segunda-feira, 1 de julho de 2024

O direito à cidade: entre o público e privado

 Público e privado

Por G. Ã. Pires

“Quanto vale a vida?” Esta é a questão central da Ilíada. No Canto I da epopeia homérica, Aquiles não quer mais lutar. Talvez, motivado pela ofensa de Agamêmnon, o maior herói grego cai em si, diante do horror da guerra. Sua indecisão é um sinal de sua profunda humanidade - humanidade esta essencialmente frágil e incapaz de alterar o que um destino trágico lhe reserva. Nada, nem bens materiais nem glória e fama, o registro eterno de seu nome na História, nada é mais importante que a vida. Mais tarde, na Odisseia, a hesitação do divino de pés ligeiros parece se confirmar inteiramente quando da descida (nékuia) de Ulisses ao reino de Hades. Em seu encontro com seu ex-companheiro de batalha no cerco à cidade de Tróia, Ulisses ouve a confissão do lendário Aquiles: melhor seria viver as agruras de uma vida de um trabalhador braçal do que ser rei aqui no Hades. Mas o Destino é soberano, até mesmo para a vontade dos deuses; eles próprios, na Ilíada, tão humanos. Porém, o destino, embora já conhecido de antemão para Aquiles, não está descrito como se fosse numa rota traçada em um mapa. Ele é surpreendente, não é óbvio, e se revela aos poucos, no tempo presente, de modo inusitado e desconhecido, no fluir da própria vida. Não há como fugir: o destino prega peças, ele estará sempre esperando.

Um dos maiores equívocos da leitura dos clássicos da Antiguidade é ler as epopeias como um poema moderno. Lá, não estava em jogo a liberdade criativa do autor, isto é, sua decisão de escolher a bel-prazer um desfecho mais agradável ou não para um certo herói. De fato, Aquiles não tem outra opção senão lutar – e perecer ainda na “flor-da-idade”. Tampouco o rapto da mulher mais linda do mundo, Helena, pelo sedutor Páris, é um fato pitoresco de consequências insensatas, as quais conduziriam milhares de homens para um desfecho fatal. O que está em jogo, e que por vezes passou despercebido para alguns críticos literários, é a formação da identidade grega. Se Helena se apaixonou de verdade pelo belo Páris ou se partiu forçada para dentro das muralhas de Tróia não importa, e se isto foi o estopim da guerra, como de fato o foi, tal narrativa não se trata de uma mera alegoria ou metáfora mas da realidade em seu sentido mais cru. Helena é a própria Grécia. Sua ausência implica a perda brusca do nexo significativo do reconhecimento de um grupo social em relação a um outro. Helena é o referencial harmônico que concilia interesses tão diversos como o de Aquiles e Agamêmnon. A ofensa sofrida por Menelau diz respeito a todos aqueles que se reconheciam numa origem comum. Por isso, a noção de “identidade nacional” estava vinculada a um laço federativo e de solidariedade entre centenas de cidades-estados autônomas e independentes que se reconheciam como gregas. Em um nível ainda mais profundo, o sentido de pátria se restringia ao âmbito estrito da cidade. O universo urbano se distinguia do resto do mundo, tido como natural (selvagem, rural, bárbaro). Por mais que a cidade não passasse de um ponto de intersecção de latifúndios, suas instituições públicas lhe conferiam um status de superação do tempo natural, regido pelo ciclo da agricultura. Como é demais conhecido, Aristóteles definia o “ser humano” – não qualquer ser humano, mas o cidadão – enquanto “animal político”, isto é, citadino. O que definia um cidadão do estrangeiro, e por extensão do servo e do escravo, era a sua polidez, no sentido atual que empregamos a esta palavra, que é metonímico – um material bruto depois de polido é um “material político”! Sem dúvida, urbanidade é ainda hoje sinônimo de civilizado, educado, cortês, afável, agradável, culto etc. Mas o que isto nos afeta? Hoje, pode se dizer, a maior importância da civilização grega é o conceito de democracia, embora suas diferenças com a democracia moderna sejam enormes. Fato inédito na Antiguidade, a polis de Atenas inventou o governo do povo (demos). Tomando por referência a democracia grega, cabe nos perguntar: em que consiste para nós o conceito de cidadania?

