Por Wanda Bannour
Mas, afinal, como se deu o
encontro de Tchernichevsky com Fourier? No de 1848, Tchernichevsky, na idade
dos 20 anos, conhece Khanykov, que lhe apresenta a Teoria da unidade universal e o Tratado
do livre-arbítrio. Kirsanov pertence ao círculo dos altos funcionários oficiais
reunidos ao redor de Boutachevitch-Petrachevsky. Conciliando o desejo de ver a
Rússia libertada do despotismo czarista, esses jovens se apaixonam por Fourier
e, durante as reuniões, leem e comentam suas obras. Pouco a pouco, o grupo se
politiza e almejam estender as reflexões teóricas em projetos práticos visando sublevar
a população do Ural a participar ativamente das insurreições populares. O auge
das atividades de petrachevkystes - aos
quais participam, além do jovem Dostoiévski, espíritos tão abertos e calorosos
tais como Khanykov, Akhtamourov, os irmãos Debout, etc.... – é o banquete
organizado em honra do aniversário de Fourier, a 7 de abril de 1849. Ao fim de
um ano, os membros do grupo serão presos e condenados à morte - ardil sinistro
porque a condenação será no último momento anulada e substituída por trabalhos
forçados.
Então, Tchernichevsky passa
a ler atentamente Fourier e seu jornal é testemunha de sua admiração, de seu espanto,
de suas reservas seguidas de entusiasmo pela teoria da atração passional.
Parece que neste momento,
Fourier exercia muita força, muita intensidade, no estudioso filho de um padre.
E, então, o trabalho na Universidade, no Sovremehnik,
traz ao primeiro plano as pesquisas imediatamente suscetíveis de gerar uma
reflexão prática sobre os problemas russos. Tudo se passa como se
Tchernichevsky resistisse a Fourier, como se o contornasse, apegando-se aos
autores muito diversos, como J. S. Mill, Macaulay, Lessing etc...
Ora, preso na fortaleza,
separado de sua mulher, Olga, a quem adora, Tchernichevsky abre uma brecha no
seu racionalismo materialista; brecha pela qual o que estava reprimido em 1848
se irromperá enfim, dando vazão ao desejo frustrado. Tchernichevsky se esquece
de todas as reservas de que fez em 1848 em relação a Fourier, incluindo a sua
estranheza pelo autor que o fascina e o confunde ao mesmo tempo. Então, em
várias ocasiões, emprega o termo de “gênio” para designar Fourier. É na prisão
que o imperioso desejo traz de volta com toda a força Fourier e a última
palavra da resposta para a questão de O que
fazer? é Fourier quem a pronuncia pela boca de Tchernichevsky.
A utopia fourieriste dá seu
sentido pleno ao combate dos homens por um mundo justo e bom; é o sol ao qual
se dirige o prisioneiro quando arrebenta as suas correntes. Em 1862, na fortaleza
de Pedro e Paulo, o fuerierismo perde a sua estranheza; a utopia não é mais de
toda utópica, mas a verdade de uma situação desastrosa e privada de toda
verdade. A salvação da Rússia está nesta associação agrícola para a qual
Tchernichevsky parece ter pressentido a possibilidade de constituir um
obstáculo ao processo de proletarização. No falanstério, o epicurista
Tchernichevsky reencontra o jardim do filósofo grego e o universal concreto
hegeliano. É com o modo de falar de Fourier que é nos descrito este humanista alegre
ceifando e colhendo à sombra de grandes dosséis de lona regados por jatos de
água fria. Eros e o labor se fecundam reciprocamente; a força se une com a
delicadeza. A Rússia, com seus grandes rios, com suas terras negras
prodigiosamente fecundas, que pouco a pouco recobre terras estéreis, é o lugar
por excelência do falanstério fourieritsta. De fato, a Crimeia é o modelo
agrícola e climático por excelência, mas toda a Rússia pode tornar-se uma vasta
Crimeia. Neste Paraíso terrestre, a mulher e a criança não são mais estes
escravos assustados e servis, reduzidos ao silêncio por uma constante ameaça de
repressão. A mulher é a companheira livre e inteligente dos homens, “a noiva de
todas as noivas”; idosos e crianças trabalham alegremente e são os chefes e ajudantes
de toda a sociedade. A festa é cotidiana, cada noite, orquestras, coros,
danças, espetáculos acontecem nos palácios de alumínio, locais de luxo erigidos
pela ciência; os trabalhadores fourerianos ignoram a lassidão, a exaustão e a
saciedade. Trabalho e amor concorrem para produzir corpos bonitos e vigorosos.
