vezes visitá-la.
Às 10 horas e meia serviu-se
o chá na sala. Estêvão conservou-se lá até às 11 horas.
Chegando à rua o médico
estava completamente namorado. Madalena tinha- o atado no seu carro, e o pobre
rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo.
Caminhando para casa ia ele
formando projetos: via-se casado com ela, amado e amante, causando inveja a
todos, e mais que tudo feliz no seu interior.
Quando chegou à casa,
lembrou-se de escrever uma carta que mandaria no dia seguinte a Meneses.
Escreveu cinco e rasgou-as todas.
Afinal redigiu um simples
bilhete nestes termos:
Meu amigo.
Você tem razão; na minha
idade crê-se; eu creio e amo. Nunca o pensei; mas é verdade.
Amo... Quer saber a quem?
Hei de apresentá-lo em casa dela. Há de achá-la bonita... Se o é...!
A carta dizia muitas cousas
mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo mote.
Estêvão voltou à casa de
Madalena e as suas visitas começaram a ser regulares e assíduas.
A viúva usava para com ele
de tanta solicitude que não era possível duvidar do sentimento que a dirigia.
Pelo menos Estêvão assim o pensava. Achava- se quase sempre só, e deliciava-se
em ouvi-la. A intimidade começou a estabelecer-se.
Logo na segunda visita,
Estêvão falou-lhe em Meneses pedindo licença para apresentá-lo. A viúva disse
que teria muito prazer em receber amigos de Estêvão; mas pedia-lhe que adiasse
a apresentação. Todos os pedidos e todas as razões de Madalena eram dignas para
o médico; não disse mais nada.
Como era natural, ao passo
que as visitas à viúva eram mais assíduas, as visitas ao amigo eram mais raras.
Meneses não se queixou;
compreendeu, e disse-o ao rapaz.
- Não se desculpe,
acrescentou o deputado; é natural; a amizade deve ceder o passo ao amor. O que
eu quero é que seja feliz.
Um dia Estêvão pediu ao
amigo que lhe contasse o motivo que o tinha feito descrer do amor, e se algum
grande infortúnio lhe havia acontecido.
- Nada me aconteceu, disse
Meneses.
Mas ao mesmo tempo,
compreendendo que o médico merecia-lhe toda a confiança, e podia não
acreditá-lo absolutamente, disse:
- Por que negá-lo? Sim,
aconteceu-me um grande infortúnio; amei também, mas não encontrei no amor as
doçuras e a dignidade do sentimento; enfim, é um drama íntimo de que não quero
falar: limite-se a pateá-lo.
Capítulo VII
- Quando quiser que eu lhe
apresente o meu amigo Meneses... dizia Estêvão uma noite à viúva Madalena.
- Ah! é verdade; um dia
destes. Vejo que o senhor é amigo dele.
- Somos amigos íntimos.
- Verdadeiros?
- Verdadeiros.
Madalena sorriu; e como
estava brincando com os cabelos do filho deu-lhe um beijo na testa.
A criança riu alegremente e
abraçou a mãe.
A ideia de vir a ser pai
honorário do pequeno apresentou-se ao espírito de Estêvão. Contemplou-o, chamou
por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousaram os
lábios de Madalena.
Estêvão tocava piano, e às
vezes executava algum pedaço de música a pedido de Madalena.
Nessas e noutras distrações
lá passavam as horas. O amor não adiantava um passo.
Podiam ser ambos duas
crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davam o menor sinal de
si.
Esta situação incomodava o
rapaz, acanhava-o, e fazia-o sofrer; mas quando ele pensava em dar um ataque
decisivo, era exatamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão
Era o primeiro amor do
rapaz: ele nem conhecia as palavras próprias desse sentimento.
Um dia resolveu escrever à
viúva.
"É melhor, pensava ele;
uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe."
Entrou para o gabinete e
começou uma carta.
Gastou nisso uma hora; cada
frase ocupava-lhe muito tempo. Estêvão queria fugir à hipótese de ser
classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse
sentimentos frívolos nem maus; queria revelar-se puro como era.
Mas de que não dependem às
vezes os acontecimentos? Estêvão estava relendo e emendando a carta quando lhe
entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com ele. Chamava-se Oliveira e
passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.
