Num bosque que das Ninfas se habitava
Sílvia,
Ninfa linda, andava um dia;
subida
nüa árvore sombria,
as
amarelas flores apanhava.
Cupido,
que ali sempre costumava
a
vir passar a sesta à sombra fria,
num
ramo o arco e setas que trazia,
antes
que adormecesse, pendurava.
A
Ninfa, como idóneo tempo vira
para
tamanha empresa, não dilata,
mas
com as armas foge ao Moço esquivo.
As
setas traz nos olhos, com que tira:
—Ó
pastores! fugi, que a todos mata,
senão
a mim, que de matar me vivo.
Num jardim adornado de verdura,
a
que esmaltam por cima várias flores,
entrou
um dia a deusa dos amores,
com
a deusa da caça e da espessura.
Diana
tomou logo üa rosa pura,
Vénus
um roxo lírio, dos milhores;
mas
excediam muito às outras flores
as
violas, na graça e fermosura.
Perguntam
a Cupido, que ali estava,
qual
daquelas três flores tomaria,
por
mais suave, pura e mais fermosa?
Sorrindo
se, o Minino lhe tornava:
todas
fermosas são, mas eu queria
V i
o l 'a n t e s que lírio, nem que rosa.
Num tão alto lugar, de tanto preço,
este
meu pensamento posto vejo,
que
desfalece nele inda o desejo,
vendo
quanto por mim o desmereço.
Quando
esta tal baixesa em mim conheço,
acho
que cuidar nele é grão despejo,
e
que morrer por ele me é sobejo
e
mor bem para mim, do que mereço.
O
mais que natural merecimento
de
quem me causa um mal tão duro e forte,
o
faz que vá crecendo de hora em hora.
Mas
eu não deixarei meu pensamento,
porque
inda que este mal me causa a morte,
Un
bel morir tutta la vita onora.
O céu, a terra, o vento sossegado...
As
ondas, que se estendem pela areia...
Os
peixes, que no mar o sono enfreia...
O
nocturno silêncio repousado...
O
pescador Aónio, que, deitado
onde
co vento a água se meneia,
chorando,
o nome amado em vão nomeia,
que
não pode ser mais que nomeado:
Ondas
(dezia), antes que Amor me mate,
torna-me
a minha Ninfa, que tão cedo
me
fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém
lhe fala; o mar de longe bate;
move-se
brandamente o arvoredo;
leva-lhe
o vento a voz, que ao vento deita.
Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a
peregrinação cansada minha!
Como
se encurta, e como ao fim caminha
este
meu breve e vão discurso humano!
Vai
se gastando a idade e cresce o dano;
perde
se me um remédio, que inda tinha;
se
por experiência se adivinha,
qualquer
grande esperança é grande engano.
Corro
após este bem que não se alcança;
no
meio do caminho me falece,
mil
vezes caio, e perco a confiança.
Quando
ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se
os olhos ergo a ver se inda parece,
da
vista se me perde, e da esperança.
O culto divinal se celebrava
no
templo donde toda a criatura
louva
o Feitor divino, que a feitura
com
seu sagrado sangue restaurava.
Ali
Amor, que o tempo me aguardava
onde
a vontade tinha mais segura,
nüa
celeste e angélica figura
a
vista da razão me salteava.
Eu,
crendo que o lugar me defendia,
e
seu livre costume não sabendo
que
nenhum confiado lhe fugia,
deixei
me cativar; mas já que entendo,
Senhora,
que por vosso me queria,
do
tempo que fui livre me arrependo.
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não
o queira jamais o tempo dar,
não
torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse
nesse passo o sol padeça.
luz
lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
mostre
o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe
monstros, sangue chova
o
ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
as
pessoas pasmadas de ignorantes,
as
lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem
que o mundo já se destruiu.
Ó
gente temerosa, não te espantes,
que
este dia deitou ao mundo a vida
mais
desgraçada que jamais se viu!
O filho de Latona esclarecido,
que
com seu raio alegra a humana gente,
o
hórrido Piton, brava serpente,
matou,
sendo das gentes tão temido.
Feriu
com arco, e de arco foi ferido,
com
ponta aguda d'ouro reluzente;
nas
tessálicas praias, docemente,
pela
Ninfa Peneia andou perdido.
Não
lhe pôde valer, para seu dano,
ciência,
diligências, nem respeito
de
ser alto, celeste e soberano.
Se
este nunca alcançou nem um engano
de
quem era tão pouco em seu respeito,
eu
que espero de um ser que é mais que humano?
O fogo que na branda cera ardia,
vendo
o rosto gentil que eu n'alma vejo,
se
acendeu de outro fogo do desejo,
por
alcançar a luz que vence o dia.
Como
de dous ardores se encendia,
da
grande impaciência fez despejo,
e
remetendo com furor sobejo
vos
foi beijar na parte onde se via.
Ditosa
aquela flama, que se atreve
[a]
apagar seus ardores e tormentos
na
vista de que o mundo tremer deve.
Namoram
se, Senhora, os Elementos
de
vós, e queima o fogo aquela neve
que
queima corações e pensamentos.
Olhos fermosos, em quem quis Natura
mostrar
do seu poder altos sinais,
se
quiserdes saber quanto possais,
vede-me
a mim, que sou vossa feitura.
Pintada
em mim se vê vossa figura,
no
que eu padeço retratada estais;
que,
se eu passo tormentos desiguais,
muito
mais pode vossa fermosura.
De
mim não quero mais que o meu desejo:
ser
vosso; e só de ser vosso me arreio,
porque
o vosso penhor em mim se assele.
!Tão
me lembro de mim quando vos vejo,
nem
do mundo; e não erro, porque creio,
que,
em lembrar-me de vós, cumpro com ele.