Todavia, não se situa na Grécia Antiga a inauguração da distinção público (a cidade) e privado (o mundo rural). Ela é bem mais antiga, data “oficialmente” de pelo menos o século XVIII a.C., tendo com marco um bloco de pedra de 2,25 metros de altura, encravado no meio da cidade, no templo do deus Sol, onde fora cinzelada uma coletânea de leis em inscrições em alfabeto cuniforme, provavelmente de origem suméria, conhecida por Estela ou Código de Hamurabi. Talvez, pela primeira vez, um rei condenava o poder dos mais fortes e se punha em favor dos mais fracos através de um sistema imparcial de justiça. Pela primeira vez, um legislador reconhecia o direito das mulheres e lhes dava garantias que deviam ser observadas pela sociedade. 

Da Babilônia e da Grécia, partiremos, nesta jornada pelos vestígios do tempo, a Roma. Segundo o pensador francês Henri Lefebvre, há uma certa permanência na civilização ocidental de uma forma lógica (Grécia) e uma forma jurídica (Roma). Se nossos conhecimentos em matéria jurídica não forem tão incipientes, arriscamos a dizer que a grande contribuição do direito romano foi a garantia do direito de apelação. E aqui vale a pena citar o texto de Paul Veyne:

Com relação à Antiguidade romana, a vida privada torna-se efetivamente um fator predominante da civilização, para não dizer o mais importante. A mais evidente prova disso é o eclipse da cidade diante do campo. Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos; agora se refugiava nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrava em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é domínio privado. (VEYNE).

(...)

Para os germanos – (...) – determina a posse essencialmente a conservação meticulosa e severa de objetos preciosos ou indispensáveis:joias, ferramentas, produtos comestíveis ou animais domésticos. Assim, assume proporções dramáticas ou roubo de um pote de mel cometido por um escravo na região da Angoulême no século VI. Homem teria sido imediatamente enforcado se um recluso , Cybard, não houvesse intervido em seu favor e salvado sua vida. Mais tarde, Teodulfo, bispo de Orléans, homem de civilização romana, durante uma viajem de missus dominicus [enviado real] que efetuou em Narbonnaise por volta de 798 queixou-se amargamente de ver o roubo punido com a morte e o homicídio com pagamento de uma soma em dinheiro. Era uma consequência inevitável da preferência de uma sociedade guerreira pelos bens pessoais. Para gente nos limites da sobrevivência ter importa mais que ser. Santo Ambrósio chamava essa atitude de avareza; Gregório de Tours, de rapacidade. Todavia, para essas águias de alto voo que eram os germanos errantes e triunfantes, a morte constituía a melhor maneira de marcar as fronteiras instransponíveis de seus bens privados. (VEYNE).

Este ensaio pretende contribuir de algum modo à atual questão relativa ao direito à cidade. Realmente, atual porque esta formulação compõe um tema central nos debates entre especialistas e gestores públicos perante um cenário do mundo cada vez mais urbanizado. Os problemas sociais, políticos e econômicos, que daí se originam, não são totalmente conhecidos ou previsíveis em toda sua extensão e consequência – a médio e longo prazo – pelo simples fato de serem inéditos. Mas em que medida esta formulação – “o direito à cidade” – se aplica e é concernente ou cabível? O que é um “direito à cidade”? Significa: o usufruto integral da cidade pelos seus habitantes? Um direito inalienável do cidadão? Logo, faculdade dos cidadãos? Mas, se a cidade é um espaço público, caberia reivindicá-la entre os direitos destes seus cidadãos? Tal proposição já não é em si mesma uma redundância? Por outro lado, reclamar um direito pela cidade já não pressupõe uma perda, por parte da sociedade civil, da própria cidade de que lhe é inerente; ou ainda, uma alienação do mencionado espaço público ou do direito de usufruto da cidade pelos seus cidadãos? Assim, o direito à cidade vem somar ao leque dos direitos civis e, como tal, de um reconhecimento legal de supostas “minorias” espoliadas da cidade e de seus “equipamentos urbanos”? A estes questionamentos, poder-se-iam acrescentar outros. Mas paremos por aqui. Estas perguntas, e outras mais possíveis, apenas demonstram o grau de dificuldade da proposição sobre um direito à cidade. A princípio, afastaremos uma distinção vulgar entre esfera pública e vida privada. Isto é, da abstração derivada supostamente de um espaço físico cindido entre “cidade” (res publica) e suas instâncias atinentes ao mundo doméstico – considerado este como um refúgio do lar, da casa ou moradia. Esta distinção pressupõe uma esfera pública definida por normas gerais que devem ser observadas por todos os indivíduos que compõem a sociedade civil e uma esfera privada, em que a vida privada é marcada por regras particulares ou a total ausência de regras, onde a liberdade e a intimidade dos indivíduos teriam lugar.