Por JPGA
Fernando
Antonio Nogueira Pessoa ou, simplesmente, Fernando
Pessoa, é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa. Um fato
sobre sua vida bem pouco conhecido é que, até os 19 anos de idade, Fernando
Pessoa foi criado na África do Sul, onde seu pai era cônsul, e o que, em parte,
explica sua fluência no idioma inglês, pelo qual também compôs poemas, como Sonets (1917) e English Poems (1921). No ano de 1907, retorna a Portugal. Pouco
tempo depois, inicia sua carreira literária escrevendo em diversas revistas,
dentre as quais, a referência do Modernismo português, Orfeu (1915). Nessa época, estabeleceu laços de amizade com os
poetas Sá Carneiro e Almada Negreiros. Em 1914, criou seus principais heterônimos:
Alberto Caiero, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Apesar da perfeição formal, lírico e antirromântico de seu estilo
poético, Fernando Pessoal publicou apenas um livro em vida: Mensagem (1934), antologia poética que
visa reconstruir o mito da fundação da nação portuguesa.
Após
o final da Guerra de Reconquista, com a expulsão dos povos mouriscos da Europa,
os países da península ibérica, Portugal e Espanha, construíram sua identidade
nacional sob o signo da Igreja Católica Apostólica Romana. Com isso,
comunidades não cristãs, como, por exemplo, a dos judeus, que sempre foram
tolerados pelos reinos muçulmanos, passaram a ser perseguidos pelos Estados
recém constituídos, através do Tribunal do Santo Ofício, culminando com a sua
expulsão. Ainda que implacável, no entanto, a inquisição portuguesa foi mais
benevolente com o povo hebreu, que, através de negociações, diga-se, de passagem,
financeiras, tanto com o rei de Portugal como com o papado, gozou de períodos
de relativa estabilidade e paz. Assim, a influência judaica, mesmo que de modo
sub-reptício, foi marcante na cultura portuguesa. Não deixa de ser curioso,
portanto, que a principal obra nacionalista de Fernando Pessoa, Mensagem, remeta a simbolismos
claramente judaizantes como o messianismo – no caso, D. Sebastião – e o Quinto
Império, que na época, quando de seu surgimento, foram condenados pela Santa
Igreja. A julgar pela tese Gilberto Freyre, o português, enquanto povo miscigenado,
talvez se enxergue em Mensagem, retrato
realisticamente utópico do essencial da alma portuguesa.
MENSAGEM
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum
Nota
Preliminar
O
entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua
cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos,
e ele um morto para eles.
A
primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme
vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir
simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar.
A
segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não
criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se
sente o que está além do símbolo, sem que se veja.
A
terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro
nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo.
Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no
alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto
se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver
estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se
tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.
A
quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias,
que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com
vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição,
como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a
cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não
podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento
de símbolos diferentes.
A
quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando
a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento
e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que
são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou
escrevendo.
D. Sebastião |
PRIMEIRA PARTE: BRASÃO
Bellum sine bello.
I.
OS CAMPOS
PRIMEIRO
/ O DOS CASTELOS
A
Europa jaz, posta nos cotovelos:
De
Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E
toldam-lhe românticos cabelos
Olhos
gregos, lembrando.
O
cotovelo esquerdo é recuado;
O
direito é em ângulo disposto.
Aquele
diz Itália onde é pousado;
Este
diz Inglaterra onde, afastado,
A
mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita,
com olhar sphyngico e fatal,
O
Ocidente, futuro do passado.
O
rosto com que fita é Portugal.
SEGUNDO
/ O DAS QUINAS
Os
Deuses vendem quando dão.
Comprase
a glória com desgraça.
Ai
dos felizes, porque são
Só o
que passa!
Baste
a quem baste o que Ihe basta
O
bastante de Ihe bastar!
A
vida é breve, a alma é vasta:
Ter
é tardar.
Foi
com desgraça e com vileza
Que
Deus ao Cristo definiu:
Assim
o opôs à Natureza
E
Filho o ungiu.
II.
OS CASTELOS
PRIMEIRO
/ ULISSES
O
mytho é o nada que é tudo.
O
mesmo sol que abre os céus
É um
mytho brilhante e mudo —-
O
corpo morto de Deus,
Vivo
e desnudo.