Ondados fios d'ouro reluzente,
que,
agora da mão bela recolhidos,
agora
sobre as rosas estendidos,
fazeis
que sua beleza se acrecente;
Olhos,
que vos moveis tão docemente,
em
mil divinos raios entendidos,
se
de cá me levais alma e sentidos,
que
fora, se de vós não fora ausente?
Honesto
riso, que entre a mor fineza
de
perlas e corais nasce e parece,
se
n'alma em doces ecos não o ouvisse!
Se
imaginando só tanta beleza
de
si, em nova glória, a alma se esquece,
que
fará quando a vir? Ah! quem a visse!
Oh! quão caro me custa o entender te,
molesto
Amor, que, só por alcançar te,
de
dor em dor me tens trazido a parte
onde
em ti ódio e ira se converte!
Cuidei
que para em tudo conhecer te,
me
não faltasse experiência e arte;
agora
vejo n'alma acrecentar te
aquilo
que era causa de perder te.
Estavas
tão secreto no meu peito
que
eu mesmo, que te tinha, não sabia
que
me senhoreavas deste jeito.
Descobriste
t'agora; e foi por via
que
teu descobrimento e meu defeito,
um
me envergonha e outro m'injuria.
O raio cristalino s'estendia
pelo
mundo, da Aurora marchetada,
quando
Nise, pastora delicada,
donde
a vida deixava, se partia.
Dos
olhos, com que o Sol escurecia,
levando
a vista em lágrimas banhada,
de
si, do Fado e Tempo magoada,
pondo
os olhos no Céu, assi dezia:
—Nasce,
sereno Sol, puro e luzente;
resplandece,
fermosa e roxa Aurora,
qualquer
alma alegrando descontente;
que
a minha, sabe tu que, desd'agora,
jamais
na vida a podes ver contente,
nem
tão triste nenhüa outra pastora.
Os reinos e os impérios poderosos
que
em grandeza no mundo mais cresceram,
ou
por valor de esforço floreceram
ou
por varões nas letras espantosos.
Teve
Grécia Temístocles famosos;
os
Cipiões a Roma engrandeceram;
doze
pares a França glória deram;
Cides
a Espanha, e Laras belicosas.
Ao
nosso Portugal (que agora vemos
tão
diferente de seu ser primeiro),
os
vossos deram honra e liberdade.
E em
vós, grão sucessor e novo herdeiro
do
braganção estado, há mil extremos
iguais
ao sangue, e mores que a idade.
Os vestidos Elisa revolvia
que
lh'Eneias deixara por memória:
doces
despojos da passada glória,
doces,
quando seu Fado o consentia.
Entr'eles
a fermosa espada via
que
instrumento foi da triste história;
e,
como quem de si tinha a vitória,
falando
só com ela, assi dezia:
—Fermosa
e nova espada, se ficaste
só
para executares os enganos
de
quem te quis deixar, em minha vida,
Sabe
que tu comigo t'enganaste;
que,
para me tirar de tantos danos,
sobeja
me a tristeza da partida.
O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
a
força, a arte, a manha, a fortaleza;
o
tempo acaba a fama e a riqueza,
o
tempo o mesmo tempo de si chora.
tempo
busca e acaba o onde mora
qualquer
ingratidão, qualquer dureza;
mas
neo pode acabar minha tristeza,
enquanto
não quiserdes vós, Senhora.
O
tempo o claro dia torna escuro,
e o
mais ledo prazer em choro triste;
o
tempo a tempestade em grã bonança.
Mas
de abrandar o tempo estou seguro
o
peito de diamante, onde consiste
a
pena e o prazer desta esperança.
Passo por meus trabalhos tão isento
de
sentimento grande nem pequeno,
que
só pola vontade com que peno
me
fica Amor devendo mais tormento.
Mas
vai me Amor matando tanto a tento,
temperando
a triaga co veneno,
que
do penar a ordem desordeno,
porque
não mo consente o sofrimento.
Porém,
se esta fineza o Amor sente,
e
pagar me meu mal com mal pretende,
torna
me com prazer como ao Sol neve.
Mas
se me vês cos males tão contente,
faz
se avaro da pena, porque entende
que
quanto mais me paga, mais me deve.
Pede o desejo, Dama, que vos veja,
não
entende o que pede; está enganado.
É
este amor tão fino e tão delgado,
que
quem o tem não sabe o que deseja.
Não
há cousa a qual natural seja
que
não queira perpétuo seu estado;
não
quer logo o desejo o desejado,
porque
não falte nunca onde sobeja.
Mas
este puro afeito em mim se dana;
que,
como a grave pedra tem por arte
o
centro desejar da natureza,
assi
o pensamento (pola parte que
vai
tomar de mim, terreste [e] humana)
foi,
Senhora, pedir esta baixeza.
Pelos extremos raros que mostrou
em
saber, Palas, Vénus em fermosa,
Diana
em casta, Juno em animosa,
África,
Europa e Asia as adorou.
Aquele
saber grande que ajuntou
esprito
e corpo em liga generosa,
esta
mundana máquina lustrosa,
de
só quatro Elementos fabricou.
Mas
mor milagre fez a natureza
em
vós, Senhoras, pondo em cada üa
o
que por todas quatro repartiu.
A
vós seu resplandor deu Sol e Lua,
a
vós com viva luz, graça e pureza,
Ar,
Fogo, Terra e Água vos serviu.
Pensamentos, que agora novamente
cuidados
vãos em mim ressuscitais,
dizei
me: ainda não vos contentais
de
terdes, quem vos tem, tão descontente?
