quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O Fascinante Mundo dos Cancioneiros Medievais: Cantigas de Amor e de Amigo

A ilustração que você vê é um díptico, ou seja, uma obra de arte dividida em duas partes que se complementam, com o estilo de uma iluminura medieval, semelhante às encontradas nos antigos manuscritos.  Lado Esquerdo: A Cantiga de Amor No lado esquerdo, vemos um cavaleiro com armadura ajoelhado diante de uma dama sentada em um trono dentro de um castelo. A cena representa o "amor cortês", onde o trovador (o cavaleiro) canta uma "cantiga de amor" para sua "senhora". Ele tem um livro de cantigas aberto em suas mãos, e balões de fala mostram a frase "Minha senhor...", que reforça a hierarquia e a submissão do trovador à dama. A arquitetura de pedra e as vestimentas ricas indicam o ambiente da corte e a nobreza dos personagens.  Lado Direito: A Cantiga de Amigo No lado direito, a cena se passa na natureza, em um ambiente popular. Uma jovem com roupas simples, com uma coroa de flores, está em pé ao lado de um riacho, cercada por árvores e animais, como um cervo. Ela também tem um livro aberto e canta uma "cantiga de amigo", com notas musicais que sobem em direção ao céu. Esta cena simboliza o amor simples e a saudade, onde a mulher expressa seus sentimentos, muitas vezes à espera de seu amado, confiando seus lamentos à natureza.  Elemento em Comum As duas cenas são unidas por uma moldura ricamente decorada com detalhes em filigrana dourada, flores e símbolos medievais, representando os cancioneiros, as coletâneas que agrupavam esses dois tipos de cantigas. A ilustração captura visualmente a essência e as diferenças temáticas entre a poesia aristocrática da cantiga de amor e a lírica popular da cantiga de amigo.

Se você é um amante da literatura e da história, já deve ter ouvido falar dos Cancioneiros Medievais. Mas o que exatamente são essas obras e por que elas continuam a nos fascinar séculos depois de sua criação? Neste artigo, vamos mergulhar no universo da poesia trovadoresca, explorando as nuances das famosas cantigas de amor e cantigas de amigo, suas origens, estruturas e o legado que deixaram para a cultura portuguesa.

O Que São Cancioneiros Medievais?

Os Cancioneiros são coletâneas de textos poéticos e musicais produzidos na Idade Média, principalmente na Península Ibérica. Eles são a principal fonte para o estudo da lírica galego-portuguesa, um dos movimentos literários mais importantes do período. Esses manuscritos eram compilados por copistas e, muitas vezes, incluíam notações musicais que acompanhavam as letras. Essa característica destaca a natureza performática da poesia trovadoresca: as cantigas eram feitas para serem cantadas, não apenas lidas.

O período de produção dessas cantigas se estende do final do século XII até meados do século XIV. Os principais cancioneiros que chegaram até nós são:

  • Cancioneiro da Ajuda: O mais antigo e também o mais bem preservado, com ilustrações e notações musicais.

  • Cancioneiro da Vaticana: Cópia dos originais medievais, com um grande número de cantigas.

  • Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancuti): O mais volumoso e completo dos três.

Cantigas de Amor: A Voz do Trovador Apaixonado

As cantigas de amor são o tipo mais popular de cantiga trovadoresca. Elas representam a voz poética do trovador, um nobre que compunha a letra e a melodia, expressando seus sentimentos. O tema central é o amor cortês, um conceito idealizado e feudal. O trovador, na sua cantiga, assume uma postura de submissão e vassalagem perante a sua senhora, uma dama de alta estirpe, casada e inatingível. Ele a serve e a louva, mas seu amor é platônico e, na maioria das vezes, não correspondido.

Principais Características das Cantigas de Amor

  • Voz Poética Masculina: O eu-lírico é sempre um homem (o trovador).

  • Idealização da Mulher: A dama é vista como um ser superior, perfeito e inatingível. É a senhora, a quem o trovador serve.

  • Sofrimento Amoroso (coita): O trovador sofre por um amor não correspondido, e esse sofrimento é visto como uma prova de sua lealdade e nobreza de espírito.