Este,
que aqui aportou,
Foi
por não ser existindo.
Sem
existir nos bastou.
Por
não ter vindo foi vindo
E
nos criou.
Assim
a lenda se escorre
A
entrar na realidade,
E a
fecundá-la decorre.
Em
baixo, a vida, metade
De
nada, morre.
SEGUNDO
/ VIRIATO
Se a
alma que sente e faz conhece
Só
porque lembra o que esqueceu,
Vivemos,
raça, porque houvesse
Memória
em nós do instinto teu.
Nação
porque reencarnaste,
Povo
porque ressuscitou
Ou
tu, ou o de que eras a haste —
Assim
se Portugal formou.
Teu
ser é como aquela fria
Luz
que precede a madrugada,
E é
já o ir a haver o dia
Na
antemanhã, confuso nada.
TERCEIRO
/ O CONDE D. HENRIOUE
Todo
começo é involuntário.
Deus
é o agente.
O
herói a si assiste, vário
E
inconsciente.
À
espada em tuas mãos achada
Teu
olhar desce.
“Que
farei eu com esta espada?”
Ergueste-a,
e fez-se.
QUARTO
/ D. TAREJA
As
nações todas são mystérios.
Cada
uma é todo o mundo a sós.
Ó
mãe de reis e avó de impérios,
Vela
por nós!
Teu
seio augusto amamentou
Com
bruta e natural certeza
O
que, imprevisto, Deus fadou.
Por
ele reza!
Dê
tua prece outro destino
A
quem fadou o instinto teu!
O
homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas
todo vivo é eterno infante
Onde
estás e não há o dia.
No
antigo seio, vigilante,
De
novo o cria!
QUINTO
/ D. AFONSO HENRIQUES
Pai,
foste cavaleiro.
Hoje
a vigília é nossa.
Dá-nos
o exemplo inteiro
E a
tua inteira força!
Dá,
contra a hora em que, errada,
Novos
infiéis vençam,
A
bênção como espada,
A
espada como benção!
SEXTO
/ D. DINIS
Na
noite escreve um seu Cantar de Amigo
O
plantador de naus a haver,
E
ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o
rumor dos pinhais que, como um trigo
De
Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio,
esse cantar, jovem e puro,
Busca
o oceano por achar;
E a
fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o
som presente desse mar futuro,
É a
voz da terra ansiando pelo mar.
SÉTIMO
(I) / D. JOÃO O PRIMEIRO
O
homem e a hora são um só
Quando
Deus faz e a história é feita.
O
mais é carne, cujo pó
A
terra espreita.
Mestre,
sem o saber, do Templo
Que
Portugal foi feito ser,
Que
houveste a glória e deste o exemplo
De o
defender.
Teu
nome, eleito em sua fama,
É,
na ara da nossa alma interna,
A
que repele, eterna chama,
A
sombra eterna.
SÉTIMO
(II) / D. FILIPA DE LENCASTRE
Que
enigma havia em teu seio
Que
só gênios concebia?
Que
arcanjo teus sonhos veio
Velar,
maternos, um dia?
Volve
a nós teu rosto sério,
Princesa
do Santo Graal,
Humano
ventre do Império,
Madrinha
de Portugal!
III.
AS QUINAS
PRIMEIRA
/ D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu
dever fez-me, como Deus ao mundo.
A
regra de ser Rei almou meu ser,
Em
dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme
em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri
contra o Destino o meu dever.
Inutilmente?
Não, porque o cumpri.
SEGUNDA
/ D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me
Deus o seu gládio, porque eu faça
A
sua santa guerra.
Sagrou-me
seu em honra e em desgraça,
Às
horas em que um frio vento passa
Por
sobre a fria terra.
Pôs-me
as mãos sobre os ombros e doirou-me
A
fronte com o olhar;
E
esta febre de Além, que me consome,
E
este querer grandeza são seu nome
Dentro
em mim a vibrar.
E eu
vou, e a luz do gládio erguido dá
Em
minha face calma.
Cheio
de Deus, não temo o que virá,
Pois
venha o que vier, nunca será
Maior
do que a minha alma.