Que
fantasia é esta, que presente
cad'hora
ante meus olhos me mostrais?
Com
sonhos e com sombras atentais
quem
nem por sonhos pode ser contente?
Vejo
vos, pensamentos, alterados
e
não quereis, d'esquivos, declarar me
que
é isto que vos traz tão enleados?
Não
me negueis, se andais para negar me;
que,
se contra mim estais alevantados,
eu
vos ajudarei mesmo a matar me.
Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas,
que não cansam de cansar me;
pois
não abranda o fogo em que abrasar me
pôde
quem eu jamais pude abrandar;
não
canse o cego Amor de me guiar
a
parte donde não saiba tornar me;
nem
deixe o mundo todo de escutar me,
enquanto
me a voz fraca não deixar.
E se
nos montes, rios, ou em vales,
piedade
mora, ou dentro mora Amor
em
feras, aves, plantas, pedras, águas,
ouçam
a longa história de meus males
e
curem sua dor com minha dor;
que
grandes mágoas podem curar mágoas.
Por cima destas águas, forte e firme,
irei
por onde as sortes ordenaram,
pois,
por cima de quantas me choraram
aqueles
claros olhos, pude vir me.
Já
chegado era o fim de despedir me,
já
mil impedimentos se acabaram,
quando
rios de amor se atravessaram
a me
impedir o passo de partir me.
Passei
os eu com ânimo obstinado,
com
que a morte forçada e gloriosa
faz
o vencido já desesperado.
Em
que figura, ou gesto desusado,
pode
já fazer medo a morte irosa,
a
quem tem a seus pés rendido e atado?
Porque quereis, Senhora, que ofereça
a
vida a tanto mal como padeço?
Se
vos nasce do pouco que mereço,
bem
por nascer está quem vos mereça.
Sabei
que, enfim, por muito que vos peça,
que
posso merecer quanto vos peço;
que
não consente Amor que em baixo preço
tão
alto pensamento se conheça.
Assi
que a paga igual de minhas dores,
com
nada se restaura, mas deveis ma,
por
ser capaz de tantos disfavores.
E se
o valor de vossos servidores
houver
de ser igual convosco mesma,
vós
só convosco mesma andai d'amores.
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora,
que por ele se perdia,
posto
que dá princípio ao claro dia,
posto
que as roxas flores imitava.
Ele,
que a bela Prócris tanto amava
que
só por ela tudo enjeitaria,
deseja
de atentar se lhe acharia
tão
firme fé como nele achava.
Mudado
o trajo, tece o duro engano:
outro
se finge, preço põe diante,
quebra
se a fé mudável, e consente.
Ó
engenho sutil para seu dano!
Vede
que manhas busca um cego amante
para
que sempre seja descontente!
Posto me tem Fortuna em tal estado,
e
tanto a seus pés me tem rendido!
Não
tenho que perder já, de perdido,
não
tenho que mudar já, de mudado.
Todo
o bem para mim é acabado;
daqui
dou o viver já por vivido;
que,
aonde o mal é tão conhecido,
também
o viver mais será escusado.
Se
me basta querer, a morte quero,
que
bem outra esperança não convém,
e
curarei um mal com outro mal
E,
pois do bem tão pouco bem espero,
já
que o mel este só remédio tem,
não
me culpem em querer remédio tal.
Presença bela, angélica figura,
em quem,
quanto o Céu tinha, nos tem dado;
gesto
alegre, de rosas semeado,
entre
as quais se está rindo a Fermosura;
olhos,
onde tem feito tal mistura
em
cristal branco o preto marchetado,
que
vemos já no verde delicado
não
esperança, mas enveja escura;
brandura,
aviso e graça, que aumentando
a
natural beleza cum desprezo,
com
que, mais desprezada, mais se aumenta;
são
as prisões de um coração que, preso,
seu
mal ao som dos ferros vai cantando,
como
faz a sereia na tormenta.
Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,
y en
lágrimas pasáis la noche y día,
mirad
si es llanto este que os envia
aquella
por quien vos tantas vertistes
Sentid,
mis ojos, bien esta que vistes,
y si
ella lo es, oh gran ventura mia!
por
muy bien empleadas las habría
mil
cuentas que por esta sola distes.
Mas
una cosa mucho deseada,
aunque
se vea cierta, no es creída,
cuanto
más esta, que me es enviada.
Pero
digo que aunque sea fingida,
que
basta que por lágrima sea dada,
porque
sea por lágrima tenida.
Quando a suprema dor muito me aperta,
se
digo que desejo esquecimento,
é
força que se faz ao pensamento,
de
que a vontade livre desconserta.
Assi,
de erro tão grave me desperta
a
luz do bem regido entendimento,
que
mostra ser engano ou fingimento
dizer
que em tal descanso mais se acerta.
Porque
essa própria imagem, que na mente
me
representa o bem de que careço,
faz-mo
de um certo modo ser presente.
Ditosa
é, logo, a pena que padeço,
pois
que da causa dela em mim se sente
um
bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
Quando cuido no tempo que, contente,
vi
as pérolas, neve, rosa e ouro,
como
quem vê por sonhos um tesouro,
parece
tenho tudo aqui presente.
Mas
tanto que se passa este acidente,
e
vejo o quão distante de vós mouro,
temo
quanto imagino por agouro,
porque
d'imaginar também me ausente.
Já
foram dias em que por ventura
vos
vi, Senhora (se, assi dizendo, posso
co
coração seguro estar sem medo);
Agora,
em tanto mal não mo assegura
a
própria fantasia e nojo vosso:
eu
não posso entender este segredo!
Quando da bela vista e doce riso,
tomando
estão meus olhos mantimento,
tão
enlevado sinto o pensamento
que
me faz ver na terra o Paraíso.
