Dom Casmurro (1899), obra-prima de Machado de Assis, não é apenas um marco da literatura brasileira; é um eterno campo de batalha para leitores, críticos e acadêmicos. O cerne deste clássico do Realismo reside em uma pergunta que atravessa gerações: Capitu traiu ou não Bentinho com Escobar?
Este artigo mergulha na complexidade da narrativa machadiana, analisando como o autor constrói uma das maiores ambiguidades literárias de todos os tempos. Exploraremos a perspectiva unilateral de Bentinho, a manipulação da memória e as provas que tanto incriminam quanto inocentam a enigmática Capitu. Prepare-se para desvendar o enigma central de Dom Casmurro, uma leitura essencial para compreender a profundidade psicológica de Machado de Assis.
🎭 A Ambiguidade e a Dúvida: O Coração de Dom Casmurro
O romance é estruturado como uma autobiografia fictícia narrada por Bento Santiago, que, na velhice, assume o apelido de Dom Casmurro (homem calado e arredio). Ele tenta "atar as duas pontas da vida" – a juventude com Capitu e a velhice solitária – por meio da escrita. No entanto, é precisamente essa estrutura que lança a sombra da dúvida sobre toda a narrativa.
📜 A Perspectiva Unilateral de Bentinho
A principal chave para a ambiguidade em Dom Casmurro é a unilateralidade da narração. Tudo o que sabemos sobre Capitu, Escobar, e o casamento desfeito, é filtrado pela mente de Bentinho. Ele não é um narrador confiável; é um homem amargurado, ciumento e, possivelmente, paranoico, que usa a escrita como forma de validar sua própria dor e justificar sua ruína emocional.
A voz de Dom Casmurro é a de um acusador que também atua como juiz. O leitor, portanto, não tem acesso aos fatos objetivos, mas sim à memória seletiva e distorcida de Bentinho.
Manipulação da Memória: Bentinho afirma querer reconstruir o passado fielmente, mas continuamente insere comentários que incriminam Capitu a posteriori, colorindo lembranças inocentes com sua suspeita presente.
O Ciúme Patológico: Desde a juventude, o ciúme é uma característica central de Bentinho. Essa inclinação é o motor da sua ansiedade e da sua leitura distorcida dos eventos, transformando gestos ambíguos em "provas" de traição.
🕵️ As "Provas" e os Olhos de Ressaca
Machado de Assis é um mestre em fornecer evidências que, dependendo da interpretação do leitor, tanto apoiam a tese da traição quanto a desmentem, tornando a verdade inatingível.
O Efeito Capitu: Olhos de Cigana Oblíqua e Dissimulada
A descrição física de Capitu é, talvez, a evidência mais forte e, ao mesmo tempo, a mais subjetiva. Seus famosos "olhos de ressaca" são o foco da suspeita de Bentinho:
Bentinho os interpreta como prova de uma alma oculta e traiçoeira, capaz de esconder segredos.
Os defensores da inocência de Capitu veem neles apenas a beleza exótica e a vivacidade da juventude. Os olhos não provam nada, são apenas símbolos das projeções e medos de Bentinho.
A cena mais célebre que incrimina Capitu ocorre após a morte de Escobar (o melhor amigo de Bentinho), quando ela chora de forma intensa no velório. Bentinho observa o olhar de Capitu fixo no morto:
“...os olhos de Capitu fitavam o defunto, fixos, fixos, como os do defunto também, mas sem a rigidez e a expressão de morte; eram vivos e súbitos. Capitu chorou deveras, mas chorou com os olhos de ressaca, olhos que pareciam querer arrastar tudo, para dentro de si e afogar o mundo em sua própria dor."
Para Bentinho, essa dor é prova de um amor secreto. Para o leitor, pode ser apenas a dor profunda pela perda do amigo íntimo da família.
O Enigma de Ezequiel
O ápice da dúvida e da crise do casal é o filho, Ezequiel. Bentinho nota a semelhança física da criança com Escobar – a semelhança é o que sela, na mente de Dom Casmurro, a certeza da traição.
No entanto, a semelhança física é, na realidade, a prova mais frágil:
Fatores Objetivos: Crianças se parecem com várias pessoas. Além disso, a obsessão de Bentinho com a traição pode fazê-lo ver a semelhança onde ela é mínima ou inexistente.
A Confirmação Tardia: A semelhança se torna notável apenas na adolescência de Ezequiel, um tempo depois da morte de Escobar. Bentinho, ao reexaminar uma foto de Escobar, constrói a "prova" de forma retroativa, usando sua memória contaminada.
O próprio nome do menino, Ezequiel, é uma homenagem a Escobar, o que também é usado como prova por Bentinho. No entanto, é uma homenagem que Capitu faz com o consentimento de Bentinho, antes que suas suspeitas se tornassem patológicas.