TERCEIRA
/ D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro
em pensar, e claro no sentir,
É
claro no querer;
Indiferente
ao que há em conseguir
Que
seja só obter;
Dúplice
dono, sem me dividir,
De
dever e de ser —
Não
me podia a Sorte dar guarida
Por
não ser eu dos seus.
Assim
vivi, assim morri, a vida,
Calmo
sob mudos céus,
Fiel
à palavra dada e à ideia tida.
Tudo
o mais é com Deus!
QUARTA
/ D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não
fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre
tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente
eleita,
Virgemmente
parada;
Porque
é do português, pai de amplos mares,
Querer,
poder só isto:
O
inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O
todo, ou o seu nada.
QUINTA
/ D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco,
sim, louco, porque quis grandeza
Qual
a Sorte a não dá.
Não
coube em mim minha certeza;
Por
isso onde o areal está
Ficou
meu ser que houve, não o que há.
Minha
loucura, outros que me a tomem
Com
o que nela ia.
Sem
a loucura que é o homem
Mais
que a besta sadia,
Cadáver
adiado que procria?
IV.
A COROA
NUN'ÁLVARES
PEREIRA
Que
auréola te cerca?
É a
espada que, volteando.
Faz
que o ar alto perca
Seu
azul negro e brando.
Mas
que espada é que, erguida,
Faz
esse halo no céu?
É
Excalibur, a ungida,
Que
o Rei Artur te deu.
'Sperança
consumada,
S.
Portugal em ser,
Ergue
a luz da tua espada
Para
a estrada se ver!
V. O
TIMBRE
A
CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE
Em
seu trono entre o brilho das esferas,
Com
seu manto de noite e solidão,
Tem
aos pés o mar novo e as mortas eras —
O
único imperador que tem, deveras,
O
globo mundo em sua mão.
UMA
ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO
Braços
cruzados, fita além do mar.
Parece
em promontório uma alta serra —
O
limite da terra a dominar
O
mar que possa haver além da terra.
Seu
formidável vulto solitário
Enche
de estar presente o mar e o céu
E
parece temer o mundo vário
Que
ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
A
OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE
De
pé, sobre os países conquistados
Desce
os olhos cansados
De
ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não
pensa em vida ou morte
Tão
poderoso que não quer o quanto
Pode,
que o querer tanto
Calcara
mais do que o submisso mundo
Sob
o seu passo fundo.
Três
impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os
como quem desdenha.
SEGUNDA PARTE: MAR PORTUGUEZ
Possessio maris.
I. O
INFANTE
Deus
quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus
quis que a terra fosse toda uma,
Que
o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te,
e foste desvendando a espuma,
E a
orla branca foi de ilha em continente,
Clareou,
correndo, até ao fim do mundo,
E
viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir,
redonda, do azul profundo.
Quem
te sagrou criou-te portuguez.
Do
mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se
o Mar, e o Império se desfez.
Senhor,
falta cumprir-se Portugal!
II.
HORIZONTE
O
mar anterior a nós, teus medos
Tinham
coral e praias e arvoredos.
Desvendadas
a noite e a cerração,
As
tormentas passadas e o mistério,
Abria
em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia
sobre as naus da iniciação.
Linha
severa da longínqua costa —
Quando
a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em
árvores onde o Longe nada tinha;
Mais
perto, abre-se a terra em sons e cores:
E,
no desembarcar, há aves, flores,
Onde
era só, de longe a abstrata linha
O
sonho é ver as formas invisíveis
Da
distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos
da esp'rança e da vontade,
Buscar
na linha fria do horizonte
A
árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os
beijos merecidos da Verdade.
III.
PADRÃO
O
esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu,
Diogo Cão, navegador, deixei
Este
padrão ao pé do areal moreno
E
para diante naveguei.
A
alma é divina e a obra é imperfeita.
Este
padrão sinala ao vento e aos céus
Que,
da obra ousada, é minha a parte feita:
O
por-fazer é só com Deus.
E ao
imenso e possível oceano
Ensinam
estas Quinas, que aqui vês,
Que
o mar com fim será grego ou romano:
O
mar sem fim é português.
E a
Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E
faz a febre em mim de navegar
Só
encontrará de Deus na eterna calma
O
porto sempre por achar.
IV.