Tanto
do bem humano estou diviso,
que
qualquer outro bem julgo por vento;
assi,
que em caso tal, segundo sento,
assaz
de pouco faz quem perde o siso.
Em
vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque
quem vossas cousas claro sente,
sentirá
que não pode merecê las.
Que
de tanta estranheza sois ao mundo,
que
não é de estranhar, Dama excelente,
que
quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.
Quando de minhas mágoas a comprida
maginação
os olhos me adormece,
em
sonhos aquela alma me aparece
que
para mim foi sonho nesta vida.
Lá
nüa soïdade, onde estendida
a
vista pelo campo desfalece,
corro
par'ela; e ela então parece
que
mais de mim se alonga, compelida.
Brado:
Não me fujais, sombra benina!
Ela
(os olhos em mim cum brando pejo,
como
quem diz que já não pode ser),
torna
a fugir-me; e eu, gritando: Dina...
antes
que diga mene, alardo, e vejo
que
nem um breve engano posso ter.
Quando o Sol encoberto vai mostrando
ao
mundo a luz quieta e duvidosa,
ao
longo de üa praia deleitosa,
vou
na minha inimiga imaginando.
Aqui
a vi, os cabelos concertando;
ali,
co a mão na face tão fermosa;
aqui,
falando alegre, ali cuidosa;
agora
estando queda, agora andando.
aqui
esteve sentada, ali me viu,
erguendo
aqueles olhos tão isentos;
aqui
movida um pouco, ali segura;
qui
se entristeceu, ali se riu;
enfim,
nestes cansados pensamentos
passo
esta vida vã, que sempre dura.
Quando, Senhora, quis Amor que amasse
essa
grã perfeição e gentileza,
logo
deu por sentença que a crueza
em
vosso peito amor acrescentasse.
Determinou
que nada me apartasse,
nem
desfavor cruel, nem aspereza;
mas
que em minha raríssima firmeza
vossa
isenção cruel se executasse.
E,
pois tendes aqui oferecida e
sta
alma vossa a vosso sacrifício,
acabai
de fartar vossa vontade.
Não
lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabará
morrendo em seu oficio,
sua
fé defendendo e lealdade.
Quando se vir com água o fogo arder,
e
misturar co dia a noite escura,
e a
terra se vir naquela altura
em
que se vem os Céus prevalecer;
o
Amor por razão mandado ser,
e a
todos ser igual nossa ventura,
com
tal mudança, vossa formosura
então
a poderei deixar de ver.
Porém
não sendo vista esta mudança
no
mundo (como claro está não ver-se),
não
se espere de mim deixar de ver-vos.
Que
basta estar em vós minha esperança,
o
ganho de minha alma, e o perder-se,
para
não deixar nunca de querer-vos.
Quando vejo que meu destino ordena
que
por me exprimentar de vós me aparte,
deixando
de meu bem tão grande parte
que
a mesma culpa fica grave pena;
o
duro disfavor que me condena,
quando
pela memória se reparte,
endurece
os sentidos de tal arte
que
a dor da ausência fica mais pequena.
Pois
como pode ser que na mudança
daquilo
que mais quero estê tão fora
de
me não apartar também da vida?
Eu
refrearei tão áspera esquivança;
porque
mais sentirei partir, Senhora,
sem
sentir muito a pena da partida.
Quantas vezes do fuso s'esquecia
Daliana,
banhando o lindo seio,
tantas
vezes de um áspero receio
salteado,
Laurénio a cor perdia.
Ela,
que a Sílvio mais que a si queria,
para
podê lo ver não tinha meio:
ora,
como curara o mal alheio
quem
o seu mal tão mal curar sabia?
Ele,
que viu tão clara esta verdade,
com
soluços, dezia (que a espessura
comovia,
de mágoa, a piedade):
—Como
pode a desordem da Natura
fazer
tão diferentes na vontade
a
quem fez tão conformes na ventura?
Que levas, cruel Morte?- Um claro dia.
- A
que horas o tomaste?- Amanhecendo.
-
Entendes o que levas?- Não o entendo.
-
Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.
Seu
corpo quem o goza?- A terra fria.
-
Como ficou sua luz?- Anoitecendo.
-
Lusitânia que diz?- Fica dizendo:
Enfim,
não mereci Dona Maria.
Mataste
quem a viu?- Já morto estava.
-
Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.
- E
quem o faz calar?- Minha vontade.
Na
corte que ficou?- Saudade brava.
-
Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;
mas
fica que chorar sua beldade.
Que me quereis, perpétuas saudades?
Com
que esperança ainda me enganais?
Que
o tempo que se vai não torna mais,
e se
torna, não tornam as idades.
Razão
é já, ó anos!, que vos vades,
porque
estes tão ligeiros que passais,
nem
todos para um gosto são iguais,
nem
sempre são conformes as vontades.
Aquilo
a que já quis é tão mudado
que
quase é outra causa: porque os dias
têm
o primeiro gosto já danado.
Esperanças
de novas alegrias
não
mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
que
do contentamento são espias.
Quem fosse acompanhando juntamente
por
esses verdes campos a avezinha
que,
despois de perder um bem que tinha,
não
sabe mais que cousa é ser contente!
[E]
quem fosse apartando-se da gente,
ela,
por companheira e por vizinha,
me
ajudasse a chorar a pena minha,
eu a
ela o pesar que tanto sente!
Ditosa
ave! que, ao menos, se a Natura
a
seu primeiro bem não dá segundo,
dá-lhe
o ser triste a seu contentamento.
Mas
triste quem de longe quis ventura,
que,
para respirar, lhe falte o vento,
e,
para tudo, enfim, lhe falte o mundo!