Entrou com um rolo de papel
na mão. Estêvão escondeu rapidamente a carta.
- Adeus, Estêvão! disse o
recém-chegado. Estavas escrevendo algum libelo ou carta de namoro?
- Nem uma nem outra cousa,
respondeu Estêvão secamente.
- Dou-te uma notícia.
- Que é?
- Entrei na literatura.
- Ah!
- É verdade, e venho ler-te
a primeira comédia.
- Deus me livre! disse
Estêvão levantando-se.
- Hás de ouvir, meu amigo;
ao menos algumas cenas; dar-se-á caso que não me protejas nas letras? Anda cá;
ao menos duas cenas. Sim? É pouca cousa.
Estêvão sentou-se.
O dramaturgo continuou:
- Talvez prefiras ouvir a
minha tragédia intitulada -- O Punhal de Bruto...
- Não, não; prefiro a
comédia: é menos sanguinária. Vamos lá.
O Oliveira abriu o rolo,
arranjou as folhas, tossiu e começou a ler o que se segue, com voz pausada e
fanhosa:
CENA I
CÉSAR (entrando pela direita);
JOÃO (pela esquerda).
CÉSAR — Fechada! A sinhá já
se levantou?
JOÃO — Já, sim senhor; mas
está incomodada.
CÉSAR — O que tem?
JOÃO — Tem... está
incomodada.
CÉSAR — Já sei. (Consigo)
"Os incômodos do Costume". (A João) Qual é então o remédio hoje?
JOÃO — O remédio? (Depois de
uma pausa) Não sei.
CÉSAR — Está bom, vai-te!
CENA II
CÉSAR, FREITAS (pela
direita).
CÉSAR — Bom dia. Sr.
procurador...
FREITAS — De causas
perdidas. Só me ocupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é
tolice. A minha constituinte?
CÉSAR — Disse-me o João que
está incomodada. FREITAS — Mesmo para V, S.a?
CÉSAR — (Sentando-se) Mesmo
para mim. Por que me olha com esse olhar? Tem inveja?
FREITAS — Não é inveja, é
admiração! De ordinário ninguém corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o
Sr. César, benza-o Deus, não desmente que traz um nome significativo, e trata
de ser nas páginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campais.
CÉSAR — Pois também os
procuradores dizem cousas destas?
FREITAS — De vez em quando.
(Indo sentar-se) V. S.a admira-se?
CÉSAR — (Tirando charutos)
Como não é de costume... quer um charuto?
FREITAS — Obrigado... Eu
tomo rapé. (Tira a boceta) Quer uma pitada?
CÉSAR — Obrigado.
FREITAS — (Sentando-se) Pois
a causa da minha constituinte vai às mil maravilhas. A parte contrária requereu
assinação de dez dias, mas eu vou...
CÉSAR — Está bom, Sr.
Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me fale linguagem do foro. Em
resumo, ela vence?
FREITAS — Está claro.
Tratando provar que...
CÉSAR — Vence, é quanto
basta.
FREITAS — Pudera não vencer!
Pois se eu ando nisto...
CÉSAR — Tanto melhor!
FREITAS — Ainda não me
lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas
vésperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdê-la. Dito e feito.
Provei o contrário do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque
perder assim é ganhar.
CÉSAR — É a fênix dos
procuradores.
FREITAS — (Modestamente) São
os seus bons olhos...
CÉSAR — Mas a consciência?
FREITAS — Quem é a
consciência?
CÉSAR — A consciência, a sua
consciência?
FREITAS — A minha
consciência? Ah! essa também ganha.
CÉSAR — (Levantando-se) Ah!
também? . . .
FREITAS — (O mesmo) Tem V.
S.a alguma demandazinha?
CÉSAR — Não, não, não tenho;
mas, quando tiver, fique descansado, vou bater à sua porta...
FREITAS — Sempre às ordens
de V.S.a.
Capítulo VIII
Estêvão interrompeu
violentamente a leitura, o que desgostou bastante ao poeta novel. O pobre
candidato às musas mal pôde balbuciar uma súplica; Estêvão mostrou-se surdo, e
o mais que lhe concedeu foi ficar com a comédia para lê-la depois.
