Por G. Ã. Pires
“Quanto
vale a vida?” Esta é a questão central da Ilíada.
No Canto I da epopeia homérica, Aquiles não quer mais lutar. Talvez, motivado
pela ofensa de Agamêmnon, o maior herói grego cai em si, diante do horror da
guerra. Sua indecisão é um sinal de sua profunda humanidade - humanidade esta essencialmente frágil e incapaz de
alterar o que um destino trágico lhe reserva. Nada, nem bens materiais nem
glória e fama, o registro eterno de seu nome na História, nada é mais
importante que a vida. Mais tarde, na Odisseia,
a hesitação do divino de pés ligeiros parece se confirmar inteiramente quando
da descida (nékuia) de Ulisses ao reino
de Hades. Em seu encontro com seu ex-companheiro de batalha no cerco à cidade
de Tróia, Ulisses ouve a confissão do lendário Aquiles: melhor seria viver as agruras
de uma vida de um trabalhador braçal do que ser rei aqui no Hades. Mas o Destino
é soberano, até mesmo para a vontade dos deuses; eles próprios, na Ilíada, tão humanos. Porém, o destino,
embora já conhecido de antemão para Aquiles, não está descrito como se fosse numa
rota traçada em um mapa. Ele é surpreendente, não é óbvio, e se revela aos
poucos, no tempo presente, de modo inusitado e desconhecido, no fluir da
própria vida. Não há como fugir: o destino prega
peças, ele estará sempre esperando.
Um
dos maiores equívocos da leitura dos clássicos da Antiguidade é ler as epopeias
como um poema moderno. Lá, não estava em jogo a liberdade criativa do autor,
isto é, sua decisão de escolher a bel-prazer um desfecho mais agradável ou não
para um certo herói. De fato, Aquiles não tem outra opção senão lutar – e
perecer ainda na “flor-da-idade”. Tampouco o rapto da mulher mais linda do
mundo, Helena, pelo sedutor Páris, é um fato pitoresco de consequências insensatas,
as quais conduziriam milhares de homens para um desfecho fatal. O que está em
jogo, e que por vezes passou despercebido para alguns críticos literários, é a
formação da identidade grega. Se Helena se apaixonou de verdade pelo belo Páris
ou se partiu forçada para dentro das muralhas de Tróia não importa, e se isto
foi o estopim da guerra, como de fato o foi, tal narrativa não se trata de uma
mera alegoria ou metáfora mas da realidade em seu sentido mais cru. Helena é a
própria Grécia. Sua ausência implica a perda brusca do nexo significativo do
reconhecimento de um grupo social em relação a um outro. Helena é o referencial
harmônico que concilia interesses tão diversos como o de Aquiles e Agamêmnon. A
ofensa sofrida por Menelau diz respeito a todos aqueles que se reconheciam numa
origem comum. Por isso, a noção de “identidade nacional” estava vinculada a um
laço federativo e de solidariedade entre centenas de cidades-estados autônomas
e independentes que se reconheciam como gregas. Em um nível ainda mais
profundo, o sentido de pátria se restringia ao âmbito estrito da cidade. O
universo urbano se distinguia do resto do mundo, tido como natural (selvagem,
rural, bárbaro). Por mais que a cidade não passasse de um ponto de intersecção
de latifúndios, suas instituições públicas lhe conferiam um status de superação do tempo natural, regido pelo ciclo da
agricultura. Como é demais conhecido, Aristóteles definia o “ser humano” – não
qualquer ser humano, mas o cidadão –
enquanto “animal político”, isto é, citadino.
O que definia um cidadão do estrangeiro, e por extensão do servo e do escravo,
era a sua polidez, no sentido atual
que empregamos a esta palavra, que é metonímico – um material bruto depois de
polido é um “material político”! Sem dúvida, urbanidade é ainda hoje sinônimo
de civilizado, educado, cortês, afável, agradável, culto etc. Mas o que isto
nos afeta? Hoje, pode se dizer, a maior importância da civilização grega é o
conceito de democracia, embora suas diferenças com a democracia moderna sejam
enormes. Fato inédito na Antiguidade, a polis de Atenas inventou o governo do
povo (demos). Tomando por referência a democracia grega, cabe nos perguntar: em
que consiste para nós o conceito de cidadania?
Todavia,
não se situa na Grécia Antiga a inauguração da distinção público (a cidade) e
privado (o mundo rural). Ela é bem mais antiga, data “oficialmente” de pelo
menos o século XVIII a.C., tendo com marco um bloco de pedra de 2,25 metros de
altura, encravado no meio da cidade, no templo do deus Sol, onde fora cinzelada
uma coletânea de leis em inscrições em alfabeto cuniforme, provavelmente de
origem suméria, conhecida por Estela ou Código de Hamurabi. Talvez, pela
primeira vez, um rei condenava o poder dos mais fortes e se punha em favor dos
mais fracos através de um sistema imparcial de justiça. Pela primeira vez, um
legislador reconhecia o direito das mulheres e lhes dava garantias que deviam
ser observadas pela sociedade.