Que modo tão sutil da natureza,
para
fugir ao mundo, e seus enganos,
permite
que se esconda em tenros anos,
debaixo
de um burel tanta beleza!
Mas
esconder se não pode aquela alteza
e
gravidade de olhos soberanos,
a
cujo resplandor entre os humanos
resistência
não sinto, ou fortaleza.
Quem
quer livre ficar de dor e pena,
vendo
a ou trazendo a na memória,
da
mesma razão sua se condena.
Porque
quem mereceu ver tanta glória,
cativo
há de ficar; que Amor ordena
que
de juro tenha ela esta vitória.
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
vendo-vos
com juízo sossegado,
se o
Minino que de olhos é privado,
nas
mininas dos vossos olhos mora?
Ali
manda, ali reina, ali namora,
ali
vive das gentes venerado;
que
o vivo lume e o rosto delicado,
imagens
são, nas quais o Amor se adora.
Quem
vê que em branca neve nascem rosas
que
fios crespos de ouro vão cercando,
se
por entre esta luz a vista passa,
raios
de ouro verá, que as duvidosas
almas
estão no peito traspassando,
assi
como um cristal o Sol traspassa...
Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
com
humano saber, e não divino,
ficará
de tamanha culpa dino
quamanha
ficais tendo em contemplar-vos.
Não
pretenda ninguém de louvar dar-vos,
por
mais que raro seja e peregrino:
que
vossa fermosura eu imagino
que
Deus a Ele só quis comparar-vos.
Ditosa
esta alma vossa, que quisestes
em
posse pôr de prenda tão subida,
como,
Senhora, foi a que me destes.
Melhor
a guardarei que a própria vida;
que,
pois mercê tamanha me fizestes,
de
mim será jamais nunca esquecida.
Quem quiser ver d'Amor üa excelência
onde
sua fineza mais se apura,
atente
onde me põe minha ventura,
por
ter de minha fé experiência.
Onde
lembranças mata a longa ausência,
em
temeroso mar, em guerra dura,
ali
a saudade está segura,
quando
mor risco corre a paciência.
Mas
ponha me Fortuna e o duro Fado
em
nojo, morte, dano e perdição,
ou
em sublime e próspera ventura;
Ponha
me, enfim, em baixo ou alto estado;
que
até na dura morte me acharão
na
língua o nome, n'alma a vista pura.
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
o
lindo ser de vossos olhos belos,
se
não perder a vista só em vê los,
já
não paga o que deve a vosso gesto.
Este
me parecia preço honesto;
mas
eu, por de vantagem merecê los,
dei
mais a vida e alma por querê los,
donde
já me não fica mais de resto.
Assi
que a vida e alma e esperança
e
tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o
proveito disso eu só o levo.
Porque
é tamanha bem aventurança
o
dar vos quanto tenho e quanto posso
que,
quanto mais vos pago, mais vos devo.
Quem vos levou de mim, saudoso estado,
que
tanta sem-razão comigo usastes?
Quem
foi, por quem tão presto me negastes,
esquecido
de todo o bem passado?
Trocastes-me
um descanso em um cuidado
tão
duro, tão cruel, qual m'ordenastes;
a
fé, que tínheis dado, me negastes,
quando
mais nela estava confiado.
Vivia
sem receio deste mal;
Fortuna,
que tem tudo a sua mercê,
amor
com desamor me revolveu.
Bem
sei que neste caso nada val,
que
quem naceu chorando, justo é
que
pague com chorar o que perdeu.
Que pode já fazer minha ventura
que
seja para meu contentamento.
Ou
como fazer devo fundamento
de
cousa que o não tem, nem é segura?
Que
pena pode ser tão certa e dura
que
possa ser maior que meu tormento?
Ou
como receará meu pensamento
os
males, se com eles mais se apura?
Como
quem se costuma de pequeno
com
peçonha criar por mão ciente,
da
qual o uso já o tem seguro;
assi
de acostumado co veneno,
o
uso de sofrer meu mal presente
me
faz não sentir já nada o futuro.
Que poderei do mundo já querer,
que
naquilo em que pus tamanho amor,
não
vi senão `desgosto e desamor,
e
morte, enfim, que mais não pode ser!
Pois
vida me não farta de viver,
pois
já sei que não mata grande dor,
se
cousa há que mágoa dê maior,
eu a
verei; que tudo posso ver.
A
morte, a meu pesar, me assegurou
de
quanto mal me vinha; já perdi
o
que perder o medo me ensinou.
Na
vida desamor somente vi,
na
morte a grande dor que me ficou:
parece
que para isto só nasci!
A D. Luís de Ataíde, Vizo-Rei
Que
vençais no Oriente tantos Reis,
que
de novo nos deis da Índia o Estado,
que
escureceis a fama que ganhado
tinham
os que a ganharam a infiéis;
que
do tempo tenhais vencido as leis,
que
tudo, enfim, vençais co tempo armado,
mais
é vencer na pátria, desarmado,
os
monstros e as Quimeras que venceis.
E
assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e
por armas fazer que, sem segundo,
vosso
nome no mundo ouvido seja,
o
que vos dá mais nome inda no mundo,
é
vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas
ingratidões, tão grande enveja!
Se a Fortuna inquieta e mal olhada,
que
a justa lei do Céu consigo infama,
a
vida quieta, que ela mais desama,
me
concedera, honesta e repousada;
pudera
ser que a Musa, alevantada
com
luz de mais ardente e viva flama.
fizera
ao Tejo lá na pátria cama
adormecer
co som da lira amada.