⚖️ O Veredito Inalcançável: Leitor como Juiz
Machado de Assis não tinha a intenção de responder se houve ou não traição. A função do romance é precisamente a de nos colocar no papel de juízes que não podem sentenciar porque só temos acesso ao depoimento de uma única parte, um depoimento notoriamente viciado.
O "Partido de Capitu" vs. O "Partido de Bentinho"
A crítica literária brasileira historicamente se dividiu em dois grandes grupos:
O Partido de Bentinho: Acredita na traição. Baseia-se nas "provas" apresentadas pelo narrador (os olhos de ressaca, o choro no velório, a semelhança de Ezequiel). Vê Capitu como a figura feminina demoníaca e dissimulada, típica de algumas representações do Realismo.
O Partido de Capitu: Defende a inocência. Argumenta que Capitu foi vítima do ciúme destrutivo e da paranoia de Bentinho. Vê a obra como uma crítica aguda ao patriarcado e à possessividade masculina, onde a mulher é punida e exilada (Capitu morre na Europa) por um crime que só existe na mente do marido.
O poder de Dom Casmurro reside em sustentar essa dualidade. Machado de Assis usa a ambiguidade para nos fazer refletir não sobre Capitu, mas sobre Bentinho, sobre a natureza destrutiva do ciúme e sobre a impossibilidade de se conhecer a verdade absoluta. A única certeza é a dor e o isolamento de Dom Casmurro.
❓ Perguntas Comuns sobre o Enigma da Traição
Por que Machado de Assis não resolveu a dúvida?
A incerteza é o tema central. Se Machado tivesse dado um veredito, o livro se tornaria um simples drama conjugal. Ao deixar a questão em aberto, ele eleva o romance a uma profunda reflexão sobre a subjetividade da memória, a interpretação da realidade e a desconfiança como força destrutiva na vida humana. A falta de resposta é a resposta literária.
Qual é o principal recurso literário que cria a ambiguidade?
A focalização narrativa (o ponto de vista). O recurso de ter um narrador de primeira pessoa, que é não confiável, é o que permite a Machado criar a dúvida. A voz de Bentinho é a única janela para o passado, e essa janela está trincada pelo ciúme e pela amargura.
🔑 Conclusão: O Legado Eterno de Dom Casmurro
Dom Casmurro é uma obra que se recusa a envelhecer porque toca em questões humanas perenes: o ciúme, a memória, a solidão e a busca inatingível pela verdade. Ao invés de nos dar certezas, Machado de Assis nos oferece um espelho para as nossas próprias desconfianças e interpretações.
A questão "Capitu traiu?" é o anzol que nos fisga, mas a verdadeira genialidade reside na construção psicológica de Dom Casmurro, o homem que destrói o que mais ama e vive o resto da vida remoendo a própria dor.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração apresenta uma composição visual densa e simbólica, focada nos principais personagens e na ambiguidade central de "Dom Casmurro". No centro e em primeiro plano, está um Bento Santiago já idoso, o Dom Casmurro, com uma expressão grave e pensativa, seus olhos fixos no observador, transmitindo o peso de suas memórias e suspeitas.
À direita do velho Bento, e ligeiramente atrás, está Capitu, com seus famosos "olhos de ressaca", que parecem ao mesmo tempo profundos e insondáveis. Uma delicada névoa ou fumaça, com pontos de interrogação em seu interior, emerge de sua têmpora, simbolizando a dúvida e o mistério que a cercam.
No canto superior direito, em perfil, está Escobar, com um semblante sério e enigmático, representando a figura da suspeita e do amigo íntimo. Em primeiro plano, abaixo dos rostos dos adultos, emerge o rosto de Ezequiel, a criança que carrega a semelhança ambígua e é o catalisador da crise. Ele olha diretamente para frente, com uma expressão inocente, mas que, sob a luz da dúvida, pode ser interpretada de múltiplas formas.
Ao fundo, há elementos cenográficos que evocam o universo do romance:
À esquerda, uma igreja, remetendo ao início da história e à promessa de Bento de ser padre.
Abaixo da igreja, a casa onde a infância de Bentinho e Capitu se desenrolou, com linhas que formam uma teia de aranha (ou talvez um labirinto) e múltiplos pontos de interrogação, reforçando a ideia de que a verdade está emaranhada e difícil de alcançar.
À direita, um mar calmo, representando a tranquilidade que se perdeu e o exílio de Capitu.
Todo o cenário está pontuado por inúmeros pontos de interrogação flutuando no ar e interligados por linhas sutis, sublinhando o tema da ambiguidade e da dúvida que permeia toda a obra. A paleta de cores é sóbria, com tons de azul escuro, cinza e marrom, criando uma atmosfera de mistério, introspecção e melancolia, perfeita para a complexidade psicológica do romance. O título "DOM CASMURRO" e "Machado de Assis" são proeminentemente exibidos no topo da ilustração.