Oliveira contentou-se com
isso; mas não se retirou sem recitar-lhe de cor uma fala do protagonista da
tragédia, em versos duros e compridos, dando- lhe por quebra uma estrofe de uma
poesia lírica, no estilo do Djinns de Vítor Hugo.
Enfim saiu.
Entretanto havia passado o
tempo.
Estêvão releu a carta e quis
ainda mandá-la; mas a interrupção do poeta fora proveitosa; relendo a carta,
Estêvão achou-a fria e nula; a linguagem era ardente, mas não lhe correspondia
ao fogo do coração.
- É inútil, disse ele
rasgando a carta em mil pedaços, a língua humana há de ser sempre impotente
para exprimir certos afetos da alma; tudo aquilo era frio e diferente do que
sinto. Estou condenado a não dizer nada ou a dizer mal. Ao pé dela não tenho
forças, sinto-me fraco...
Estêvão parou diante da
janela que dava para a rua, no momento em que passava um antigo colega dele,
com a mulher de braço, a mulher que era bonita, e com quem se casara um mês
antes.
Os dous iam alegres e
felizes.
Estêvão contemplou aquele
quadro com adoração e tristeza. O casamento já não era para ele aquele
impossível de que falava quando apenas tinha ideias e não sentimentos. Agora
era uma ventura realizável.
O casal que passara dera-lhe
nova força.
- É preciso acabar com isto,
dizia ele; eu não posso deixar de ir àquela mulher e dizer-lhe que a amo, que a
adoro, que desejo ser seu marido. Ela amar-me-á, se já me não ama: sim,
ama-me...
E começou a vestir-se.
Quando calçava as luvas e
lançava um olhar para o relógio, o criado trouxe- lhe uma carta.
Era de Madalena.
Espero, meu caro doutor, que
não deixe de vir hoje; esperei-o ontem em vão. Desejo falar- lhe.
Estêvão acabou de ler este
bilhete na escada, com tal pressa descia e tal urgência tinha de achar-se em
casa da viúva.
O que ele não queria era
perder aquele assomo de coragem. Partiu.
Quando chegou à casa de
Madalena achava-se esta à janela. Recebeu-o - com a costumada afabilidade.
Estêvão desculpou-se como pôde por não ter podido vir na véspera, acrescentando
que só com desgosto do seu coração havia faltado.
Que melhor ocasião do que
era essa para lançar a bomba de uma declaração franca e apaixonada? Estêvão
hesitou alguns segundos; mas tomando ânimo, ia continuar o período, quando a
viúva lhe disse:
- Estava ansiosa por vê-lo
para comunicar-lhe uma cousa de certa importância, e que só a um homem de
honra, como o senhor, se pode confiar.
Estêvão empalideceu.
- Sabe onde foi que eu o vi
pela primeira vez?
- No baile de ***.
- Não; foi antes disso; foi
no Teatro Lírico.
- Ah! - Lá o vi com o seu
amigo Meneses.
- Fomos algumas vezes lá!
Madalena entrou então em uma
longa exposição, que o rapaz ouviu sem pestanejar, mas pálido e agitado por
comoções íntimas. As últimas palavras da viúva foram estas:
- Bem vê, senhor; cousas
destas só uma grande alma pode ouvi-las. As pequenas não as compreendem. Se lhe
mereço alguma cousa, e se esta confiança pode ser paga com um benefício, peço-lhe
que faça o que lhe pedi.
O médico passou a mão pelos
olhos, e apenas murmurou:
- Mas...
Neste momento entrava na
sala o filhinho de Madalena; a viúva levantou-se e trouxe-o pela mão até o
lugar onde se achava Estêvão Soares.
- Se não por mim, disse ela,
ao menos por esta criança inocente!
A criança, sem nada
compreender, atirou-se aos braços de Estêvão.
O moço deu-lhe um beijo na
testa, e disse para a viúva:
- Se hesitei não foi porque
duvidasse do que a senhora acaba de contar-me; foi porque a missão é espinhosa;
mas prometo que hei de cumpri-la.
Capítulo IX
Estêvão saiu da casa da
viúva agitado por diversos sentimentos, com passo trêmulo e a vista turva. A
conversa com a viúva fora um longo combate; a última promessa foi um golpe
decisivo e mortal. Estêvão saía dali como um homem que acabava de matar as suas
esperanças em flor; caminhava ao acaso, precisava de ar e queria meter-se em um
quarto sombrio; quisera ao mesmo tempo estar solitário e no meio de imensa
multidão.
