Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados!
Quão
asinha em meu dano vos mudastes!
Passou
o tempo que me descansastes,
agora
descansais com meus cuidados.
Deixastes-me
sentir os bens passados,
para
mor dor da dor que me ordenastes;
então
nü'hora juntos mos levastes,
deixando
em seu lugar males dobrados.
Ah!
quanto milhor fora não vos ver,
gostos,
que assi passais tão de corrida,
que
fico duvidoso se vos vi:
sem
vós já me não fica que perder,
se
não se for esta cansada vida,
que
por mor perda minha não perdi.
Ah! minha Dinamene! Assi deixaste
quem
não deixara nunca de querer-te?
Ah!
Ninfa minha! Já não posso ver-te,
tão
asinha esta vida desprezaste!
Como
já para sempre te apartaste
de
quem tão longe estava de perder-te?
Puderam
estas ondas defender-te,
que
não visses quem tanto magoaste?
Nem
falar-te somente a dura morte
me
deixou, que tão cedo o negro manto
em
teus olhos deitado consentiste!
Ó
mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que
pena sentirei, que valha tanto,
que
inda tenho por pouco o viver triste?
Alegres campos, verdes arvoredos,
claras
e frescas águas de cristal,
que
em vós os debuxais ao natural,
discorrendo
da altura dos rochedos;
Silvestres
montes, ásperos penedos,
compostos
em concerto desigual,
sabei
que, sem licença de meu mal,
já
não podeis fazer meus olhos ledos.
E,
pois me já não vedes como vistes,
não
me alegrem verduras deleitosas,
nem
águas que correndo alegres vêm.
Semearei
em vós lembranças tristes,
regando-vos
com lágrimas saudosas,
e
nascerão saudades de meu bem.
Alma minha gentil, que te partiste
tão
cedo desta vida descontente,
repousa
lá no Céu eternamente,
e
viva eu cá na terra sempre triste.
Se
lá no assento etéreo, onde subiste,
memória
desta vida se consente,
não
te esqueças daquele amor ardente
que
já nos olhos meus tão puro viste.
E se
vires que pode merecer te
algüa
causa a dor que me ficou
da
mágoa, sem remédio, de perder te,
roga
a Deus, que teus anos encurtou,
que
tão cedo de cá me leve a ver te,
quão
cedo de meus olhos te levou.
Amor, co a esperança já perdida,
teu soberano
templo visitei;
por
sinal do naufrágio que passei,
em
lugar dos vestidos, pus a vida.
Que
queres mais de mim, que destruída
me
tens a glória toda que alcancei?
Não
cuides de forçar me, que não sei
tornar
a entrar onde não há saída.
Vês
aqui alma, vida e esperança,
despojos
doces de meu bem passado,
enquanto
quis aquela que eu adoro:
nelas
podes tomar de mim vingança;
e se
inda não estás de mim vingado,
contenta
te com as lágrimas que choro.
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é
ferida que dói, e não se sente;
é um
contentamento descontente,
é
dor que desatina sem doer.
É um
não querer mais que bem querer;
é um
andar solitário entre a gente;
é
nunca contentar se de contente;
é um
cuidar que ganha em se perder.
É
querer estar preso por vontade;
é
servir a quem vence, o vencedor;
é
ter com quem nos mata, lealdade.
Mas
como causar pode seu favor
nos
corações humanos amizade,
se
tão contrário a si é o mesmo Amor?
Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
vivas
faíscas me mostrou um dia,
donde
um puro cristal se derretia
por
entre vivas rosas e alva neve.
A
vista, que em si mesma não se atreve,
por
se certificar do que ali via,
foi
convertida em fonte, que fazia
a
dor ao sofrimento doce e leve.
Jura
Amor que brandura de vontade
causa
o primeiro efeito; o pensamento
endoudece,
se cuida que é verdade.
Olhai
como Amor gera num momento,
de
lágrimas de honesta piedade
lágrimas
de imortal contentamento.
A Morte, que da vida o nó desata,
os
nós, que dá o Amor, cortar quisera
na
Ausência, que é contr' ele espada fera,
e co
Tempo, que tudo desbarata.
Duas
contrárias, que üa a outra mata,
a
Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é
Razão contra a Fortuna austera,
outra,
contra a Razão, Fortuna ingrata.
Mas
mostre a sua imperial potência
a
Morte em apartar dum corpo a alma,
duas
num corpo o Amor ajunte e una;
porque
assi leve triunfante a palma,
Amor
da Morte, apesar da Ausência,
do
Tempo, da Razão e da Fortuna.
Apartava se Nise de Montano,
em
cuja alma partindo se ficava;
que
o pastor na memória a debuxava,
por
poder sustentar se deste engano.
Pelas
praias do Índico Oceano
sobre
o curvo cajado s'encostava,
e os
olhos pelas águas alongava,
que
pouco se doíam de seu dano.
Pois
com tamanha mágoa e saudade
(dezia)
quis deixar me a que eu adoro,
por
testemunhas tomo Céu e estrelas.
Mas
se em vós, ondas, mora piedade,
levai
também as lágrimas que choro,
pois
assi me levais a causa delas!
Apolo e as nove Musas, discantando
com
a dourada lira, me influíam
na
suave harmonia que faziam,
quando
tomei a pena, começando:
—
Ditoso seja o dia e hora, quando
tão
delicados olhos me feriam!
Ditosos
os sentidos que sentiam
estar
se em seu desejo traspassando!
Assi
cantava, quando Amor virou
a
roda à esperança, que corria
tão
ligeira que quase era invisível.
