quarta-feira, 1 de junho de 2022

O fourierismo de Nicolas Tchernichevsky – Parte 2

O que fazer?

Por Wanda Bannour

Mas, afinal, como se deu o encontro de Tchernichevsky com Fourier? No de 1848, Tchernichevsky, na idade dos 20 anos, conhece Khanykov, que lhe apresenta a Teoria da unidade universal e o Tratado do livre-arbítrio. Kirsanov pertence ao círculo dos altos funcionários oficiais reunidos ao redor de Boutachevitch-Petrachevsky. Conciliando o desejo de ver a Rússia libertada do despotismo czarista, esses jovens se apaixonam por Fourier e, durante as reuniões, leem e comentam suas obras. Pouco a pouco, o grupo se politiza e almejam estender as reflexões teóricas em projetos práticos visando sublevar a população do Ural a participar ativamente das insurreições populares. O auge das atividades de petrachevkystes - aos quais participam, além do jovem Dostoiévski, espíritos tão abertos e calorosos tais como Khanykov, Akhtamourov, os irmãos Debout, etc.... – é o banquete organizado em honra do aniversário de Fourier, a 7 de abril de 1849. Ao fim de um ano, os membros do grupo serão presos e condenados à morte - ardil sinistro porque a condenação será no último momento anulada e substituída por trabalhos forçados.

Então, Tchernichevsky passa a ler atentamente Fourier e seu jornal é testemunha de sua admiração, de seu espanto, de suas reservas seguidas de entusiasmo pela teoria da atração passional.

Parece que neste momento, Fourier exercia muita força, muita intensidade, no estudioso filho de um padre. E, então, o trabalho na Universidade, no Sovremehnik, traz ao primeiro plano as pesquisas imediatamente suscetíveis de gerar uma reflexão prática sobre os problemas russos. Tudo se passa como se Tchernichevsky resistisse a Fourier, como se o contornasse, apegando-se aos autores muito diversos, como J. S. Mill, Macaulay, Lessing etc...

Ora, preso na fortaleza, separado de sua mulher, Olga, a quem adora, Tchernichevsky abre uma brecha no seu racionalismo materialista; brecha pela qual o que estava reprimido em 1848 se irromperá enfim, dando vazão ao desejo frustrado. Tchernichevsky se esquece de todas as reservas de que fez em 1848 em relação a Fourier, incluindo a sua estranheza pelo autor que o fascina e o confunde ao mesmo tempo. Então, em várias ocasiões, emprega o termo de “gênio” para designar Fourier. É na prisão que o imperioso desejo traz de volta com toda a força Fourier e a última palavra da resposta para a questão de O que fazer? é Fourier quem a pronuncia pela boca de Tchernichevsky.

A utopia fourieriste dá seu sentido pleno ao combate dos homens por um mundo justo e bom; é o sol ao qual se dirige o prisioneiro quando arrebenta as suas correntes. Em 1862, na fortaleza de Pedro e Paulo, o fuerierismo perde a sua estranheza; a utopia não é mais de toda utópica, mas a verdade de uma situação desastrosa e privada de toda verdade. A salvação da Rússia está nesta associação agrícola para a qual Tchernichevsky parece ter pressentido a possibilidade de constituir um obstáculo ao processo de proletarização. No falanstério, o epicurista Tchernichevsky reencontra o jardim do filósofo grego e o universal concreto hegeliano. É com o modo de falar de Fourier que é nos descrito este humanista alegre ceifando e colhendo à sombra de grandes dosséis de lona regados por jatos de água fria. Eros e o labor se fecundam reciprocamente; a força se une com a delicadeza. A Rússia, com seus grandes rios, com suas terras negras prodigiosamente fecundas, que pouco a pouco recobre terras estéreis, é o lugar por excelência do falanstério fourieritsta. De fato, a Crimeia é o modelo agrícola e climático por excelência, mas toda a Rússia pode tornar-se uma vasta Crimeia. Neste Paraíso terrestre, a mulher e a criança não são mais estes escravos assustados e servis, reduzidos ao silêncio por uma constante ameaça de repressão. A mulher é a companheira livre e inteligente dos homens, “a noiva de todas as noivas”; idosos e crianças trabalham alegremente e são os chefes e ajudantes de toda a sociedade. A festa é cotidiana, cada noite, orquestras, coros, danças, espetáculos acontecem nos palácios de alumínio, locais de luxo erigidos pela ciência; os trabalhadores fourerianos ignoram a lassidão, a exaustão e a saciedade. Trabalho e amor concorrem para produzir corpos bonitos e vigorosos. Idosos e crianças são raros. É uma humanidade de adolescentes felizes, de homens e de mulheres soberbos.