  • Linguagem Formal: O vocabulário é rebuscado, com o uso de termos como "senhor" (em referência à dama), "coita" (sofrimento) e "mesura" (moderação, respeito).

Um exemplo clássico de cantiga de amor é a obra de Dom Dinis, um dos mais importantes trovadores. Suas cantigas refletem a busca por um amor impossível, o que tornava a arte da composição ainda mais desafiadora e enigmática para a época.

Cantigas de Amigo: A Confissão Feminina

Em contraste com as cantigas de amor, as cantigas de amigo trazem a voz poética de uma mulher. Essa é uma das características mais singulares da lírica galego-portuguesa, já que, em outras tradições literárias europeias, a mulher raramente era a protagonista do discurso amoroso. No entanto, é importante notar que essas cantigas eram, na verdade, escritas por homens, os trovadores, que se colocavam no lugar da mulher para expressar seus sentimentos e anseios.

O tema central das cantigas de amigo é o amor simples e popular. A "amiga" (a moça) lamenta a ausência do "amigo" (o namorado), revela suas inquietações a confidentes como a mãe, a irmã ou a natureza (as ondas do mar, as flores). A linguagem é mais acessível e direta, refletindo o cotidiano e os sentimentos genuínos.

Principais Características das Cantigas de Amigo

  • Voz Poética Feminina: O eu-lírico é sempre uma mulher.

  • Ambiente Natural: A natureza tem um papel fundamental, servindo de confidente para a jovem. O mar, as fontes, o sol e as árvores são frequentemente mencionados.

  • Refrão e Paralelismo: A estrutura dessas cantigas é marcada pelo uso de refrões e por um forte paralelismo, onde versos se repetem com pequenas variações. Esse recurso cria um efeito de ritmo e melodia que reforça a ideia de que eram cantadas.

  • Expressão de Saudade: O sentimento predominante é a saudade e a tristeza pela ausência do amado.

Um exemplo notável de cantiga de amigo é a obra de Martim Codax, que escreveu sobre a saudade sentida por uma jovem à espera de seu amado em uma praia. Essas cantigas são uma janela para a vida sentimental das mulheres medievais, mesmo que essa perspectiva tenha sido filtrada pela visão masculina.

Qual a Diferença Entre Cantiga de Amor e Cantiga de Amigo?

Embora ambas as cantigas tratem de amor, a principal diferença reside na voz poética e no contexto social em que se inserem. As cantigas de amor, de origem aristocrática, expressam um amor cortês, idealizado e sofredor. Já as cantigas de amigo, com raízes na tradição popular, descrevem um amor mais simples e palpável, com a saudade e o lamento como temas centrais.

CaracterísticaCantiga de AmorCantiga de Amigo
Voz PoéticaMasculina (o trovador)Feminina (a moça)
TemáticaAmor cortês, idealizadoAmor simples, cotidiano
AmbienteSalão, cortePopular, natureza
LinguagemFormal, rebuscadaSimples, direta

Por Que Estudar os Cancioneiros Medievais?

A importância dos Cancioneiros Medievais vai muito além de sua relevância histórica. Eles são a base da nossa lírica, o ponto de partida para toda a poesia em língua portuguesa. O estudo das cantigas de amor e cantigas de amigo nos permite:

  • Compreender a cultura medieval: Revelam aspectos sociais, hierárquicos e sentimentais da sociedade da época.

  • Valorizar a herança linguística: Ajudam a entender a evolução da língua portuguesa a partir do galego-português.

  • Conectar-se com as origens da poesia: Mostram como os sentimentos universais de amor, saudade e sofrimento já eram expressos de maneira artística há séculos.

Se você se aprofundar neste tema, verá que as perguntas comuns, como "Quem eram os trovadores?", "O que era o amor cortês?" ou "Qual a função dos cancioneiros?", são respondidas a cada verso. Essas obras não são apenas documentos históricos, mas sim expressões artísticas que continuam a ecoar em nossa cultura.

Cantigas de Amor

(Nas quais um homem canta seu amor por uma dama, num estilo cortês e influenciado pela poesia provençal)

1. Autoria: D. Dinis (Rei de Portugal, 1261-1325)
Título (atribuído): "Ai flores, ai flores do verde pino"

Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado!
Ai, Deus, e u é?