Converteu
se me em noite o claro dia;
e,
se algua esperança me ficou,
será
de maior mal, se for possível.
Aquela fera humana que enriquece
sua
presuntuosa tirania
destas
minhas entranhas, onde cria
Amor
um mal que falta quando crece;
Se
nela o Céu mostrou (como parece)
quanto
mostrar ao mundo pretendia,
porque
de minha vida se injuria?
Porque
de minha morte s'enobrece?
Ora,
enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora,
com vencer me e cativar me:
fazei
disto no mundo larga história.
Que,
por mais que vos veja maltratar me,
já
me fico logrando desta glória
de
ver que tendes tanta de matar me.
Aquela que, de pura castidade,
de
si mesma tomou cruel vingança
por
üa breve e súbita mudança,
contrária
a sua honra e qualidade
(venceu
à fermosura a honestidade,
venceu
no fim da vida a esperança
porque
ficasse viva tal lembrança,
tal
amor, tanta fé, tanta verdade!),
de
si, da gente e do mundo esquecida,
feriu
com duro ferro o brando peito,
banhando
em sangue a força do tirano.
[Oh!]
estranha ousadia ! estranho feito !
Que,
dando breve morte ao corpo humano,
tenha
sua memória larga vida!
Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais
do Céu certissimos sinais,
se
quereis conhecer quanto possais,
olhai
me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis
que de viver me desapossa
aquele
riso com que a vida dais;
vereis
como de Amor não quero mais,
por
mais que o tempo corra e o dano possa.
E se
dentro nest'alma ver quiserdes,
como
num claro espelho, ali vereis
também
a vossa, angélica e serena.
Mas
eu cuido que só por não me verdes,
ver vos
em mim, Senhora, não quereis:
tanto
gosto levais de minha pena!
Aqueles claros olhos que chorando
ficavam
quando deles me partia,
agora
que farão? Quem mo diria?
Se
porventura estarão em mim cuidando?
Se
terão na memória, como ou quando
deles
me vim tão longe de alegria?
Ou
s'estarão aquele alegre dia
que
torne a vê-los, n'alma figurando?
Se
contarão as horas e os momentos?
Se
acharão num momento muitos anos?
Se
falarão co as aves e cos ventos?
Oh!
bem-aventurados fingimentos,
que,
nesta ausência, tão doces enganos
sabeis
fazer aos tristes pensamentos!
Arvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza
de leite e sangue pinta,
onde
a pureza, de vergonha tinta,
está
virgíneas faces imitando;
nunca
da ira e do vento, que arrancando
os
troncos vão, o teu injúria sinta;
nem
por malícia de ar te seja extinta
a
cor, que está teu fruto debuxando;
que,
pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a
meu contentamento, e favoreces
com
teu suave cheiro minha glória,
se
não te celebrar como mereces,
cantando
te, sequer farei contigo
doce,
nos casos tristes, a memória.
Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas
tu, porque com isso mais te apuras,
de
manhoso mo negas, e mo juras
no
teu dourado arco; e eu to creio.
A
mão tenho metida no teu seio,
e
não vejo meus danos às escuras;
e tu
contudo tanto me asseguras,
que
me digo que minto, e que me enleio.
Não
somente consinto neste engano,
mas
inda to agradeço, e a mim me nego
tudo
o que vejo e sinto de meu dano.
Oh!
poderoso mal a que me entrego!
Que,
no meio do justo desengano,
me
possa inda cegar um Moço cego!
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para
matar me, e novas esquivanças;
que
não pode tirar me as esperanças,
que
mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai
de que esperanças me mantenho!
Vede
que perigosas seguranças!
Que
não temo contrastes nem mudanças,
andando
em bravo mar, perdido o lenho.
Mas,
conquanto não pode haver desgosto
onde
esperança falta, lá me esconde
Amor
um mal, que mata e não se vê.
Que
dias há que n'alma me tem posto
um
não sei quê, que nasce não sei onde,
vem
não sei como, e dói não sei porquê.
Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria
a quanto mal o mundo cria;
cá
onde o puro Amor não tem valia,
que
a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá,
onde o mal se afina, e o bem se dana,
e
pode mais que a honra a tirania;
cá,
onde a errada e cega Monarquia
cuida
que um nome vão a desengana;
cá,
neste labirinto, onde a nobreza
com
esforço e saber pedindo vão
às
portas da cobiça e da vileza;
cá
neste escuro caos de confusão,
cumprindo
o curso estou da natureza.
Vê
se me esquecerei de ti, Sião!
Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando,
Sílvio me dizia
(Sílvio,
pastor antigo, que sabia
pelo
canto das aves o futuro):
—Méris,
quando quiser o fado escuro,
oprimir-te
virão em um só dia
dous
lobos; logo a voz e a melodia
te
fugirão, e o som suave e puro.
Bem
foi assi: porque um me degolou
quanto
gado vacum pastava e tinha,
de
que grandes soldadas esperava;
E
outro por meu dano me matou
a
cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua
saudade da alma minha!
Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs
meus contentamentos a ventura,
faltou
te a ti na terra sepultura,
porque
me falte a mim consolação.
Eternamente
as águas lograrão
a
tua peregrina fermosura;
mas,
enquanto me a mim a vida dura,
sempre
viva em minh'alma te acharão.
E se
meus rudos versos podem tanto
que
possam prometer te longa história
daquele
amor tão puro e verdadeiro,
celebrada
serás sempre em meu canto;
porque
enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.
Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela
soberana fermosura!
Onde
foram parar na sepultura
aqueles
reais olhos graciosos?
Ó
bens do mundo, falsos e enganosos!
