Se você é um amante da literatura e da história, já deve ter ouvido falar dos Cancioneiros Medievais. Mas o que exatamente são essas obras e por que elas continuam a nos fascinar séculos depois de sua criação? Neste artigo, vamos mergulhar no universo da poesia trovadoresca, explorando as nuances das famosas cantigas de amor e cantigas de amigo, suas origens, estruturas e o legado que deixaram para a cultura portuguesa.
O Que São Cancioneiros Medievais?
Os Cancioneiros são coletâneas de textos poéticos e musicais produzidos na Idade Média, principalmente na Península Ibérica. Eles são a principal fonte para o estudo da lírica galego-portuguesa, um dos movimentos literários mais importantes do período. Esses manuscritos eram compilados por copistas e, muitas vezes, incluíam notações musicais que acompanhavam as letras. Essa característica destaca a natureza performática da poesia trovadoresca: as cantigas eram feitas para serem cantadas, não apenas lidas.
O período de produção dessas cantigas se estende do final do século XII até meados do século XIV. Os principais cancioneiros que chegaram até nós são:
Cancioneiro da Ajuda: O mais antigo e também o mais bem preservado, com ilustrações e notações musicais.
Cancioneiro da Vaticana: Cópia dos originais medievais, com um grande número de cantigas.
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancuti): O mais volumoso e completo dos três.
Cantigas de Amor: A Voz do Trovador Apaixonado
As cantigas de amor são o tipo mais popular de cantiga trovadoresca. Elas representam a voz poética do trovador, um nobre que compunha a letra e a melodia, expressando seus sentimentos. O tema central é o amor cortês, um conceito idealizado e feudal. O trovador, na sua cantiga, assume uma postura de submissão e vassalagem perante a sua senhora, uma dama de alta estirpe, casada e inatingível. Ele a serve e a louva, mas seu amor é platônico e, na maioria das vezes, não correspondido.
Principais Características das Cantigas de Amor
Voz Poética Masculina: O eu-lírico é sempre um homem (o trovador).
Idealização da Mulher: A dama é vista como um ser superior, perfeito e inatingível. É a senhora, a quem o trovador serve.
Sofrimento Amoroso (coita): O trovador sofre por um amor não correspondido, e esse sofrimento é visto como uma prova de sua lealdade e nobreza de espírito.
Linguagem Formal: O vocabulário é rebuscado, com o uso de termos como "senhor" (em referência à dama), "coita" (sofrimento) e "mesura" (moderação, respeito).
Um exemplo clássico de cantiga de amor é a obra de Dom Dinis, um dos mais importantes trovadores. Suas cantigas refletem a busca por um amor impossível, o que tornava a arte da composição ainda mais desafiadora e enigmática para a época.
Cantigas de Amigo: A Confissão Feminina
Em contraste com as cantigas de amor, as cantigas de amigo trazem a voz poética de uma mulher. Essa é uma das características mais singulares da lírica galego-portuguesa, já que, em outras tradições literárias europeias, a mulher raramente era a protagonista do discurso amoroso. No entanto, é importante notar que essas cantigas eram, na verdade, escritas por homens, os trovadores, que se colocavam no lugar da mulher para expressar seus sentimentos e anseios.
O tema central das cantigas de amigo é o amor simples e popular. A "amiga" (a moça) lamenta a ausência do "amigo" (o namorado), revela suas inquietações a confidentes como a mãe, a irmã ou a natureza (as ondas do mar, as flores). A linguagem é mais acessível e direta, refletindo o cotidiano e os sentimentos genuínos.
Principais Características das Cantigas de Amigo
Voz Poética Feminina: O eu-lírico é sempre uma mulher.
Ambiente Natural: A natureza tem um papel fundamental, servindo de confidente para a jovem. O mar, as fontes, o sol e as árvores são frequentemente mencionados.
Refrão e Paralelismo: A estrutura dessas cantigas é marcada pelo uso de refrões e por um forte paralelismo, onde versos se repetem com pequenas variações. Esse recurso cria um efeito de ritmo e melodia que reforça a ideia de que eram cantadas.
Expressão de Saudade: O sentimento predominante é a saudade e a tristeza pela ausência do amado.
Um exemplo notável de cantiga de amigo é a obra de Martim Codax, que escreveu sobre a saudade sentida por uma jovem à espera de seu amado em uma praia. Essas cantigas são uma janela para a vida sentimental das mulheres medievais, mesmo que essa perspectiva tenha sido filtrada pela visão masculina.
Qual a Diferença Entre Cantiga de Amor e Cantiga de Amigo?
Embora ambas as cantigas tratem de amor, a principal diferença reside na voz poética e no contexto social em que se inserem. As cantigas de amor, de origem aristocrática, expressam um amor cortês, idealizado e sofredor. Já as cantigas de amigo, com raízes na tradição popular, descrevem um amor mais simples e palpável, com a saudade e o lamento como temas centrais.
Por Que Estudar os Cancioneiros Medievais?
A importância dos Cancioneiros Medievais vai muito além de sua relevância histórica. Eles são a base da nossa lírica, o ponto de partida para toda a poesia em língua portuguesa. O estudo das cantigas de amor e cantigas de amigo nos permite:
Compreender a cultura medieval: Revelam aspectos sociais, hierárquicos e sentimentais da sociedade da época.
Valorizar a herança linguística: Ajudam a entender a evolução da língua portuguesa a partir do galego-português.
Conectar-se com as origens da poesia: Mostram como os sentimentos universais de amor, saudade e sofrimento já eram expressos de maneira artística há séculos.