  • Nota: Esta é, na verdade, uma Cantiga de Amigo (pela voz feminina) mas é muitas vezes atribuída ao gênero amor devido ao autor. O poeta usa o paralelismo típico das cantigas de amigo, perguntando à natureza pelo amado ausente.

2. Autoria: D. Dinis
Título: "Provençaes soen mui ben trobar"

Provençaes soen mui ben trobar
e dizem eles que é com amor,
mas os que trobam no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan grande coita no seu coraçon
qual ei eu vemha por ha mia senhor.

  • Nota: Nesta cantiga, o rei-poeta afirma que os trovadores provençais (franceses) falam bem do amor, mas que a sua própria dor (coita) por sua senhora é muito maior e mais verdadeira.

3. Autoria: Meendinho
Título: "Sedia-m'eu na ermida de San Simion"

Sedia-m'eu na ermida de San Simion
e cercaron-mi as ondas, que grandes son,
eu atendendo meu amigo, que non vemha!
E cercaron-mi as ondas, que grandes son,
eu atendendo meu amigo, que non vemha!
Estando na ermida ant' o altar,
cercaron-mi as ondas do grande mar,
eu atendendo meu amigo, que non vemha!

  • Nota: Um dos exemplos mais belos e dramáticos. A donzela está isolada numa capela (ermida) à beira-mar, cercada pelas ondas, metáfora para o perigo e a solidão que sente à espera do amado.

4. Autoria: Martim Codax

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo?
E ai Deus, se verrá cedo?

Ondas do mar levado,
se vistes meu amado?
E ai Deus, se verrá cedo?

  • Nota: Outro exemplo clássico de paralelismo. A repetição da pergunta às ondas do mar de Vigo cria um ritmo melancólico e ansioso, característico do lirismo tradicional galego-português.

5. Autoria: Nuno Fernandes Torneol
Título: "Levad', amigo, que dormides as manhanas frias"

Levad', amigo, que dormides as manhanas frias;
toda-las aves do mundo d'amor dizian:
Leda m'and'eu.

Levad', amigo, que dormides as manhanas frias;
toda-las aves do mundo d'amor cantavan:
Leda m'and'eu.

  • Nota: Nesta cantiga, a voz feminina tenta despertar o amigo, enquanto todas as aves cantam sobre o amor, contrastando com a sua própria alegria contida ("Leda m'and'eu" - Alegre ando eu).

6. Autoria: João Zorro
Título: "Bailemos nós já todas três, ai amigas"

Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so aquestas avelaneiras frolidas,
e quen for velida, como nós, velidas,
se amigo amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar.

  • Nota: Esta cantiga captura um momento de juventude e alegria feminina. As raparigas combinam bailar sob as aveleiras em flor, e acreditam que quem for bela e estiver apaixonada se juntará a elas. Reflete uma visão mais ingénua e festiva do amor.

7. Autoria: Airas Nunes
Título: "Ir-me quer'eu, madre, veer"

Ir-me quer'eu, madre, veer
aquelas fontes, ai madre,
e aquelas verdess'ervejas,
e se meu amigo viir,
madre, que lhi direi?

Dir-lhe-ei, filha, que temh'eu
gram coita por el, ai filha,
e mostrarei-lh'eu os meus
cabelos, que por el branquejam,
ai filha, que lhi direi?

  • Nota: Um diálogo entre uma jovem e sua mãe. A filha quer encontrar o amado e pergunta à mãe o que deve dizer-lhe. A mãe, compreensiva, sugere que mostre os cabelos que já branquejam (branquejam) de tanto sofrer por ele.

8. Autoria: D. Dinis
Título: "Que mui gran prazer que eu ei"

Que mui gran prazer que eu ei
quando eu vejo ir e vir
meu amigo! E que gran bem
que me faz ele a min!

E que mui gran bem me faz
e que mui gran prazer que ei
quando eu vejo ir e vir
meu amigo por mi!