Que
mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza
sem resplandor na terra dura,
com
tal rosto e cabelos tão fermosos!
Das
outras que será, pois poder teve
a
morte sobre cousa tanto bela
que
ela eclipsava a luz do claro dia?
Mas
o mundo não era dino dela,
por
isso mais na terra não esteve;
ao
Céu subiu, que já *se* lhe devia.
Com grandes esperanças já cantei,
com
que os deuses no Olimpo conquistara;
despois
vim a chorar porque cantara
e
agora choro já porque chorei.
Se
cuido nas passadas que já dei,
custa
me esta lembrança só tão cara
que
a dor de ver as mágoas que passara
tenho
pola mor mágoa que passei.
Pois
logo, se está claro que um tormento
dá
causa que outro n'alma se acrescente,
já
nunca posso ter contentamento.
Mas
esta fantasia se me mente?
Oh!
ocioso e cego pensamento!
Ainda
eu imagino em ser contente?
Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi
voluntária, ou foi por inocência?
—Mas
foi fazer Amor experiência
se
podia sofrer tirar me a vida.
—E
com teu próprio sangue te convida
a
não pores à vida resistência?
—Ando
me acostumando à paciência,
porque
o temor a morte não impida.
—Pois
porque comes, logo, fogo ardente,
se a
ferro te costumas?—Porque ordena
Amor
que morra e pene juntamente.
E
tens a dor do ferro por pequena?
—Si:
que a dor costumada não se sente;
e eu
não quero a morte sem a pena.
Como quando do mar tempestuoso
o
marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um
naufrágio cruel já salvo a nado,
só
ouvir falar nele o faz medroso;
e
jura que em que veja bonançoso
o
violento mar, e sossegado
não
entre nele mais, mas vai, forçado
pelo
muito interesse cobiçoso;
Assi,
Senhora eu, que da tormenta,
de
vossa vista fujo, por salvar me,
jurando
de não mais em outra ver me;
minh'alma
que de vós nunca se ausenta,
dá
me por preço ver vos, faz tornar me
donde
fugi tão perto de perder me.
Conversação doméstica afeiçoa,
ora
em forma de boa e sã vontade,
ora
de üa amorosa piedade,
sem
olhar qualidade de pessoa.
Se
despois, porventura, vos magoa
com
desamor e pouca lealdade,
logo
vos faz mentira da verdade
o
brando Amor, que tudo em si perdoa.
Não
são isto que falo conjecturas,
que
o pensamento julga na aparência,
por
fazer delicadas escrituras.
Metido
tenho a mão na consciência,
e
não falo senão verdades puras
que
me ensinou a viva experiência.
Correm turvas as águas deste rio,
que
as do Céu e as do monte as enturbaram;
os
campos florecidos se secaram,
intratável
se fez o vale, e frio.
Passou
o Verão, passou o ardente Estio,
üas
cousas por outras se trocaram;
os
fementidos Fados já deixaram
do
mundo o regimento, ou desvario.
Tem
o tempo sua ordem já sabida;
o
mundo, não; mas anda tão confuso,
que
parece que dele Deus se esquece.
Casos,
opiniões, natura e uso
fazem
que nos pareça desta vida
que
não há nela mais que o que parece.
Dai me üa lei, Senhora, de querer vos,
que
a guarde, sô pena de enojar vos;
que
a fé que me obriga a tanto amar vos
fará
que fique em lei de obedecer vos.
Tudo
me defendei, senão só ver vos,
e
dentro na minh'alma contemplar vos;
que,
se assi não chegar a contentar vos,
ao
menos que não chegue [a] aborrecer vos.
E,
se essa condição cruel e esquiva,
que
me dois lei de vida não consente,
dai
ma, Senhora, já, seja de morte.
Se
nem essa me dais, é bem que viva,
sem
saber como vivo, tristemente,
mas
contente porém de minha sorte.
Despois que quis Amor que eu só
passasse
quanto mal já por muitos repartiu,
entregou
me à Fortuna, porque viu
que
não tinha mais mal que em mim mostrasse.
Ela,
porque do Amor se avantajasse
no
tormento que o Céu me permitiu,
o
que para ninguém se consentiu,
para
mim só mandou que se inventasse.
Eis
me aqui vou com vário som gritando,
copioso
exemplário para a gente
que
destes dous tiranos é sujeita,
desvarios
em versos concertando.
Triste
quem seu descanso tanto estreita,
que
deste tão pequeno está contente!
Despois que viu Cibele o corpo humano
do
fermoso Átis seu verde pinheiro,
em
piedade o vão furar primeiro
convertido,
chorou seu grave dano.
E,
fazendo a sua dor ilustre engano,
a
Júpiter pediu que o verdadeiro
preço
da nova palma e do loureiro,
ao
seu pinheiro desse, soberano.
Mais
lhe concede o filho poderoso
que,
as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo
os segredos lá do Céu superno.
Oh!
ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem
se vir coroar da folha vossa,
cantando
à vossa sombra verso eterno!
De tão divino acento e voz humana,
de
tão doces palavras peregrinas,
bem
sei que minhas obras não são dinas,
que
o rudo engenho meu me desengana.
Mas
de vossos escritos corre e mana
licor
que vence as águas cabalinas;
e
convosco do Tejo as flores finas
farão
enveja à cópia mantuana.
E
pois, a vós de si não sendo avaras,
as
filhas de Mnemósine fermosa
partes
dadas vos tem, ao mundo caras,
a
minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas
posso chamar ao mundo raras:
a
vossa d'alta, a minha d'envejosa.