No caminho encontrou
Oliveira, o poeta novel.
Lembrou-se que a leitura da
comédia impedira a remessa da carta, e portanto poupou-lhe um tristíssimo
desengano.
Estêvão involuntariamente
abraçou o poeta com toda a efusão d'alma.
Oliveira correspondeu ao
abraço, e quando pôde desligar-se do médico, disse-lhe:
- Obrigado, meu amigo; estas
manifestações são muito honrosas para mim; sempre te conheci como um perfeito
juiz literário, e a prova que acabas de dar-me é uma consolação e uma animação;
consola-me do que tenho sofrido, anima-me para novos cometimentos. Se Torquato
Tasso...
Diante desta ameaça de
discurso, e sobretudo vendo a interpretação do seu abraço, Estêvão resolveu-se
a continuar caminho abandonando o poeta.
- Adeus, tenho pressa.
- Adeus, obrigado! Estêvão
chegou à casa e atirou-se à cama. Ninguém o soube nunca, só as paredes do
quarto foram testemunhas; mas a verdade é que Estêvão chorou lágrimas amargas.
Enfim que lhe dissera
Madalena e que exigira dele?
A viúva não era viúva; era mulher
de Meneses; viera do Norte meses antes do marido, que só veio como deputado;
Meneses, que a amava doudamente, e que era amado com igual delírio, acusava-a
de infidelidade; uma carta e um retrato eram os indícios; ela negou, mas
explicou-se mal; o marido separou-se e mandou-a para o Rio de Janeiro.
Madalena aceitou a situação
com resignação e coragem: não murmurou nem pediu, cumpriu a ordem do marido.
Todavia Madalena não era
criminosa; o seu crime era uma aparência; estava condenada por fidelidade de
honra. A carta e o retrato não lhe pertenciam; eram apenas um depósito
imprudente e fatal. Madalena podia dizer tudo, mas era trair uma promessa; não
quis; preferiu que a tempestade doméstica caísse unicamente sobre ela.
Agora, porém, a necessidade
do segredo expirara; Madalena recebeu do Norte uma carta em que a amiga, no
leito da morte, pedia que inutilizasse a carta e o retrato, ou os restituísse
ao homem que lhos dera. Esta carta era uma justificação.
Madalena podia mandar a
carta ao marido, ou pedir-lhe uma entrevista; mas receava tudo; sabia que seria
inútil, porque Meneses era extremamente severo.
Vira o médico uma noite no
teatro em companhia de seu marido; indagara e soube que eram amigos; pedia-lhe
pois que fosse mediador entre os dous, que a salvasse e que reconstruísse uma
família.
Não era pois somente o amor
de Estêvão que sofria; era também o seu amor- próprio. Estêvão facilmente
compreendeu que não fora atraído àquela casa para outra cousa. É verdade que a
carta só chegara na véspera; mas a carta apenas vinha apressar a resolução.
Naturalmente Madalena pedir-lhe-ia, sem haver carta, algum serviço análogo
àquele.
Se se tratasse de qualquer
outro homem, Estêvão recusaria o serviço que lhe pedia a viúva, mas tratava-se
do seu amigo, de um homem a quem ele devia estima e serviços de amizade.
Aceitou, pois, a cruel
missão.
- Cumpra-se o destino, disse
ele; hei de ir lançar a mulher que amo aos braços de outro; e por desgraça
maior, em vez de gozar com este restabelecimento de concórdia doméstica, vejo-me
na dura situação de amar a mulher do meu amigo, isto é, de fugir para longe...
Estêvão não saiu mais de
casa nesse dia.
Quis escrever ao deputado
contando-lhe tudo; mas pensou que o melhor era falar-lhe de viva voz. Embora
lhe custasse mais, era de mais efeito para o desempenho da sua promessa.
Adiou, porém, para o dia
seguinte, ou antes para o mesmo dia, porque a noite não lhe interrompeu o
tempo, visto que Estêvão não dormiu um minuto sequer.
Capítulo X
Levantou-se da cama o pobre
namorado sem ter conseguido dormir. Vinha nascendo o sol.
Quis ler os jornais e
pediu-os.