Da
Babilônia e da Grécia, partiremos, nesta jornada pelos vestígios do tempo, a
Roma. Segundo o pensador francês Henri Lefebvre, há uma certa permanência na
civilização ocidental de uma forma lógica
(Grécia) e uma forma jurídica (Roma).
Se nossos conhecimentos em matéria jurídica não forem tão incipientes,
arriscamos a dizer que a grande contribuição do direito romano foi a garantia
do direito de apelação. E aqui vale a pena citar o texto de Paul Veyne:
Com relação à Antiguidade
romana, a vida privada torna-se efetivamente um fator predominante da
civilização, para não dizer o mais importante. A mais evidente prova disso é o
eclipse da cidade diante do campo. Antes a alegria de viver estava nas ruas e
nos grandes monumentos urbanos; agora se refugiava nas casas e nas cabanas.
Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrava em facilitar a vida
pública como ideal de vida; agora com os reinos germânicos, dilui-se o culto da
urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos,
quase tudo é domínio privado. (VEYNE).
(...)
Para os germanos – (...) –
determina a posse essencialmente a conservação meticulosa e severa de objetos
preciosos ou indispensáveis:joias, ferramentas, produtos comestíveis ou animais
domésticos. Assim, assume proporções dramáticas ou roubo de um pote de mel
cometido por um escravo na região da Angoulême no século VI. Homem teria sido
imediatamente enforcado se um recluso , Cybard, não houvesse intervido em seu
favor e salvado sua vida. Mais tarde, Teodulfo, bispo de Orléans, homem de
civilização romana, durante uma viajem de missus
dominicus [enviado real] que efetuou em Narbonnaise por volta de 798
queixou-se amargamente de ver o roubo punido com a morte e o homicídio com
pagamento de uma soma em dinheiro. Era uma consequência inevitável da
preferência de uma sociedade guerreira pelos bens pessoais. Para gente nos
limites da sobrevivência ter importa mais que ser. Santo Ambrósio chamava essa
atitude de avareza; Gregório de Tours, de rapacidade. Todavia, para essas
águias de alto voo que eram os germanos errantes e triunfantes, a morte
constituía a melhor maneira de marcar as fronteiras instransponíveis de seus
bens privados. (VEYNE).
Este
ensaio pretende contribuir de algum modo à atual questão relativa ao direito à cidade. Realmente, atual
porque esta formulação compõe um tema central nos debates entre especialistas e
gestores públicos perante um cenário do mundo cada vez mais urbanizado. Os
problemas sociais, políticos e econômicos, que daí se originam, não são
totalmente conhecidos ou previsíveis em toda sua extensão e consequência – a
médio e longo prazo – pelo simples fato de serem inéditos. Mas em que medida
esta formulação – “o direito à cidade” – se aplica e é concernente ou cabível?
O que é um “direito à cidade”? Significa: o usufruto integral da cidade pelos
seus habitantes? Um direito inalienável do cidadão? Logo, faculdade dos cidadãos? Mas, se a cidade é um espaço público, caberia reivindicá-la entre os direitos destes seus
cidadãos? Tal proposição já não é em si mesma uma redundância? Por outro lado,
reclamar um direito pela cidade já não pressupõe uma perda, por parte da
sociedade civil, da própria cidade de que lhe é inerente; ou ainda, uma
alienação do mencionado espaço público ou do direito de usufruto da cidade
pelos seus cidadãos? Assim, o direito à cidade vem somar ao leque dos direitos
civis e, como tal, de um reconhecimento legal de supostas “minorias” espoliadas
da cidade e de seus “equipamentos urbanos”? A estes questionamentos, poder-se-iam
acrescentar outros. Mas paremos por aqui. Estas perguntas, e outras mais
possíveis, apenas demonstram o grau de dificuldade da proposição sobre um
direito à cidade. A princípio, afastaremos uma distinção vulgar entre esfera
pública e vida privada. Isto é, da abstração derivada supostamente de um espaço
físico cindido entre “cidade” (res
publica) e suas instâncias atinentes ao mundo doméstico – considerado este
como um refúgio do lar, da casa ou moradia. Esta distinção pressupõe uma esfera
pública definida por normas gerais que devem ser observadas por todos os
indivíduos que compõem a sociedade civil e uma esfera privada, em que a vida
privada é marcada por regras particulares ou a total ausência de regras, onde a
liberdade e a intimidade dos indivíduos teriam lugar.