De um tão felice engenho, produzido
de
outro, que o claro Sol não viu maior,
é
trazer cousas altas no sentido,
todas
dinas de espanto e de louvor.
Museu
foi antiquíssimo escritor,
filósofo
e poeta conhecido,
discípulo
do Músico amador
que
co som teve o Inferno suspendido.
Este
pôde abalar o monte mudo,
cantando
aquele mal, que eu já passei,
do
mancebo de Abido mal sisudo.
Agora
contam já (segundo achei),
Passo,
e o nosso Boscão, que disse tudo
dos
segredos que move o cego Rei.
De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
sinto
vivo da morte o sentimento.
Não
sei para que é ter contentamento,
se
mais há de perder quem mais alcança.
Mas
dou vos esta firme segurança
que,
posto que me mate meu tormento,
pelas
águas do eterno esquecimento
segura
passará minha lembrança.
Antes
sem vós meus olhos se entristeçam,
que
com qualquer cous' outra se contentem;
antes
os esqueçais, que vos esqueçam.
Antes
nesta lembrança se atormentem,
que
com esquecimento desmereçam
a
glória que em sofrer tal pena sentem.
Diana prateada, esclarecia
com
a luz que do claro Febo ardente,
por
ser de natureza transparente,
em
si, como em espelho, reluzia.
Cem
mil milhões de graças lhe influía,
quando
me apareceu o excelente
raio
de vosso aspecto, diferente
em
graça e em amor do que soía.
Eu,
vendo-me tão cheio de favores,
e
tão propínquo a ser de todo vosso,
louvei
a hora clara, e a noite escura,
Sois
nela destes cor a meus amores;
donde
colijo claro que não posso
de
dia para vós já ter ventura.
Ditoso seja aquele que somente
se
queixa de amorosas esquivanças;
pois
por elas não perde as esperanças
de
poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso
seja quem, estando ausente,
não
sente mais que a pena das lembranças;
porqu',
inda que se tema de mudanças,
menos
se teme a dor quando se sente.
Ditoso
seja, enfim, qualquer estado
onde
enganos, desprezos e isenção
trazem
o coração atormentado.
Mas
triste quem se sente magoado
d'erros
em que não pode haver perdão,
sem
ficar n'alma a mágoa do pecado.
Diversos dões reparte o Céu benino,
e
quer que cada üa um só possua;
assi,
ornou de casto peito a Lüa,
ornamento
do assento cristalino.
De
graça, a Mãe fermosa do Minino,
que
nessa vista tem perdido a sua;
Palas,
de discrição, que imite a tua;
do
valor, Juno, só de império dino.
Mas
junto agora o mesmo Céu derrama
em
ti o mais que tinha, e foi o menos,
em
respeito do Autor da natureza;
que,
a seu pesar, te dão, fermosa Dama,
Diana,
honestidade, e graça, Vénus,
Palas
o aviso seu, Juno a nobreza.
Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
para
fazerdes esse áureo crino,
onde
fostes buscar esse ouro fino?
de
que escondida mina ou de que veia?
Dos
vossos olhos essa luz Febeia,
esse
respeito, de um império dino?
Se o
alcançastes com saber divino,
se
com encantamentos de Medeia?
De
que escondidas conchas escolhestes
as
perlas preciosas orientais
que,
falando, mostrais no doce riso?
Pois
vos formastes tal, como quisestes,
vigiai-vos
de vós, não vos vejais,
fugi
das fontes: lembre-vos Narciso.
Doce contentamento já passado,
em
que todo meu bem já consistia,
quem
vos levou de minha companhia
e me
deixou de vós tão apartado?
Quem
cuidou que se visse neste estado
naquelas
breves horas de alegria,
quando
minha ventura consentia
que
de enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna
minha foi, cruel e dura,
aquela
que causou meu perdimento,
com
a qual ninguém pode ter cautela.
Nem
se engane nenhüa criatura,
que
não pode nenhum impedimento
fugir
do que [lhe] ordena sua estrela.
Doce sonho, suave e soberano,
se
por mais longo tempo me durara!
Ah!
quem de sonho tal nunca acordara,
pois
havia de ver tal desengano!
Ah!
deleitoso bem! ah! doce engano!
Se
por mais largo espaço me enganara!
Se
então a vida mísera acabara,
de
alegria e prazer morrera ufano.
Ditoso,
não estando em mim, pois tive,
dormindo,
o que acordado ter quisera.
Olhai
com que me paga meu destino!
Enfim,
fora de mim, ditoso estive.
Em
mentiras ter dita razão era,
pois
sempre nas verdades fui mofino.
Doces águas e claras do Mondego,
doce
repouso de minha lembrança,
onde
a comprida e pérfida esperança
longo
tempo após si me trouxe cego;
de
vós me aparto; mas, porém, não nego
que
inda a memória longa, que me alcança,
me
não deixa de vós fazer mudança,
mas
quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem
pudera Fortuna este instrumento
d'alma
levar por terra nova e estranha,
oferecido
ao mar remoto e vento;
mas
alma, que de cá vos acompanha,
nas
asas do ligeiro pensamento,
para
vós, águas, voa, e em vós se banha.
Doces lembranças da passada glória,
que
me tirou Fortuna roubadora,
deixai
me repousar em paz ü'hora,
que
comigo ganhais pouca vitória.
Impressa
tenho n'alma larga história
deste
passado bem que nunca fora;
ou
fora, e não passara; mas já agora
em
mim não pode haver mais que a memória.
Vivo
em lembranças, mouro d'esquecido,
de
quem sempre devera ser lembrado,
se
lhe lembrara estado tão contente.