Já os ia pondo de lado, por
haver acabado de ler, quando repentinamente viu o seu nome impresso no Jornal
do Comércio.
Era um artigo a pedido com o
título de "Uma Obra-Prima." Dizia o artigo:
Temos o prazer de anunciar
ao país o próximo aparecimento de uma excelente comédia, estreia de um jovem
literato fluminense, de nome Antônio Carlos de Oliveira.
Este robusto talento, por
muito tempo incógnito, vai enfim entrar nos mares da publicidade, e para isso
procurou logo ensaiar-se em uma obra de certo vulto.
Consta-nos que o autor,
solicitado por seus numerosos amigos, leu há dias a comédia em casa do Sr. Dr.
Estêvão Soares, diante de um luzido auditório, que aplaudiu muito e profetizou
no Sr. Oliveira um futuro Shakespeare.
O Sr. Dr. Estêvão Soares
levou a sua amabilidade a ponto de pedir a comédia para ler segunda vez, e
ontem ao encontrar-se na rua com o Sr. Oliveira, de tal entusiasmo vinha
possuído que o abraçou estreitamente, com grande pasmo dos numerosos
transeuntes.
Da parte de um juiz tão
competente em matérias literárias este ato é honroso para o Sr. Oliveira.
Estamos ansiosos por ler a
peça do Sr. Oliveira, e ficamos certos de que ela fará fortuna de qualquer
teatro.
O AMIGO DAS LETRAS.
Estêvão, apesar dos
sentimentos que o agitavam então, enfureceu-se com o artigo que acabava de ler.
Não havia dúvida que o autor dele era o próprio autor da comédia. O abraço da
véspera fora mal interpretado, e o poetastro aproveitava-o em seu favor. Se ao
menos não falasse no nome de Estêvão, este poderia desculpar a vaidadezinha do
escritor. Mas o nome ali estava como cúmplice da obra.
Pondo de lado o Jornal do
Comércio, Estêvão lembrou-se de protestar, e ia já escrever um artigo quando
recebeu uma cartinha de Oliveira.
Dizia a carta:
Meu Estêvão.
Lembrou-se um amigo meu de
escrever alguma cousa a propósito da minha peça. Expliquei-lhe como se dera a
leitura em tua casa, e disse-lhe como é que, apesar do vivo desejo que tinhas
de ouvir lê-la, interrompeste-me para ir cuidar de um doente. Apesar de tudo
isto, o meu referido amigo contou hoje no Jornal do Comércio a história
alterando um pouco a verdade. Desculpa-o; é a linguagem da amizade e da
benevolência.
Ontem entrei para casa tão
orgulhoso com o teu abraço que escrevi uma ode, e assim manifestou-se em mim a
veia lírica, depois da cômica e da trágica. Aí te mando o rascunho; se não
prestar, rasga-a.
A carta tinha, por engano, a
data da véspera.
A ode era muito comprida; Estêvão
nem a leu, atirou-a para um canto.
A ode começava assim:
Sai do teu monte, ó musa!
Vem inspirar a lira do
poeta;
Enche de luz a minha fronte
ousada,
E mandemos aos evos,
Nas asas de uma estrofe
igente e altíssona,
Do caro amigo o animador
abraço!
Não canto os altos feitos
De Aquiles, nem traduzo os
sons tremendos
Dos rufos marciais enchendo
os campos!
Outro assunto me inspira.
Não canto a espada que dá
morte e campa;
Canto o abraço que dá vida e
glória!
Capítulo XI
Como havia prometido, Estêvão
foi logo procurar o deputado Meneses. Em vez de ir direito ao fim, quis antes
sondá-lo a respeito do seu passado. Era a primeira vez que o moço tocava em
tal. Meneses não desconfiou, mas estranhou; mas tal confiança tinha nele que
não recusou nada.
- Sempre imaginei,
dissera-lhe Estêvão, que há na sua vida um drama. E talvez engano meu, mas a
verdade é que ainda não perdi a ideia.
- Há, com efeito, um drama;
mas um drama pateado. Não sorria; é assim. Que supõe então?
- Não suponho nada. Imagino
que...
- Pede dramas a um homem
político?
- Por que não?