Porém,
pois o destino trabalhoso,
que
me escurece a Musa fraca e lassa,
louvor
de tanto preço não sustenta;
a
vossa de louvar-me pouco escassa,
outro
sujeito busque valeroso,
tal
qual em vós ao mundo se apresenta.
Se algü'hora em vós a piedade
de
tão longo tormento se sentira,
não
consentira Amor que me partira
de
vossos olhos, minha saüdade.
Apartei
me de vós, mas a vontade,
que
pelo natural n'alma vos tira,
me
faz crer que esta ausência é de mentira;
mas
inda mal, porém, porque é verdade.
Ir
me hei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão
tristes lágrimas vingança
nos
olhos de quem fostes mantimento.
E
assi darei vida a meu tormento;
que,
enfim, cá me achará minha lembrança
sepultado
no vosso esquecimento.
Se as penas com que Amor tão mal me
trata
quiser
que tanto tempo viva delas
que
veja escuro o lume das estrelas
em
cuja vista o meu se acende e mata;
e se
o tempo, que tudo desbarata,
secar
as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando
a linda cor das tranças belas
mudada
de ouro fino em bela prata;
vereis,
Senhora, então também mudado
o
pensamento e aspereza vossa,
quando
não sirva já sua mudança.
Suspirareis
então pelo passado,
em
tempo quando executar-se possa
em
vosso arrepender minha vingança.
Se de vosso fermoso e lindo gesto
nasceram
lindas flores para os olhos,
que
para o peito são duros abrolhos,
em
mim se vê mui claro e manifesto:
pois
vossa fermosura e vulto honesto
em
os ver, de boninas vi mil molhos;
mas
se meu coração tivera antolhos,
não
vira em vós seu dano o mal funesto.
Um
mal visto por bem, um bem tristonho,
que
me traz elevado o pensamento
em
mil, porém diversas, fantasias,
nas
quais eu sempre ando, e sempre sonho;
e
vós não cuidais mais que em meu tormento,
em
que fundais as vossas alegrias.
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro,
contra o mar e contra o vento;
as
forças lhe faltavam já e o alento,
Amor
lhas refazia e renovava.
Despois
que viu que a alma lhe faltava,
não
esmorece; mas, no pensamento,
(que
a língua já não pode) seu intento
ao
mar que lho cumprisse, encomendava.
Ó
mar (dezia o moço só consigo),
já
te não peço a vida; só queria
que
a de Hero me salves; não me veja...
Este
meu corpo morto, lá o desvia
daquela
torre. Sê me nisto amigo,
pois
no meu maior bem me houveste enveja!
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
mas,
porque assi o pedia o coração,
quis
Amor ser vencido da Razão.
Ora
que caso pode haver maior!
Novo
modo de morte, e nova dor!
Estranheza
de grande admiração,
que
perde suas forças a afeição,
porque
não perca a pena o seu rigor.
Pois
nunca houve fraqueza no querer,
mas
antes muito mais se esforça assim
um
contrário com outro por vencer.
Mas
a Razão, que a luta vence, enfim,
não
creio que é razão; mas há de ser
inclinação
que eu tenho contra mim.
Sempre, cruel Senhora, receei,
medindo
vossa grã desconfiança,
que
desse em desamor vossa tardança,
e
que me perdesse eu, pois vos amei.
Perca-se,
enfim, já tudo o que esperei,
pois
noutro amor já tendes esperança.
Tão
patente será vossa mudança,
quanto
eu encobri sempre o que vos dei.
Dei-vos
a alma, a vida e o sentido;
de
tudo o que em mim há vos fiz s
enhora.
Prometeis e negais o mesmo Amor.
Agora
tal estou que, de perdido,
não
sei por onde vou, mas algü'hora
vos
dará tal lembrança grande dor.
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
ontem
vi posto em grau tão excelente,
que
vós, que sois enveja a toda a gente,
só
por mim vos quiséreis ver trocado.
Vi o
gesto suave e delicado
que
já vos fez, contente e descontente,
lançar
ao vento a voz tão docemente
que
fez o ar sereno e sossegado.
Vi
lhe em poucas palavras dizer, quanto
ninguém
diria em muitas; eu só, cego,
magoado
fiquei na doce fala.
Mas
mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um,
porque os corações obriga a tanto;
outra,
porque os estados desiguala.
Senhora já dest'alma, perdoai
de
um vencido de Amor os desatinos,
e
sejam vossos olhos tão beninos
com
este puro amor, que d'alma sai.
A
minha pura fé somente olhai,
e
vede meus extremos se são finos;
e se
de algüa pena forem dinos,
em
mim, Senhora minha, vos vingai.
Não
seja a dor que abrasa o triste peito
causa
por onde pene o coração,
que
tanto em firme amor vos é sujeito.
Guardai-vos
do que alguns, Dama, dirão,
que,
sendo raro em tudo vosso objeito,
possa
morar em vós ingratidão.
Senhora minha, se a Fortuna imiga,
que
em minha fim com todo o Céu conspira,
os
olhos meus de ver os vossos tira,
porque
em mais graves casos me persiga;
comigo
levo esta alma, que se obriga,
na
mor pressa de mar, de fogo, de ira,
a
dar vos a memória, que suspira,
só
por fazer convosco eterna liga.
Nest'alma,
onde a Fortuna pode pouco,
tão
viva vos terei, que frio e fome
vos
não possam tirar, nem vãos perigos.
Antes
co som da voz, trémulo e rouco,
bradando
por vós, só com vosso nome
farei
fugir os ventos e os imigos.
Sentindo se tomada a bela esposa
de
Céfalo, no crime consentido,
para
os montes fugia do marido;
e
não sei se de astuta, ou vergonhosa.