  • Nota: Cantiga de tom simples e direto que expressa a felicidade pura e simples de ver o amado ir e vir, um sentimento de contentamento com a sua presença.

9. Autoria: Pero Meogo
Título: "Digades, filha, mia filha velida"

Digades, filha, mia filha velida,
porque tardastes na fontana fria?
Os amores ei.

Digades, filha, mia filha louçana,
porque tardastes na fria fontana?
Os amores ei.

  • Nota: Outro diálogo, onde o pai (ou a mãe) pergunta à filha bela (velida, louçana) porque se demorou na fonte fria. A resposta repetida, "Os amores ei" (Tenho amores), é uma confissão subtil e terna do seu enamoramento.

10. Autoria: D. Afonso Sanches (filho de D. Dinis)
Título: "Non me posso pagar tanto"

Non me posso pagar tanto
do bem que me quer'ela,
que non me queira queixar
um pouco, porque m'afasta;
mais hei eu de sofrer
quanto ela for mais onesta,
ca o bem, que muito custa,
mais prazer dá, quand'achegado.

  • Nota: Uma cantiga de amor que expressa o paradoxo do amor cortês. O trovador não se pode queixar totalmente do bem que a dama lhe faz, mas sofre com a distância que ela impõe. Conclui que o bem que mais custa a alcançar dá mais prazer, glorificando o sofrimento amoroso.

Conclusão: O Legado dos Cancioneiros Medievais

Os Cancioneiros Medievais não são apenas um relicário de versos antigos; são a base da literatura portuguesa e uma janela para a alma da Idade Média. As cantigas de amor e as cantigas de amigo, com suas vozes distintas e temas universais, revelam as complexidades do amor humano em suas diferentes formas: o idealizado e o cotidiano, o nobre e o popular.

Ao mergulharmos nesses textos, entendemos que a poesia, em sua essência, sempre foi uma forma de expressar os mais profundos sentimentos, independentemente da época ou da classe social. A beleza da lírica trovadoresca reside exatamente nessa dualidade, onde o sofrimento do trovador e a saudade da jovem se encontram e nos conectam com as emoções que ainda hoje nos movem.

Estudar os Cancioneiros Medievais é, portanto, revisitar as origens da nossa cultura e reconhecer a riqueza de uma tradição que continua a ecoar nos versos de poetas contemporâneos. Eles nos lembram que, em meio a todas as mudanças da história, a busca por amor e a expressão de sentimentos permanecem como pilares da experiência humana.

(*) Notas sobre a ilustração:

A ilustração que você vê é um díptico, ou seja, uma obra de arte dividida em duas partes que se complementam, com o estilo de uma iluminura medieval, semelhante às encontradas nos antigos manuscritos.

Lado Esquerdo: A Cantiga de Amor No lado esquerdo, vemos um cavaleiro com armadura ajoelhado diante de uma dama sentada em um trono dentro de um castelo. A cena representa o "amor cortês", onde o trovador (o cavaleiro) canta uma "cantiga de amor" para sua "senhora". Ele tem um livro de cantigas aberto em suas mãos, e balões de fala mostram a frase "Minha senhor...", que reforça a hierarquia e a submissão do trovador à dama. A arquitetura de pedra e as vestimentas ricas indicam o ambiente da corte e a nobreza dos personagens.

Lado Direito: A Cantiga de Amigo No lado direito, a cena se passa na natureza, em um ambiente popular. Uma jovem com roupas simples, com uma coroa de flores, está em pé ao lado de um riacho, cercada por árvores e animais, como um cervo. Ela também tem um livro aberto e canta uma "cantiga de amigo", com notas musicais que sobem em direção ao céu. Esta cena simboliza o amor simples e a saudade, onde a mulher expressa seus sentimentos, muitas vezes à espera de seu amado, confiando seus lamentos à natureza.

Elemento em Comum As duas cenas são unidas por uma moldura ricamente decorada com detalhes em filigrana dourada, flores e símbolos medievais, representando os cancioneiros, as coletâneas que agrupavam esses dois tipos de cantigas. A ilustração captura visualmente a essência e as diferenças temáticas entre a poesia aristocrática da cantiga de amor e a lírica popular da cantiga de amigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário