João Guimarães Rosa nasceu
no ano de 1908, em Cordisburgo, zona pastoril centro-norte de Minas Gerais.
Formado em medicina, exerceu a profissão em Itaúna e Barbacena. Poliglota,
aprendeu sozinho alemão, russo, francês, inglês, húngaro, grego, latim,
italiano e espanhol. Em 1934, ingressou na carreira diplomática, servindo em
Hamburgo, Lisboa, Bogotá e Paris.
Como escritor, publicou sua
obra máxima Grande Sertões: Vereda –
um clássico da literatura brasileira. Frequentemente, Guimarães Rosa é comparado
ao escrito irlandês James Joyce pelo experimentalismo que ambos realizaram na
linguagem. De fato, característica marcante da obra de Guimarães Rosa é a
linguagem que recria e transfigura o linguajar popular através de metáforas
poéticas próprias. Embora sua obra literária não possa ser classificada como
simplesmente regionalista, o “regionalismo”
de Guimarães Rosa, povoado por personagens do sertão, como jagunços, peões,
vaqueiros, coronéis, beatas, prostitutas etc., assume aspectos universais,
transitando dialeticamente entre o local e o global, o real e o mágico, o
concreto e o abstrato, o finito e o infinito etc. Polêmicas à parte, talvez a melhor
definição da obra de Guimarães Rosa é a metáfora do crocodilo e do rio São Francisco
escrita pelo próprio Guimarães Rosa:
“(...) Gostaria de ser um
crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um “magister”
da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo
que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os
grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito
vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o
sentimento dos homens. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade”.
Obras:
Sagarana
(1946) – contos;
Corpo
de Baile (1956 - 1964) – novelas: Manuelzão e Miguilim (“Campo Geral” e “Uma Estória de Amor”); No Urubuquaquá, no Pinhém (“O recado do Morro”, “Cara de Bronze” e “Lélio e Lina”); Noites do Sertão (“Lão-Dalalã” e “Buriti”).
Grande
Sertão: Veredas, 1956 – romance.
Primeiras
Estórias, 1962 – contos;
Tutameia –
Terceiras Estórias 1967 – contos;
Estas
estórias, 1969 – contos;
Ave,
Palavra, 1970 – contos.
A
invenção da linguagem em Guimarães Rosa
Por Alfredo Bosi
(em: História Concisa da Literatura Brasileira)
A obra de Guimarães Rosa
implica uma alteração profunda no modo de encarar a palavra, tomada como um
feixe de significações. Além do referente semântico, signo estético é portador
de sons e de formas que desvendam, fenomenicamente, as relações íntimas entre
significado e o significante.
Voltada para as forças
virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo
intencionalmente as barreiras entre narrativa e lírica, revitalizando recursos
da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas
internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos sintáticos,
vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras,
metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos, coralidade.
Suas experiências semânticas
e invenções fundamentam-se no inventário dos processos da língua. Imerso na
musicalidade da fala sertaneja, ele procurou, em Sagarana, fixá-la na melopeia de um fraseio no qual soam cadências
populares e medievais.
“As ancas balançam, e as
vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na
massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos de
baques, e o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita
tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...
Um
boi preto, um boi pintado,
cada
um tem sua cor.
Cada
coração um jeito
de
mostrar o seu amor.
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...”
Vale observar a riqueza e a
ousadia de algumas reinvenções de Guimarães Rosa, em palavras como “essezinho”,
“essezim”, “salsim”,” satanazim”, “semblar”, “fiúme”, “agarrante”, “levantante”,
“maravilhal”, “fluifim” (adj.),” gaviãoão”, “ossoso”,” vivoso”, “brisbrisa”, “cavalanços”,
“refrio”, “retrovão”, “remedir”, “deslei”, “desfalar”, “acismorro”, “de
pouquinho em pouquim”, “o ferrabrir dos olhos”, “abrumalva”, “alemão-rana”; ou
em frases e períodos como “a bala beija-florou”; “os passarinhos que bem-me-viam”;
“os cavalos aiando gritos”; “recebe o encharcar dos brejos, verde a verde,
veredas...”; “ao que nós acampapados em pé duns brejos, brejal, cabo de
várzeas; me revejo de tudo, daquele dia a dia; aí a gente se curvar, suespendia
uma folhagem, lá entrava; resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás,
discordas”; “e aí se deu o que se deu – isto é”; “eu era um homem restante
trivial”; “aí, de, já searapuava o Gorgulho mestre na desconfiança...”
O mitopoético foi a solução
romanesca de Guimarães Rosa, situando sua obra na vanguarda da narrativa contemporânea
que se tem abeirado dos limites entre o real e o surreal, explorando as
dimensões pré-conscientes do ser humano e nutrindo-se de velhas tradiçõe, as
mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio entre o
sagrado e o demoníaco.
A saída proposta por Guimarães Rosa para esconjurar o pitoresco e o exótico do regionalismo deu-se com a entrega amorosa à paisagem e ao mito, reencontrados na materialidade da linguagem. A saída de Guimarães Rosa não é a única para o escritor brasileiro hoje, mas é que nos fascinará por mais tempo e com mais razões.
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