Porque
ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
de
amor cego e forçoso compelido,
após
ela se vai como perdido,
já
perdoando a culpa criminosa.
Deita
se aos pés da Ninfa endurecida,
que
do cioso engano está agravada;
já
lhe pede perdão, já pede a vida.
Ó
força de afeição desatinada!
Que
da culpa contra ele cometida,
perdão
pedia à parte que é culpada!
Se pena por amar vos se merece,
quem
dela livre está? Ou quem isento?
Que
alma, que razão, qu'entendimento,
em
ver vos se não rende e obedece?
Que
mor glória na vida s'oferece
que
ocupar se em vós o pensamento?
Toda
a pena cruel, todo o tormento
em
ver vos se não sente, mas esquece.
Mas
se merece pena quem amando
contino
vos está, se vos ofende,
o
mundo matareis, que todo é vosso.
Em
mim podeis, Senhora, ir começando,
que
claro se conhece e bem se entende
amar
vos quanto devo e quanto posso.
Se tanta pena tenho merecida
em
pago de sofrer tantas durezas,
provai,
Senhora, em mim vossas cruezas,
que
aqui tendes ua alma oferecida.
Nela
experimental, se sois servida,
desprezos,
disfavores e asperezas;
que
mores sofrimentos e firmezas
sustentarei
na guerra desta vida.
Mas
contra vossos olhos quais serão?
Forçado
é que tudo se lhe renda;
mas
porei por escudo o coração.
Porque
em tão dura e áspera contenda,
é
bem que, pois não acho defensão,
com
me meter nas lanças me defenda.
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão,
pai de Raquel, serrana bela;
mas
não servia ao pai, servia a ela,
e a
ela só por prémio pretendia.
Os
dias, na esperança de um só dia,
passava,
contentando se com vê la;
porém
o pai, usando de cautela,
em
lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo
o triste pastor que com enganos
lhe
fora assi negada a sua pastora,
como
se a não tivera merecida;
começa
de servir outros sete anos,
dizendo:
—Mais servira, se não fora
para
tão longo amor tão curta a vida.
Se tomar minha pena em penitência
do
erro em que caiu o pensamento,
não
abranda, mas dobra meu tormento,
a
isto, e a mais, obriga a paciência.
E se
üa cor de morto na aparência,
um
espalhar suspiros vãos ao vento,
em
vós não faz, Senhora, movimento,
fique
meu mal em vossa consciência.
E se
de qualquer áspera mudança
toda
a vontade isenta Amor castiga
(como
eu vi bem no mal que me condena);
e se
em vós não s'entende haver vingança,
será
forçado (pois Amor me obriga)
que
eu só de vossa culpa pague a pena.
Suspiros inflamados, que cantais
a
tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu
mouro e não vos levo, porque hei medo
que
ao passar do Lete vos percais.
Escritos
para sempre já ficais
onde
vos mostrarão todos co dedo
como
exemplo de males; que eu concedo
que
para aviso d'outros estejais.
Em
quem, pois, virdes falsas esperanças
d'Amor
e da Fortuna, cujos danos
alguns
terão por bem aventuranças,
dizei
lhe que os servistes muitos anos,
e
que em Fortuna tudo são mudanças,
e
que em Amor não há senão enganos.
Sustenta meu viver üa esperança
derivada
de um bem tão desejado
que,
quando nela estou mais confiado,
mor
dúvida me põe qualquer mudança.
E
quando inda este bem na mor pujança
de
seus gostos me tem mais enlevado,
me
atormenta então ver eu que, alcançado
será
por quem de vós não tem lembrança.
Assi,
que nestas redes enlaçado,
a
penas dou a vida , sustentando
üa
nova matéria a meu cuidado .
Suspiros
d'alma tristes arrancando,
dos
silvos de ua pedra acompanhado,
estou
matérias tristes lamentando.
Tal mostra dá de si vossa figura,
Sibela,
clara luz da redondeza,
que
as forças e o poder da natureza
com
sua claridade mais apura.
Quem
viu üa confiança tão segura,
tão
singular esmalte da beleza,
que
não padeça mais, se ter defesa
contra
vossa gentil vista procura?
Eu,
pois, por escusar essa esquivança,
a
razão sujeitei ao pensamento,
que,
rendida, os sentidos lhe entregaram.
Se
vos ofende o meu atrevimento,
inda
podeis tomar nova vingança
nas
relíquias da vida, que escaparam.
Tanto de meu estado me acho incerto,
que
em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem
causa, juntamente choro e rio,
o
mundo todo abarco e nada aperto.
É
tudo quanto sinto, um desconcerto;
da
alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora
espero, agora desconfio,
agora
desvario, agora acerto.
Estando
em terra, chego ao Céu voando,
num'hora
acho mil anos, e é de jeito
que
em mil anos não posso achar ü'hora.
Se
me pergunta alguém porque assi ando,
respondo
que não sei; porém suspeito
que
só porque vos vi, minha Senhora.
Tempo é já que minha confiança
se
desça de üa falsa opinião;
mas
Amor não se rege por razão;
não
posso perder, logo, a esperança.
A
vida, si; que üa áspera mudança
não
deixa viver tanto um coração.
E eu
na morte tenho a salvação?
Si,
mas quem a deseja não a alcança.
Forçado
é logo que eu espere e viva.
Ah!
dura lei de Amor, que não consente
quietação
nüa alma que é cativa!
Se
hei de viver, enfim, forçadamente,
para
que quero a glória fugitiva
de
üa esperança vã que me atormente?
Todo o animal da calma repousava,
só
Liso o ardor dela não sentia;
que
o repouso do fogo em que ardia
consistia
na Ninfa que buscava.