O MOSTRENGO
mostrengo
que está no fim do mar
Na
noite de breu ergueu-se a voar;
A
roda da nau voou três vezes,
Voou
três vezes a chiar,
E
disse: “Quem é que ousou entrar
Nas
minhas cavernas que não desvendo,
Meus
tetos negros do fim do mundo?”
E o
homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei
D. João Segundo!”
“De
quem são as velas onde me roço?
De
quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse
o mostrengo, e rodou três vezes,
Três
vezes rodou imundo e grosso.
“Quem
vem poder o que só eu posso,
Que
moro onde nunca ninguém me visse
E
escorro os medos do mar sem fundo?”
E o
homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei
D. João Segundo!”
Três
vezes do leme as mãos ergueu,
Três
vezes ao leme as reprendeu,
E
disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui
ao leme sou mais do que eu:
Sou
um povo que quer o mar que é teu;
E
mais que o mostrengo, que me a alma teme
E
roda nas trevas do fim do mundo,
Manda
a vontade, que me ata ao leme,
De
El-Rei D. João Segundo!”
V.
EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS
Jaz
aqui, na pequena praia extrema,
O
Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O
mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas,
mostra alto o mundo no seu ombro.
Vl.
OS COLOMBOS
Outros
haverão de ter
O
que houvermos de perder.
Outros
poderão achar
O
que, no nosso encontrar,
Foi
achado, ou não achado,
Segundo
o destino dado.
Mas
o que a eles não toca
É a
Magia que evoca
O
Longe e faz dele história.
E
por isso a sua glória
É justa
auréola dada
Por
uma luz emprestada.
VII.
OCIDENTE
Com
duas mãos — o Ato e o Destino —
Desvendámos.
No mesmo gesto, ao céu
Uma
ergue o fecho trêmulo e divino
E a
outra afasta o véu.
Fosse
a hora que haver ou a que havia
A
mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi
a alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da
mão que desvendou.
Fosse
Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A
mão que ergueu o facho que luziu,
Foi
Deus a alma e o corpo Portugal
Da
mão que o conduziu.
VIII.
FERNÃO DE MAGALHÃES
No
vale clareia uma fogueira.
Uma
dança sacode a terra inteira.
E
sombras desformes e descompostas
Em
clarões negros do vale vão
Subitamente
pelas encostas,
Indo
perder-se na escuridão.
De
quem é a dança que a noite aterra?
São
os Titãs, os filhos da Terra,
Que
dançam na morte do marinheiro
Que
quis cingir o materno vulto
—
Cingiu-o, dos homens, o primeiro —,
Na
praia ao longe por fim sepulto.
Dançam,
nem sabem que a alma ousada
Do
morto ainda comanda a armada,
Pulso
sem corpo ao leme a guiar
As
naus no resto do fim do espaço:
Que
até ausente soube cercar
A
terra inteira com seu abraço.
Violou
a Terra. Mas eles não
O
sabem, e dançam na solidão;
E
sombras disformes e descompostas,
Indo
perder-se nos horizontes,
Galgam
do vale pelas encostas
Dos
mudos montes.
IX.
ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA
Os
Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem
de repente o ódio da sua guerra
E
pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge
um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro
um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no,
ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao
longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
Em
baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe,
e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O
céu abrir o abismo à alma do Argonauta.
X.
MAR PORTUGUÊS
Ó
mar salgado, quanto do teu sal
São
lágrimas de Portugal!
Por
te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos
filhos em vão rezaram!
Quantas
noivas ficaram por casar
Para
que fosses nosso, ó mar!
Valeu
a pena? Tudo vale a pena
Se a
alma não é pequena.
Quem
quer passar além do Bojador
Tem
que passar além da dor.
Deus
ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o céu.
XI.
A ÚLTIMA NAU
Levando
a bordo El-Rei D. Sebastião,
E
erguendo, como um nome, alto o pendão
Do
Império,
Foi-se
a última nau, ao sol aziago
Erma,
e entre choros de ânsia e de presago
Mistério.
Não
voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou?
Voltará da sorte incerta
Que
teve?
Deus
guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas
Sua luz projecta-o, sonho escuro
E
breve.
Ah,
quanto mais ao povo a alma falta,
Mais
a minha alma atlântica se exalta
E
entorna,
E em
mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo
entre a cerração teu vulto baço
Que
torna.