Oh!
quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera
me lograr do bem passado,
se
conhecer soubera o mal presente.
Dos ilustres antigos que deixaram
tal
nome, que igualou fama à memória,
ficou
por luz do tempo a larga história
dos
feitos em que mais se assinalaram.
Se
se com cousas destes cotejaram
mil
vossas, cada üa tão notória,
vencera
a menor delas a mor glória
que
eles em tantos anos alcançaram.
A
glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo
cada um vários caminhos,
estátuas
levantando no seu Templo.
Vós,
honra portuguesa e dos Coutinhos,
ilustre
Dom João, com melhor nome
a
vós encheis de glória e a nós de exemplo.
El vaso reluciente y cristalino,
de
Ángeles agua clara y olorosa,
de
blancas e da ornado y fresca rosa
ligado
con cabellos de oro fino;
bien
claro parecía el don divino
labrado
por la mano artificiosa
de
aquella blanca Ninfa, graciosa
más
que el rubio lucero matutino.
Nel
vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado
de los blandos miembros bellos,
y en
el agua vuestra ánima pura;
la
seda es la blancura, e los cabellos
son
las prisiones, y la ligadura
con
que mi libertad fue asida dellos.
Em fermosa Leteia se confia,
por
onde vaïdade tanta alcança,
que,
tornada em soberba a confiança,
com
os deuses celestes competia.
Porque
não fosse avante esta ousadia
(que
nascem muitos erros da tardança),
em
efeito puseram a vingança,
que
tamanha doudice merecia.
Mas
Oleno, perdido por Leteia,
não
lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo
duro tanta fermosura,
quis
padecer em si a pena alheia;
mas,
porque a morte Amor não apartasse,
ambos
tornados são em pedra dura.
Em prisões baixas fui um tempo atado,
vergonhoso
castigo de meus erros;
inda
agora arrojando levo os ferros
que
a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.
Sacrifiquei
a vida a meu cuidado,
que
Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
vi
mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece
me que estava assi ordenado.
Contentei
me com pouco, conhecendo
que
era o contentamento vergonhoso,
só
por ver que cousa era viver ledo.
Mas
minha estrela, que eu já'gora entendo,
a
Morte cega, e o Caso duvidoso,
me
fizeram de gostos haver medo.
Enquanto Febo os montes acendia
do
Céu com luminosa claridade,
por
evitar do ócio a castidade
na
caça o tempo Délia despendia.
Vénus,
que então de furto descendia,
por
cativar de Anquises a vontade,
vendo
Diana em tanta honestidade,
quase
zombando dela, lhe dizia:
-Tu
vás com tuas redes na espessura
os
fugitivos cervos enredando,
mas
as minhas enredam o sentido.
—Melhor
é (respondia a deusa pura)
nas
redes leves cervos ir tomando
que
tomar-te a ti nelas teu marido.
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança
de algum contentamento,
o
gosto de um suave pensamento
me
fez que seus efeitos escrevesse.
Porém,
temendo Amor que aviso desse
minha
escritura a algum juízo isento,
escureceu-me
o engenho co tormento,
para
que seus enganos não dissesse.
Ó
vós que Amor obriga a ser sujeitos
a
diversas vontades! Quando lerdes
num
breve livro casos tão diversos,
verdades
puras são, e não defeitos...
E
sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis
o entendimento de meus versos!
Erros meus, má fortuna, amor ardente
em
minha perdição se conjuraram;
os
erros e a fortuna sobejaram,
que
para mim bastava o amor somente.
Tudo
passei; mas tenho tão presente
a
grande dor das cousas que passaram,
que
as magoadas iras me ensinaram
a
nao querer já nunca ser contente.
Errei
todo o discurso de meus anos;
dei
causa que a Fortuna castigasse
as
minhas mal fundadas esperanças.
De
amor não vi senão breves enganos.
Oh!
quem tanto pudesse que fartasse
este
meu duro génio de vinganças!
Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos
em obras divulgados,
e
não em peito timido encerrados
e
desfeitos despois em chuva e vento;
animo
da cobiça baixa isento,
dino
por isso só de altos estados,
fero
açoute dos nunca bem domados
povos
do Malabar sanguinolento;
gentileza
de membros corporais,
ornados
de pudica continência,
obra
por certo rara de natura:
estas
virtudes e outras muitas mais,
dinas
todas da homérica eloquência,
jazem
debaixo desta sepultura
Está o lascivo e doce passarinho
com
o biquinho as penas ordenando;
o
verso sem medida, alegre e brando,
espedindo
no rústico raminho;
o
cruel caçador (que do caminho
se
vem calado e manso desviando)
na
pronta vista a seta endireitando,
lhe
dá no Estígio lago eterno ninho.
Dest'
arte o coração, que livre andava,
(posto
que já de longe destinado)
onde
menos temia, foi ferido.
Porque
o Frecheiro cego me esperava,
para
que me tomasse descuidado,
em
vossos claros olhos escondido.
Está se a Primavera trasladando
em
vossa vista deleitosa e honesta;
nas
lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas,
lírios, rosas debuxando.
De
sorte, vosso gesto matizando,
Natura
quanto pode manifesta
que
o monte, o campo, o rio e a floresta
se
estão de vós, Senhora, namorando.
Se
agora não quereis que quem vos ama
possa
colher o fruito destas flores,
perderão
toda a graça vossos olhos.
Porque
pouco aproveita, linda Dama,
que
semeasse Amor em vós amores,
se
vossa condição produze abrolhos.
Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de
pensamento vil nunca tocado,
em
minha tenra idade começado,
tê-lo
dentro nesta alma só procuro.