Se você se aprofundar neste tema, verá que as perguntas comuns, como "Quem eram os trovadores?", "O que era o amor cortês?" ou "Qual a função dos cancioneiros?", são respondidas a cada verso. Essas obras não são apenas documentos históricos, mas sim expressões artísticas que continuam a ecoar em nossa cultura.
Cantigas de Amor
(Nas quais um homem canta seu amor por uma dama, num estilo cortês e influenciado pela poesia provençal)
Nota: Esta é, na verdade, uma Cantiga de Amigo (pela voz feminina) mas é muitas vezes atribuída ao gênero amor devido ao autor. O poeta usa o paralelismo típico das cantigas de amigo, perguntando à natureza pelo amado ausente.
Nota: Nesta cantiga, o rei-poeta afirma que os trovadores provençais (franceses) falam bem do amor, mas que a sua própria dor (coita) por sua senhora é muito maior e mais verdadeira.
Nota: Um dos exemplos mais belos e dramáticos. A donzela está isolada numa capela (ermida) à beira-mar, cercada pelas ondas, metáfora para o perigo e a solidão que sente à espera do amado.
Nota: Outro exemplo clássico de paralelismo. A repetição da pergunta às ondas do mar de Vigo cria um ritmo melancólico e ansioso, característico do lirismo tradicional galego-português.
Nota: Nesta cantiga, a voz feminina tenta despertar o amigo, enquanto todas as aves cantam sobre o amor, contrastando com a sua própria alegria contida ("Leda m'and'eu" - Alegre ando eu).
Nota: Esta cantiga captura um momento de juventude e alegria feminina. As raparigas combinam bailar sob as aveleiras em flor, e acreditam que quem for bela e estiver apaixonada se juntará a elas. Reflete uma visão mais ingénua e festiva do amor.
Nota: Um diálogo entre uma jovem e sua mãe. A filha quer encontrar o amado e pergunta à mãe o que deve dizer-lhe. A mãe, compreensiva, sugere que mostre os cabelos que já branquejam (branquejam) de tanto sofrer por ele.
Nota: Cantiga de tom simples e direto que expressa a felicidade pura e simples de ver o amado ir e vir, um sentimento de contentamento com a sua presença.
Nota: Outro diálogo, onde o pai (ou a mãe) pergunta à filha bela (velida, louçana) porque se demorou na fonte fria. A resposta repetida, "Os amores ei" (Tenho amores), é uma confissão subtil e terna do seu enamoramento.
Nota: Uma cantiga de amor que expressa o paradoxo do amor cortês. O trovador não se pode queixar totalmente do bem que a dama lhe faz, mas sofre com a distância que ela impõe. Conclui que o bem que mais custa a alcançar dá mais prazer, glorificando o sofrimento amoroso.
Conclusão: O Legado dos Cancioneiros Medievais
Os Cancioneiros Medievais não são apenas um relicário de versos antigos; são a base da literatura portuguesa e uma janela para a alma da Idade Média. As cantigas de amor e as cantigas de amigo, com suas vozes distintas e temas universais, revelam as complexidades do amor humano em suas diferentes formas: o idealizado e o cotidiano, o nobre e o popular.
Ao mergulharmos nesses textos, entendemos que a poesia, em sua essência, sempre foi uma forma de expressar os mais profundos sentimentos, independentemente da época ou da classe social. A beleza da lírica trovadoresca reside exatamente nessa dualidade, onde o sofrimento do trovador e a saudade da jovem se encontram e nos conectam com as emoções que ainda hoje nos movem.
Estudar os Cancioneiros Medievais é, portanto, revisitar as origens da nossa cultura e reconhecer a riqueza de uma tradição que continua a ecoar nos versos de poetas contemporâneos. Eles nos lembram que, em meio a todas as mudanças da história, a busca por amor e a expressão de sentimentos permanecem como pilares da experiência humana.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração que você vê é um díptico, ou seja, uma obra de arte dividida em duas partes que se complementam, com o estilo de uma iluminura medieval, semelhante às encontradas nos antigos manuscritos.
Lado Esquerdo: A Cantiga de Amor No lado esquerdo, vemos um cavaleiro com armadura ajoelhado diante de uma dama sentada em um trono dentro de um castelo. A cena representa o "amor cortês", onde o trovador (o cavaleiro) canta uma "cantiga de amor" para sua "senhora". Ele tem um livro de cantigas aberto em suas mãos, e balões de fala mostram a frase "Minha senhor...", que reforça a hierarquia e a submissão do trovador à dama. A arquitetura de pedra e as vestimentas ricas indicam o ambiente da corte e a nobreza dos personagens.
Lado Direito: A Cantiga de Amigo No lado direito, a cena se passa na natureza, em um ambiente popular. Uma jovem com roupas simples, com uma coroa de flores, está em pé ao lado de um riacho, cercada por árvores e animais, como um cervo. Ela também tem um livro aberto e canta uma "cantiga de amigo", com notas musicais que sobem em direção ao céu. Esta cena simboliza o amor simples e a saudade, onde a mulher expressa seus sentimentos, muitas vezes à espera de seu amado, confiando seus lamentos à natureza.
Elemento em Comum As duas cenas são unidas por uma moldura ricamente decorada com detalhes em filigrana dourada, flores e símbolos medievais, representando os cancioneiros, as coletâneas que agrupavam esses dois tipos de cantigas. A ilustração captura visualmente a essência e as diferenças temáticas entre a poesia aristocrática da cantiga de amor e a lírica popular da cantiga de amigo.
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