Idosos e crianças são raros. É uma humanidade de adolescentes felizes, de
homens e de mulheres soberbos.
Apoiando-se em Fourier,
Tchernichevsky nos dá não somente a resposta da questão O que fazer? mas demonstra a importância da utopia em um período de
crise. Ele é, para falar com Aristóteles, a causa final de uma ação
revolucionária eficaz. Talvez prevendo o ressurgimento do espírito sacrificial
religioso que estava prestes a surgir na ida ao povo dos narodniki dos anos 70,
Tchernichevsky insiste fortemente sobre a necessidade imperativa de não
esquecer a exigência primeira: a da felicidade.
Quando mais tarde, escreve
outros romances e histórias, Tchernichevsky retomará a ideia fourieritsta dos
danos causados pelo ascetismo que destrói os corpos e os corações,
principalmente, das jovens que não deixam o despotismo familiar senão para o da
opressão conjugal. No jornal de Levitzky,
ele desvela o dilaceramento da condição feminina. Três servas são descritas.
Todas as três preferem a situação precária da mulher sustentada na condição de
esposa, porque, apesar de tudo, tal situação apresenta mais vantagens. Mas, se
a vivência da opressão conjugal para duas delas é inconsciente, para a terceira
não: Maria raciocina longamente sobre o caráter paradoxal da situação
matrimonial e opta, finalmente, com coração pesado, pela situação mais
lucrativa.
Em Uma menina doce, Tchernichevsky vai ainda mais longe em suas
análises: descreve a vida de uma jovem no meio dos raznotchintsy. Ele analisa as causas que a levaram à histeria, a
saber, a castidade forçada à qual está obrigada; os preconceitos de seu meio
redundam na impossibilidade de toda atividade amorosa fora do casamento. Sobre
este ponto, Tchernichevsky pode ser considerado como a ponte lançada entre Fuerier
e Freud. Fourieritsta prático, com uma grande honestidade, igualada apenas à
sua inteligência e generosidade, durante seu longo exílio (5) na Sibéria, Tchernichevsky
não cessa de incitar sua esposa a deixar a Rússia para se instalar em Portugal
e na Itália. Nós compreendemos sua motivação ao ler uma carta endereçada a seu
primo, o historiador Alexandre Pypine, na qual reconhece a razão essencial de
sua insistência o desejo de ser pouco a pouco esquecido e substituído (6) (nas
suas cartas a Olga, ele a aconselha esta partida por motivos de saúde). O que é
perturbador para Tchernichevsky, é que, Fourier foi, para ele, muito mais do
que uma teoria genial, uma utopia sedutora. Mesmo negativamente, privado das
possibilidades da felicidade concreta, ele tentou seguir Fourier educando e desculpando
seus contemporâneos; é assim que sua vida é indissociável de sua atividade de pensador
revolucionário e romancista. O pensamento teórico, a concepção de ação e de
vida, que se reflete em sua produção romanesca, mostram-nos que tudo o que resulta
no fim das contas é a harmonia fourieriana. Sem utopia, a atividade
revolucionária tende a esquecer os seus fins; sem o desejo, a política não é
mais que rotina e cozinha. Poderíamos considerar como plenamente fiel ao
espírito tchernichevskyiano este forte pensamento do poeta Maikov, que ressoa o
estilos marcusianos: “uma época crítica deve ser ao mesmo tempo uma época de
utopia... senão a humanidade estragaria toda a energia das aspirações humanas e
não responderia aos apelos da realidade".
Notas
(5) Preso em 7 de julho de
1862, Tchernichevsky foi levado para a Sibéria em 20 de maio de 1864. Até 1872,
trabalhou na fábrica de Alexandrovsk e em 11 de janeiro de 1872 foi
transportado para Viliousk na Sibéria. Ele ficou lá até 27 de outubro de 1883,
quando foi transferido para Astrakhan sob prisão domiciliar. Não foi senão até
27 de junho de 1889 que ele obteve uma transferência para sua cidade natal
Saratov, onde morreu quatro meses depois, em 17 de outubro de 1889.
(6) Olga jamais cedeu às
suas súplicas e Tchernichevsky morreu em seus braços.
BANNOUR, Wanda. “Le fourierisme de Nicolas Tchernichevsky”,
in: Actualité de Fourier: colloque
d’Are-et-Senans sous La direction de Henri Lefebvre. Éditions Anthropos:
Paris, 1975. Trad.:J.P.A.G)
O fourierismo de Nicolas Tchernichevsky – Parte 1