Apoiando-se em Fourier, Tchernichevsky nos dá não somente a resposta da questão O que fazer? mas demonstra a importância da utopia em um período de crise. Ele é, para falar com Aristóteles, a causa final de uma ação revolucionária eficaz. Talvez prevendo o ressurgimento do espírito sacrificial religioso que estava prestes a surgir na ida ao povo dos narodniki dos anos 70, Tchernichevsky insiste fortemente sobre a necessidade imperativa de não esquecer a exigência primeira: a da felicidade.

Quando mais tarde, escreve outros romances e histórias, Tchernichevsky retomará a ideia fourieritsta dos danos causados pelo ascetismo que destrói os corpos e os corações, principalmente, das jovens que não deixam o despotismo familiar senão para o da opressão conjugal. No jornal de Levitzky, ele desvela o dilaceramento da condição feminina. Três servas são descritas. Todas as três preferem a situação precária da mulher sustentada na condição de esposa, porque, apesar de tudo, tal situação apresenta mais vantagens. Mas, se a vivência da opressão conjugal para duas delas é inconsciente, para a terceira não: Maria raciocina longamente sobre o caráter paradoxal da situação matrimonial e opta, finalmente, com coração pesado, pela situação mais lucrativa.

Em Uma menina doce, Tchernichevsky vai ainda mais longe em suas análises: descreve a vida de uma jovem no meio dos raznotchintsy. Ele analisa as causas que a levaram à histeria, a saber, a castidade forçada à qual está obrigada; os preconceitos de seu meio redundam na impossibilidade de toda atividade amorosa fora do casamento. Sobre este ponto, Tchernichevsky pode ser considerado como a ponte lançada entre Fuerier e Freud. Fourieritsta prático, com uma grande honestidade, igualada apenas à sua inteligência e generosidade, durante seu longo exílio (5) na Sibéria, Tchernichevsky não cessa de incitar sua esposa a deixar a Rússia para se instalar em Portugal e na Itália. Nós compreendemos sua motivação ao ler uma carta endereçada a seu primo, o historiador Alexandre Pypine, na qual reconhece a razão essencial de sua insistência o desejo de ser pouco a pouco esquecido e substituído (6) (nas suas cartas a Olga, ele a aconselha esta partida por motivos de saúde). O que é perturbador para Tchernichevsky, é que, Fourier foi, para ele, muito mais do que uma teoria genial, uma utopia sedutora. Mesmo negativamente, privado das possibilidades da felicidade concreta, ele tentou seguir Fourier educando e desculpando seus contemporâneos; é assim que sua vida é indissociável de sua atividade de pensador revolucionário e romancista. O pensamento teórico, a concepção de ação e de vida, que se reflete em sua produção romanesca, mostram-nos que tudo o que resulta no fim das contas é a harmonia fourieriana. Sem utopia, a atividade revolucionária tende a esquecer os seus fins; sem o desejo, a política não é mais que rotina e cozinha. Poderíamos considerar como plenamente fiel ao espírito tchernichevskyiano este forte pensamento do poeta Maikov, que ressoa o estilos marcusianos: “uma época crítica deve ser ao mesmo tempo uma época de utopia... senão a humanidade estragaria toda a energia das aspirações humanas e não responderia aos apelos da realidade".

Notas

(5) Preso em 7 de julho de 1862, Tchernichevsky foi levado para a Sibéria em 20 de maio de 1864. Até 1872, trabalhou na fábrica de Alexandrovsk e em 11 de janeiro de 1872 foi transportado para Viliousk na Sibéria. Ele ficou lá até 27 de outubro de 1883, quando foi transferido para Astrakhan sob prisão domiciliar. Não foi senão até 27 de junho de 1889 que ele obteve uma transferência para sua cidade natal Saratov, onde morreu quatro meses depois, em 17 de outubro de 1889.

(6) Olga jamais cedeu às suas súplicas e Tchernichevsky morreu em seus braços.

BANNOUR, Wanda. “Le fourierisme de Nicolas Tchernichevsky”, in: Actualité de Fourier: colloque d’Are-et-Senans sous La direction de Henri Lefebvre. Éditions Anthropos: Paris, 1975. Trad.:J.P.A.G)

O fourierismo de Nicolas Tchernichevsky – Parte 1

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