Não
sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a
Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges
ao sol em mim, e a névoa finda:
A
mesma, e trazes o pendão ainda
Do
Império.
XII.
PRECE
Senhor,
a noite veio e a alma é vil.
Tanta
foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos
hoje, no silêncio hostil,
O
mar universal e a saudade.
Mas
a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda
há vida ainda não é finda.
O
frio morto em cinzas a ocultou:
A
mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o
sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com
que a chama do esforço se remoça,
E
outra vez conquistaremos a Distância —
Do
mar ou outra, mas que seja nossa!
TERCEIRA PARTE: O ENCOBERTO
Pax in excelsis.
I.
OS SÍMBOLOS
PRIMEIRO
/ D. SEBASTIÃO
'Sperai!
Cai no areal e na hora adversa
Que
Deus concede aos seus
Para
o intervalo em que esteja a alma imersa
Em
sonhos que são Deus.
Que
importa o areal e a morte e a desventura
Se
com Deus me guardei?
É O
que eu me sonhei que eterno dura
É
Esse que regressarei.
SEGUNDO
/ O QUINTO IMPÉRIO
Triste
de quem vive em casa,
Contente
com o seu lar,
Sem
que um sonho, no erguer de asa
Faça
até mais rubra a brasa
Da
lareira a abandonar!
Triste
de quem é feliz!
Vive
porque a vida dura.
Nada
na alma lhe diz
Mais
que a lição da raiz
Ter
por vida a sepultura.
Eras
sobre eras se somem
No
tempo que em eras vem.
Ser
descontente é ser homem.
Que
as forças cegas se domem
Pela
visão que a alma tem!
E
assim, passados os quatro
Tempos
do ser que sonhou,
A
terra será teatro
Do
dia claro, que no atro
Da
erma noite começou.
Grécia,
Roma, Cristandade,
Europa
— os quatro se vão
Para
onde vai toda idade.
Quem
vem viver a verdade
Que
morreu D. Sebastião?
TERCEIRO
/ O DESEJADO
Onde
quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas,
remoto, sente-te sonhado,
E
ergue-te do fundo de não-seres
Para
teu novo fado!
Vem,
Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas
já no auge da suprema prova,
A
alma penitente do teu povo
À
Eucaristia Nova.
Mestre
da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur
do Fim, em jeito tal
Que
sua Luz ao mundo dividido
Revele
o Santo Graal!
QUARTO
/ AS ILHAS AFORTUNADAS
Que
voz vem no som das ondas
Que
não é a voz do mar?
E a
voz de alguém que nos fala,
Mas
que, se escutarmos, cala,
Por
ter havido escutar.
E só
se, meio dormindo,
Sem
saber de ouvir ouvimos
Que
ela nos diz a esperança
A
que, como uma criança
Dormente,
a dormir sorrimos.
São
ilhas afortunadas
São
terras sem ter lugar,
Onde
o Rei mora esperando.
Mas,
se vamos despertando
Cala
a voz, e há só o mar.
QUINTO
/ O ENCOBERTO
Que
símbolo fecundo
Vem
na aurora ansiosa?
Na
Cruz Morta do Mundo
A
Vida, que é a Rosa.
Que
símbolo divino
Traz
o dia já visto?
Na
Cruz, que é o Destino,
A
Rosa que é o Cristo.
Que
símbolo final
Mostra
o sol já desperto?
Na
Cruz morta e fatal
A
Rosa do Encoberto.
II.
OS AVISOS
PRIMEIRO
/ O BANDARRA
Sonhava,
anônimo e disperso,
O
Império por Deus mesmo visto,
Confuso
como o Universo
E
plebeu como Jesus Cristo.
Não
foi nem santo nem herói,
Mas
Deus sagrou com Seu sinal
Este,
cujo coração foi
Não
português, mas Portugal.
SEGUNDO
/ ANTÓNIO VIEIRA
O
céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este,
que teve a fama e à glória tem,
Imperador
da língua portuguesa,
Foi-nos
um céu também.
No
imenso espaço seu de meditar,
Constelado
de forma e de visão,
Surge,
prenúncio claro do luar,
El-Rei
D. Sebastião.
Mas
não, não é luar: é luz do etéreo.
É um
dia, e, no céu amplo de desejo,
A
madrugada irreal do Quinto Império
Doira
as margens do Tejo.