De
haver nele mudança estou seguro,
sem
temer nenhum caso ou duro Fado,
nem
o supremo bem ou baixo estado,
nem
o tempo presente nem futuro.
A
bonina e a flor asinha passa;
tudo
por terra o Inverno e Estio
deita,
só para meu amor é sempre Maio.
Mas
ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e
que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz
este meu amor sempre em desmaio.
Eu cantei já, e agora vou chorando
o
tempo que cantei tão confiado;
parece
que no canto já passado
se
estavam minhas lágrimas criando.
Cantei;
mas se me alguém pergunta: —Quando?
—Não
sei; que também fui nisso enganado.
É
tão triste este meu presente estado
que
o passado, por ledo, estou julgando.
Fizeram-me
cantar, manhosamente,
contentamentos
não, mas confianças;
cantava,
mas já era ao som dos ferros.
De
quem me queixarei, que tudo mente?
Mas
eu que culpa ponho às esperanças
onde
a Fortuna injusta é mais que os erros?
Eu vivia de lágrimas isento,
num
engano tão doce e deleitoso
que
em que outro amante fosse mais ditoso,
não
valiam mil glórias um tormento.
Vendo-me
possuir tal pensamento,
de
nenhüa riqueza era envejoso;
vivia
bem, de nada receoso,
com
doce amor e doce sentimento.
Cobiçosa,
a Fortuna me tirou
deste
meu tão contente e alegre estado,
e
passou-me este bem, que nunca fora:
em
troco do qual bem só me deixou
lembranças,
que me matam cada hora,
trazendo-me
à memória o bem passado.
O Ferido sem ter cura perecia
o
forte e duro Télefo temido,
por
aquele que n'água foi metido,
a
quem ferro nenhum cortar podia.
Ao
Apolíneo Oráculo pedia
conselho
para ser restituído;
respondeu
que tornasse a ser ferido
por
quem o já ferira, e sararia.
Assi,
Senhora, quer minha ventura
que,
ferido de ver vos, claramente
com
vos tornar a ver Amor me cura.
Mas
é tão doce vossa fermosura,
que
fico como hidrópico doente,
que
co beber lhe cresce mor secura.
Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais
do Céu certissimos sinais,
se
quereis conhecer quanto possais,
olhai
me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis
que de viver me desapossa
aquele
riso com que a vida dais;
vereis
como de Amor não quero mais,
por
mais que o tempo corra e o dano possa.
E se
dentro nest'alma ver quiserdes,
como
num claro espelho, ali vereis
também
a vossa, angélica e serena.
Mas
eu cuido que só por não me verdes,
ver
vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto
gosto levais de minha pena!
Fiou se o coração, de muito isento,
de
si cuidando mal, que tomaria
tão
ilícito amor tal ousadia,
tal
modo nunca visto de tormento.
Mas
os olhos pintaram tão a tento
outros
que visto tem na fantasia,
que
a razão, temerosa do que via,
fugiu,
deixando o campo ao pensamento.
Ó
Hipólito casto, que, de jeito,
de
Fedra, tua madrasta, foste amado,
que
não sabia ter nenhum respeito:
em
mim vingou o amor teu casto peito;
mas
está desse agravo tão vingado,
que
se arrepende já do que tem feito.
Foi já num tempo doce cousa amar,
enquanto
m'enganava a esperança;
O
coração, com esta confiança,
todo
se desfazia em desejar.
Ó
vão, caduco e débil esperar!
Como
se desengana üa mudança!
Que,
quanto é mor a bem aventurança,
tanto
menos se crê que há de durar!
Quem
já se viu contente e prosperado,
vendo
se em breve tempo em pena tanta,
razão
tem de viver bem magoado.
Porém
quem tem o mundo exprimentado,
não
o magoa a pena nem o espanta,
que
mal se estranhará o costumado.
Fortuna em mim guardando seu direito
em
verde derrubou minha alegria.
Oh!
quanto se acabou naquele dia,
cuja
triste lembrança arde em meu peito!
Quando
contemplo tudo, bem suspeito
que
a tal bem, tal descanso se devia,
por
não dizer o mundo que podia
achar-se
em seu engano bem perfeito.
Mas
se a Fortuna o fez por descontar-me
tamanho
gosto, em cujo sentimento
a
memória não faz senão matar-me,
que
culpa pode dar-me o sofrimento,
se a
causa que ele tem de atormentar-me,
eu
tenho de sofrer o seu tormento?
Grão tempo há já que soube da Ventura
a
vida que me tinha destinada;
que
a longa experiência da passada
me
dava claro indício da futura.
Amor
fero, cruel, Fortuna dura,
bem
tendes vossa força exprimentada:
assolai,
destruí, não fique nada;
vingai
vos desta vida, qu'inda dura.
Soube
Amor da Ventura, que a não tinha,
e,
por que mais sentisse a falta dela,
de
imagens impossíveis me mantinha.
Mas
vós, Senhora, pois que minha estrela
não
foi milhor, vivei nesta alma minha,
que
não tem a Fortuna poder nela.
Ilustre o dino ramo dos Meneses,
aos
quais o prudente e largo Céu
(que
errar não sabe), em dote concedeu
rompesse
os maométicos arneses;
desprezando
a Fortuna e seus reveses,
ide
para onde o Fado vos moveu;
erguei
flamas no Mar alto Eritreu,
e
sereis nova luz aos Portugueses.
Oprimi
com tão firme e forte peito
o
Pirata insolente, que se espante
e
trema Taprobana e Gedrosia.