- Eu lhe digo. Sou político
e não sou. Não entrei na vida pública por vocação; entrei como se entra em uma
sepultura: para dormir melhor. Por que o fiz? A razão é o drama de que me fala.
- Uma mulher, talvez...
- Sim, uma mulher.
- Talvez mesmo, disse
Estêvão procurando sorrir, talvez uma esposa. Meneses estremeceu e olhou para o
amigo, espantado e desconfiado.
- Quem lho disse?
- Pergunto.
- Uma esposa, sim; mas não
lhe direi mais nada. É a primeira pessoa que ouve tanta cousa de mim. Deixemos
o passado que morreu: parce sepultis.
- Conforme, disse Estêvão; e
se eu pertencer a uma seita filosófica que pretenda ressuscitar os mortos,
mesmo quando é um passado...
- As suas palavras, ou
querem dizer muito, ou nada. Qual é a sua intenção?
- A minha intenção não é
ressuscitar o passado unicamente; é repará-lo, é restaurá-lo em todo o seu
esplendor, com toda a legitimidade do seu direito; o meu fim é dizer-lhe, meu
caro amigo, que a mulher condenada é uma mulher inocente.
Ouvindo estas palavras
Meneses deu um pequeno grito.
Depois levantando-se com
rapidez pediu a Estêvão que lhe dissesse o que sabia e como sabia.
Estêvão referiu tudo.
Quando concluiu a sua
narração, o deputado abanou a cabeça com aquele último sintoma de incredulidade
que é ainda um eco das grandes catástrofes domésticas.
Mas Estêvão ia armado contra
as objeções do marido. Protestou energicamente pela defesa da mulher; instou
pelo cumprimento do dever.
A última resposta de Meneses
foi esta:
- Meu caro Estêvão, a mulher
de César nem deve ser suspeitada. Acredito em tudo; mas o que está feito, está
feito.
- O princípio é cruel, meu
amigo.
- É fatal. Estêvão saiu.
Ficando só, Meneses caiu em
profunda meditação; ele acreditava em tudo, e amava a mulher; mas não
acreditava que os belos dias pudessem voltar.
Recusando, pensava ele, era
ficar no túmulo em que tivera tão brando sono. Estêvão, porém, não desanimou.
Quando entrou em casa,
escreveu uma longa carta ao deputado exortando-o a que restaurasse a família um
momento separada e desfeita. Estêvão era eloquente; o coração de Meneses com
pouco se contentava.
Enfim, nesta missão
diplomática, o médico houve-se com suprema habilidade. No fim de alguns dias
dissipara-se a nuvem do passado, e o casal reunira-se.
Como?
Madalena soube das
disposições de Meneses e recebeu o anúncio de uma visita de seu marido.
Quando o deputado
preparava-se para sair, vieram dizer-lhe que uma senhora o procurava.
A senhora era Madalena.
Meneses nem quis abraçá-la;
ajoelhou-se-lhe aos pés.
Tudo estava esquecido.
Quiseram celebrar a
reconciliação, e Estêvão foi convidado para lá passar o dia em companhia dos
seus amigos, que lhe deviam a felicidade.
Estêvão não foi.
Mas no dia seguinte Meneses
recebeu este bilhete:
Desculpe, meu amigo, se não
vou despedir-me pessoalmente. Sou obrigado a partir repentinamente para Minas.
Voltarei daqui a alguns meses.
Estimo que sejam felizes, e
espero que não se esqueçam de mim.
Meneses foi apressadamente à
casa de Estêvão, e ainda o achou preparando as malas. Achou singular a viagem,
e mais singular o bilhete; mas o médico não revelou por modo nenhum o
verdadeiro motivo da sua partida.
Quando Meneses voltou,
comunicou à mulher as suas impressões; e perguntou se ela compreendia aquilo.
- Não, respondeu Madalena.
Mas tinha compreendido enfim. "Nobre alma!" disse ela consigo.
Nada disse ao marido; nisso
mostrava-se esposa solícita pela tranquilidade conjugal; mas mostrava-se
sobretudo mulher.
Meneses não foi à Câmara
durante muitos dias, e no primeiro paquete seguiu para o Norte.
A ausência transtornou
algumas votações, e a sua partida logrou muitos cálculos.
Mas o homem tem o direito de
procurar a sua felicidade e a felicidade de Meneses era independente da
política.
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