TERCEIRO
'Screvo
meu livro à beira-mágoa.
Meu
coração não tem que ter.
Tenho
meus olhos quentes de água.
Só
tu, Senhor, me dás viver.
Só
te sentir e te pensar
Meus
dias vácuos enche e doura.
Mas
quando quererás voltar?
Quando
é o Rei? Quando é a Hora?
Quando
virás a ser o Cristo
De a
quem morreu o falso Deus,
E a
despertar do mal que existo
A
Nova Terra e os Novos Céus?
Quando
virás, ó Encoberto,
Sonho
das eras português,
Tornar-me
mais que o sopro incerto
De
um grande anseio que Deus fez?
Ah,
quando quererás voltando,
Fazer
minha esperança amor?
Da
névoa e da saudade quando?
Quando,
meu Sonho e meu Senhor?
III.
OS TEMPOS
PRIMEIRO
/ NOITE
A
nau de um deles tinha-se perdido
No
mar indefinido.
O segundo
pediu licença ao Rei
De,
na fé e na lei
Da
descoberta, ir em procura
Do
irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo
foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu
do fim profundo
Do
mar ignoto à pátria por quem dera
O
enigma que fizera.
Então
o terceiro a El-Rei rogou
Licença
de os buscar, e El-Rei negou.
Como
a um cativo, o ouvem a passar
Os
servos do solar.
E,
quando o veem, veem a figura
Da
febre e da amargura,
Com
fixos olhos rasos de ânsia
Fitando
a proibida azul distância.
Senhor,
os dois irmãos do nosso Nome
— O
Poder e o Renome —
Ambos
se foram pelo mar da idade
À
tua eternidade;
E
com eles de nós se foi
O
que faz a alma poder ser de herói.
Queremos
ir buscá-los, desta vil
Nossa
prisão servil:
É a
busca de quem somos, na distância
De
nós; e, em febre de ânsia,
A
Deus as mãos alçamos.
Mas
Deus não dá licença que partamos.
SEGUNDO
/ TORMENTA
Que
jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós,
Portugal, o poder ser.
Que
inquietação do fundo nos soergue?
O
desejar poder querer.
Isto,
e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas
súbito, onde o vento ruge,
O
relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha
e o mar 'scuro 'struge.
TERCEIRO
/ CALMA
Que
costa é que as ondas contam
E se
não pode encontrar
Por
mais naus que haja no mar?
O
que é que as ondas encontram
E
nunca se vê surgindo?
Este
som de o mar praiar
Onde
é que está existindo?
lha
próxima e remota,
Que
nos ouvidos persiste,
Para
a vista não existe.
Que
nau, que armada, que frota
Pode
encontrar o caminho
A
praia onde o mar insiste,
Se à
vista o mar é sozinho?
Haverá
rasgões no espaço
Que
deem para outro lado,
E
que, um deles encontrado,
Aqui,
onde há só sargaço,
Surja
uma ilha velada,
O
país afortunado
Que
guarda o Rei desterrado
Em
sua vida encantada?
QUARTO
/ ANTEMANHÃ
O mostrengo
que está no fim do mar
Veio
das trevas a procurar
A
madrugada do novo dia
Do
novo dia sem acabar
E
disse: Quem é que dorme a lembrar
Que
desvendou o Segundo Mundo
Nem
o Terceiro quer desvendar?
E o
som na treva de ele rodar
Faz
mau o sono, triste o sonhar,
Rodou
e foi-se o mostrengo servo
Que
seu senhor veio aqui buscar.
Que
veio aqui seu senhor chamar —
Chamar
Aquele que está dormindo
E
foi outrora Senhor do Mar.
QUINTO
/ NEVOEIRO
Nem
rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define
com perfil e ser
Este
fulgor baço da terra
Que
é Portugal a entristecer —
Brilho
sem luz e sem arder,
Como
o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém
sabe que coisa quer.
Ninguém
conhece que alma tem,
Nem
o que é mal nem o que é bem.
(Que
ânsia distante perto chora?)
Tudo
é incerto e derradeiro.
Tudo
é disperso, nada é inteiro.
Ó
Portugal, hoje és nevoeiro...
É a
Hora!
Valete, Frates.