Dai
nova causa à cor do Arabo estreito:
assi
que o roxo mar, daqui em diante,
o
seja só co sangue de Turquia!
Indo o triste pastor todo embebido
na
sombra de seu doce pensamento,
tais
queixas espalhava ao leve vento
cum
brando suspirar da alma saído:
—A
quem me queixarei, cego, perdido,
pois
nas pedras não acho sentimento?
Com
quem falo? A quem digo meu tormento
que
onde mais chamo, sou menos ouvido?
Oh!
bela Ninfa, porque não respondes?
Porque
o olhar-me tanto me encareces?
Porque
queres que sempre me querele?
Eu
quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto
mais mal me vês, mais te endureces!
Assi
que co mal cresce a causa dele.
Lá a saudosa Aurora destoucava
os
seus cabelos d'ouro delicados,
e as
flores, nos campos esmaltados,
do
cristalino orvalho borrifava;
quando
o fermoso gado se espalhava
de
Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores
ambos, e ambos apartados,
de
quem o mesmo Amor não se apartava.
Com
verdadeiras lágrimas, Laurente,
—Não
sei (dizia) ó Ninfa delicada,
porque
não morre já quem vive ausente,
pois
a vida sem ti não presta nada?
Responde
Sílvio:—Amor não o consente,
que
ofende as esperanças da tornada.
Já não sinto, Senhora, os desenganas
com
que minha afeição sempre tratastes,
nem
ver o galardão que me negastes,
merecido
por fé, há tantos anos.
A
mágoa choro só, só choro os danos
de
ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas
em tal caso vós só me vingastes
de
vossa ingratidão, vossos enganos.
Dobrada
glória dá qualquer vingança,
que
o ofendido toma do culpado,
quando
se satisfaz com cousa justa;
mas
eu de vossos males e esquivança,
de
que agora me vejo bem vingado,
não
o quisera eu tanto à vossa custa.
Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me,
tão entregue a meu cuidado,
andar
sempre dos homens apartado,
e
dos tratos humanos esquecido.
Mas
eu, que tenho o mundo conhecido,
e
quase que sobre ele ando dobrado,
tenho
por baixo, rústico, enganado,
quem
não é com meu mal engrandecido.
Vão
revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem
riquezas, honras a outra gente,
vencendo
ferro, fogo, frio e calma;
que
eu só em humilde estado me contento,
de
trazer esculpido eternamente
vosso
fermoso gesto dentro n'alma.
Leda serenidade deleitosa, que
representa
em terra um paraíso;
entre
rubis e perlas doce riso;
debaixo
de ouro e neve, cor-de-rosa;
presença
moderada e graciosa,
onde
ensinando estão despejo e siso
que
se pode por arte e por aviso,
como
por natureza, ser fermosa;
fala,
de quem a morte e a vida pende,
rara,
suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso,
nela, alegre e comedido;
estas
as armas são com que me rende
e me
cativa Amor; mas não que possa
despojar
me da glória de rendido.
Lembranças que lembrais meu bem passado
para
que sinta mais o mal presente,
deixai-me
(se quereis) viver contente,
não
me deixeis morrer em tal estado.
Mas
se também de tudo está ordenado
viver
(como se vê) tão descontente,
venha
(se vier) o bem por acidente,
e dê
a morte fim a meu cuidado.
Que
muito milhor é perder a vida,
perdendo-se
as lembranças da memória,
pois
fazem tanto dano ao pensamento.
Assi
que nada perde, quem perdida
a
esperança traz de sua glória,
se
esta vida há-de ser sempre em tormento.
Lembranças saudosas, se cuidais
de
me acabar a vida neste estado,
não
vivo com meu mal tão enganado,
que
não espere dele muito mais.
De
muito longe já me costumais
a
viver de algum bem desesperado;
já
tenho co a Fortuna concertado
de
sofrer os trabalhos que me dais.
Atado
ao remo tenho a paciência,
para
quantos desgostos der a vida,
cuide
em quanto quiser o pensamento;
que,
pois não há i outra resistência
para
tão certa queda da caída,
aparar-lhe
hei debaixo o sofrimento.
Lindo e sutil trançado, que ficaste
em
penhor do remédio que mereço,
se
só contigo, vendo te, endoudeço,
que
fora cos cabelos que apertaste?
Aquelas
tranças d'ouro, que ligaste,
que
os raios do Sol têm em pouco preço,
não
sei se para engano do que peço
se
para me atar, os desataste.
Lindo
trançado, em minhas mãos te vejo,
e
por satisfação de minhas dores
como
quem não tem outra, hei de tomar te.
E se
não for contente meu desejo,
dir
lhe hei que, nesta regra dos amores,
pelo
todo também se toma a parte.
Males, que contra mim vos conjurastes,
quanto
há de durar tão duro intento?
Se
dura porque dura meu tormento,
baste
vos quanto já me atormentastes.
Mas
se assi perfiais porque cuidastes
derrubar
meu tão alto pensamento,
mais
pode a causa dele, em que o sustento,
que
vós, que dela mesma o ser tomastes.
E,
pois vossa tenção, com minha morte,
há
de acabar o mal destes amores,
dai
já fim a um tormento tão comprido,
porque
d'ambos contente seja a sorte:
vós,
porque me acabastes, vencedores;
e
eu, porque acabei de vós vencido.
Memória de meu bem, cortado em flores
por
ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me
descansar com meus cuidados
nesta
inquietação de meus amores.
Basta-me
o mal presente, e os temores
dos
sucessos que espero infortunados,
sem
que venham, de novo, bens passados
afrontar
meu repouso com suas dores.