Os
montes parecia que abalava
o
triste som das mágoas que dezia;
mas
nada o duro peito comovia,
que
na vontade d'outrem posto estava.
Cansado
já de andar pela espessura,
no
tronco d'üa faia, por lembrança,
escreveu
estas palavras de tristeza:
«Nunca
ponha ninguém sua esperança
em
peito feminil, que, de natura,
somente
em ser mudável tem firmeza».
Tomava Daliana por vingança
da
culpa do pastor que tanto amava,
casar
com Gil vaqueiro; e em si vingava
o
erro alheio e pérfida esquivança.
A
discrição segura, a confiança,
as
rosas que seu rosto debuxava,
o
descontentamento lhas secava,
que
tudo muda üa áspera mudança.
Gentil
planta disposta em seca terra,
lindo
fruito de dura mão colhido,
lembranças
d'outro amor, e fé perjura,
tornaram
verde prado em dura serra;
interesse
enganoso, amor fingido,
fizeram
desditosa a fermosura.
Tomou-me vossa vista soberana
adonde
tinha armas mais à mão,
por
mostrar que quem busca defensão
contra
esses belos olhos, que se engana.
Por
ficar da vitória mais ufana,
deixou-me
armar primeiro da Razão;
cuidei
de me salvar, mas foi em vão,
que
contra o Céu não val defensa humana.
Mas
porém se vos tinha prometido
o
vosso alto destino esta vitória,
ser-vos
tudo bem pouco está sabido.
Que,
posto que estivesse apercebido,
não
levais de vencer-me grande glória:
maior
a levo eu de ser vencido.
Transforma se o amador na cousa amada,
por
virtude do muito imaginar;
não
tenho, logo, mais que desejar,
pois
em mim tenho a parte desejada.
Se
nela está minha alma transformada,
que
mais deseja o corpo de alcançar?
Em
si sòmente pode descansar,
pois
consigo tal alma está liada.
Mas
esta linda e pura semideia,
que,
como um acidente em seu sujeito,
assi
co a alma minha se conforma,
está
no pensamento como ideia:
[e]
o vivo e puro amor de que sou feito,
como
a matéria simples busca a forma.
Um mover d'olhos, brando e piadoso,
sem
ver de quê; um riso brando e honesto,
quase
forçado; um doce e humilde gesto,
de
qualquer alegria duvidoso;
um
despejo quieto e vergonhoso;
um
repouso gravíssimo e modesto;
üa
pura bondade, manifesto
indício
da alma, limpo e gracioso;
um
encolhido ousar; üa brandura;
um
medo sem ter culpa; um ar sereno;
um
longo e obediente sofrimento;
esta
foi a celeste fermosura
da
minha Circe, e o mágico veneno
que
pôde transformar meu pensamento.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer
alma farão segura e forte;
porém,
Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm
do confuso mundo o regimento.
Efeitos
mil revolve o pensamento
e
nao sa ~e a que causa se reporte;
mas
sabe que o que é mais que vida e morte,
que
não o alcança humano entendimento.
Doctos
varões darão razões subidas,
mas
são experiências mais provadas,
e
por isso é melhor ter muito visto.
Cousas
há i que passam sem ser cridas
e
cousas cridas há sem ser passadas,
mas
o melhor de tudo é crer em Cristo.
A D. Leonis Pereira
Vós,
Ninfas da gangética espessura,
cantai
suavemente, em vez sonora,
um
grande Capitão, que a roxa Aurora
dos
filhos defendeu da noite escura.
Ajuntou-se
a caterva negra e dura,
que
na Áurea Quersoneso afouta mora,
para
lançar do caro ninho fora
aqueles
que mais podem que a ventura.
Mas
um forte Leão, com pouca gente,
a
multidão tão fera como nécia
destruindo
castiga e torna fraca.
Pois,
ó Ninfas, cantai! que claramente
mais
do que Leonidas fez em Grécia,
o
nobre Leonis fez em Malaca.
Vós outros, que buscais repouso certo
na
vida, com diversos exercícios;
a
quem, vendo do mundo os benefícios,
o
regimento seu está encoberto;
dedicai,
se quereis, ao desconcerto
novas
hontas e cegos sacrifícios;
que,
por castigo igual de antigos vícios,
quer
Deus que andem as cousas por acerto.
Não
caiu neste modo de castigo
quem
pôs culpa à Fortuna, quem sòmente
crê
que acontecimentos há no mundo.
A
grande experiência é grão perigo;
mas
o que a Deus é justo e evidente
parece
injusto aos homens e profundo.
Vós que, d'olhos suaves e serenos,
com
justa causa a vida cativais,
e
que os outros cuidados condenais
por
indevidos, baixos e pequenos;
se ainda
do Amor domésticos venenos
nunca
provastes, quero que saibais
que
é tanto mais o amor despois que amais,
quanto
são mais as causas de ser menos.
E
não cuide ninguém que algum defeito,
quando
na cousa amada s'apresenta,
possa
deminuir o amor perfeito;
antes
o dobra mais; e se atormenta,
pouco
e pouco o desculpa o brando peito;
que
Amor com seus contrairos s'acrescenta.
Vossos olhos, Senhora, que competem
co
Sol em fermosura e claridade,
enchem
os meus de tal suavidade
que
em lágrimas, de vê-los, se derretem.
Meus
sentidos vencidos se sometem
assi
cegos a tanta majestade;
e da
triste prisão, da escuridade,
cheios
de medo, por fugir remetem.
Mas
se nisto me vedes por acerto,
o
áspero desprezo com que olhais
torna
a espertar a alma enfraquecida.
Ó gentil
cura e estranho desconcerto!
Que
fará o favor que vós não dais,