Perdi
nua hora quanto em termos
tão
vagarosos e largos alcancei;
leixai-me,
pois, lembranças desta glória.
Cumpre
acabe a vida nestes ermos,
porque
neles com meu mal acabarei
mil
vidas, não ua só, dura memória!
Mudam se os tempos, mudam se as vontades,
muda
se o ser, muda se a confiança;
todo
o mundo é composto de mudança,
tomando
sempre novas qualidades.
Continuamente
vemos novidades,
diferentes
em tudo da esperança;
do
mal ficam as mágoas na lembrança,
e do
bem (se algum houve), as saudades.
O
tempo cobre o chão de verde manto,
que
já coberto foi de neve fria, e, enfim,
converte
em choro o doce canto.
E,
afora este mudar se cada dia,
outra
mudança faz de mor espanto,
que
não se muda já como soía.
Na desesperação já repousava
o
peito longamente magoado,
e,
com seu dano eterno concertado,
já
não temia, já não desejava;
quando
üa sombra vã me assegurava
que
algum bem me podia estar guardado
em
tão fermosa imagem que o treslado
n'alma
ficou, que nela se enlevava.
Que
crédito que dá tão facilmente
o
coração áquilo que deseja,
quando
lhe esquece o fero seu destino!
Oh!
deixem-me enganar, que eu sou
contente;
que, posto que maior meu dano seja,
fica-me
a glória já do que imagino.
Náiades, vós, que os rios habitais
que
os saudosos campos vão regando,
de
meus olhos vereis estar manando
outros,
que quase aos vossos são iguais.
Dríades,
vós, que as setas atirais,
os
fugitivos cervos derrubando,
outros
olhos vereis que triunfando
derrubam
corações, que valem mais.
Deixai
as aljavas logo, e as águas frias,
e
vinde, Ninfas minhas, se quereis
saber
como de uns olhos nascem mágoas;
vereis
como se passam em vão os dias;
mas
não vireis em vão, que cá achareis
nos
seus as setas, e nos meus as águas.
Na metade do Céu subido ardia
o
claro, almo Pastor, quando deixavam
o
verde pasto as cabras, e buscavam
a
frescura suave da água fria.
Co a
folha da árvore sombria,
do
raio ardente as aves s'emparavam;
o
módulo cantar, de que cessavam,
só
nas roucas cigarras se sentia;
quando
Liso pastor, num campo verde
Natércia,
crua Ninfa, só buscava
com
mil suspiros tristes que derrama.
Porque
te vás de quem por ti se perde,
para
quem pouco te ama? (suspirava).
[E]
o Eco lhe responde: Pouco te ama.
Não passes, caminhante! Quem me chama?
—üa
memória nova e nunca ouvida,
de
um que trocou finita e humana vida,
por
divina, infinita e clara fama.
Quem
é que tão gentil louvor derrama?
—Quem
derramar seu sangue não duvida
por
seguir a bandeira esclarecida
de
um capitão de Cristo, que mais ama.
Ditoso
fim, ditoso sacrificio,
que
a Deus se fez e ao mundo juntamente,
apregoando
direi tão alta sorte.
Mais
poderás contar a toda a gente,
que
sempre deu sua vida claro indício
de
vir a merecer tão santa morte.
Na ribeira do Eufrates assentado,
discorrendo
me achei pela memória
aquele
breve bem, aquela glória,
que
em ti, doce Sião, tinha passado.
Da
causa de meus males perguntado
me
foi: Como não cantas a história
de
teu passado bem, e da vitória
que
sempre de teu mal hás alcançado?
Não
sabes, que a quem canta se lhe esquece
o
mal, inda que grave e rigoroso?
Canta,
pois, e não chores dessa sorte.
Respondo
com suspiros: Quando crece
a
muita saudade, o piadoso
remédio
é não cantar senso a morte.
No mundo poucos anos, e cansados,
vivi,
cheios de vil miséria dura;
foi-me
tão cedo a luz do dia escura,
que
não vi cinco lustros acabados.
Corri
terras e mares apartados
buscando
à vida algum remédio ou cura;
mas
aquilo que, enfim, não quer ventura,
não
o alcançam trabalhos arriscados.
Criou-me
Portugal na verde e cara
pátria
minha Alenquer; mas ar corruto
que
neste meu terreno vaso tinha,
me
fez manjar de peixes em ti, bruto
mar,
que bates na Abássia fera e avara,
tão
longe da ditosa pátria minha!
No mundo quis um tempo que se achasse
o
bem que por acerto ou sorte vinha;
e,
por exprimentar que dita tinha,
quis
que a Fortuna em mim se exprimentasse.
Mas,
por que meu destino me mostrasse
que
nem ter esperanças me convinha,
nunca
nesta tão longa vida minha
cousa
me deixou ver que desejasse.
Mudando
andei costume, terra e estado,
por
ver se se mudava a sorte dura;
a
vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas
(segundo o que o Céu me tem mostrado)
já
sei que deste meu buscar ventura,
achado
tenho já, que não a tenho.
No tempo que de Amor viver soía,
nem
sempre andava ao remo ferrolhado;
antes
agora livre, agora atado,
em
várias flamas variamente ardia.
Que
ardesse num só fogo, não queria
O
Céu, porque tivesse exprimentado
que
nem mudar as causas ao cuidado
mudança
na ventura me faria.
E se
algum pouco tempo andava isento,
foi
como quem co peso descansou,
por
tornar a cansar com mais alento.
Louvado
seja Amor em meu tormento,
pois
para passatempo seu tomou
este
meu tão cansado sofrimento!