por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
Introdução
No
artigo pretendo analisar o acesso à propriedade privada em um país como o
Brasil, de modernização conservadora e de subdesenvolvimento, através das obras
São Bernardo, de Graciliano Ramos, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Nota-se que o período retratado pelas duas obras é relativamente contemporâneo,
mais ou menos entre a proclamação da república e a primeira metade do século
XX. O Brasil nesta época mal havia proclamado a Leis de Terras (1850), havendo
grande quantidade de terras devolutas, e a grande extensão territorial
dificultava a integração nacional por parte de um governo central. Neste vácuo
de poder, muitos potentados locais dominavam e estabeleciam suas próprias leis
em detrimento dos interesses gerais. A constituição da propriedade, neste
contexto, não se faz via de regra por meio da troca econômica mas, muitas
vezes, pelo uso da violência pura e simplesmente, já que no país não há um
mercado interno pujante e, portanto, a escassez de moeda corrente predomina.
Neste sentido, comparar os personagens Paulo Honório e Riobaldo pode revelar
algumas questões importantes da realidade brasileira e seu processo de
modernização. A institucionalização da propriedade privada representa, para o
bem ou para o mal, um marco no desenvolvimento, rumo a uma economia de mercado.
O que significa a emergência de novas relações de dependência e exploração.
Tanto Paulo Honório como Riobaldo são personagens de origem humilde e que
acabam, cada um a seu modo, por se tornar proprietários de terra. Porém, há
diferenças na tessitura dos romances que tornam o significado da propriedade
bastante distinto.
A
questão da propriedade em “São Bernardo”, de Graciliano Ramos
A
propriedade em “São Bernardo” não pode ser mais emblemática, pois é uma fazenda
– a fazenda São Bernardo – que intitula o romance. Portanto, refere-se a uma
realidade objetiva – a propriedade enquanto instituição que surge por convenção
social imposta historicamente. No entanto, no romance, ela aparece, como um
registro estruturante, tal qual um pano de fundo, por meio da subjetividade do
protagonista do romance, que se expressa pela descrição de suas memórias, como
confissão.
A
confissão é um recurso estético que caracteriza a obra de Graciliano Ramos,
como afirma Antonio Candido: “Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao
leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que
se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela
confissão das mais vívidas emoções pessoais” (CANDIDO, 2006, p. 17). Em São
Bernardo, por meio da confissão, as sombras dos fatos lembrados vão ganhando
nitidez até chegar a um desfecho que inverte todos os valores do narrador
confidente.
As
memórias em questão são um relato do personagem Paulo Honório, que, através de
uma narrativa em primeira pessoa, se propõe a contar a trajetória de sua vida.
Logo na primeira frase, há um aspecto bastante interessante de metalinguagem,
pois a narrativa se justifica pela elaboração de um projeto no qual o
personagem intenciona escrever um livro – “Antes de iniciar este livro,
imaginei construí-lo pela divisão do trabalho” –, o que, a princípio, poderia
trazer uma certa confusão ao leitor: afinal, de quem se trata o escritor,
Graciliano Ramos ou um personagem fictício? A referência à divisão do trabalho
já nos dá uma pista, que se revelará completamente com o avançar da leitura: é
Graciliano que se deixa falar por Paulo Honório. Portanto, Paulo Honório é o
escritor e, ao mesmo tempo, o protagonista do romance. Tal recurso reforça o
aspecto subjetivo e também dá vulto ao personagem principal do romance. Tudo
parece girar em torno dele.
A
vida de Paulo Honório é a história vulgar de um homem de origem muito pobre que
enriquece. A partir deste fio condutor, sua visão de mundo reproduz
radicalmente uma lógica capitalista de fundamento patrimonialista. E isso é tão
visceral em seu ser, que a propriedade torna-se quase uma extensão de seu
próprio corpo, influenciando o seu modo de agir e de se relacionar com o mundo
e com as pessoas:
“Em
Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais do que simples instinto de
posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas.
Por isso engloba todo o seu modo de ser, colorindo as próprias relações
afetivas. Colorindo e deformando. Uma personalidade forte, nucleada por paixão
duradoura - avareza, paternidade, ambição, crueldade (...)” (Idem, p. 39).
Assim,
tendo o enredo por epicentro o “eu” do personagem, a trajetória de Paulo
Honório se resume a trabalho e apropriação, em um primeiro momento, das coisas
(dinheiro) e, em um segundo momento, das pessoas. Tudo se torna passível de se
transformar em sua propriedade, que vem sempre imbuída de uma carga afetiva,
humanizada. O caso de Margarida, mulher que o criou quando órfão, é exemplar.
Paulo Honório, depois de se tornar um homem rico, descobre o paradeiro de sua
madrasta, já bastante idosa, e manda buscá-la para viver com ele em sua
fazenda: “A velha Margarida mora aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa e
ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para
compensar o bocado que me deu” (RAMOS, p. 11). De certo modo, Paulo Honório
oscila entre uma atitude que lhe faz mensurar em termos de valores monetários
as relações humanas e o afeto recalcado que sente por algumas pessoas e que, no
limite, vai lhe dilacerar.
“O
seu caso é dramático porque há fissuras de sensibilidade que a vida não
conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente,
incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia desse homem de
propriedade, cujos sentimentos eram relativamente bons quando escapavam à
tirania dela, e que descobre em si mesmo estranhas sementes de moleza e
lirismo, que é preciso abafara todo custo (CANDIDO, op. cit., p. 40).
Ao
encarar tudo pela lógica do valor das coisas, o protagonista constrói um
universo pessoal a partir da propriedade privada – São Bernardo. Esta é
pré-condição de seu próprio ser, de sua própria essência. Por isso, existe
quase uma indistinção entre a propriedade, a fazenda São Bernardo, e o próprio
personagem, Paulo Honório. Noutras palavras, Paulo Honório é São Bernardo e São
Bernardo é Paulo Honório. O que implica em dizer que o fato de adquirir a
fazenda era uma questão imprescindível de sua existência, ou melhor, de sua
sobrevivência. E, por isso, ele não mede esforços para comprá-la e mantê-la,
ainda que para isso passe por cima de todos os escrúpulos. Ao tratar tudo como
coisa e humanizar as coisas, ele próprio se embrutece. Neste aspecto, é a
violência, como observa Antonio Candido, que move Paulo Honório.
Após
comprar S. Bernardo de Luis Padilha, herdeiro relapso do antigo proprietário,
Paulo Honório vai constituindo uma rede de relações sociais que de certa
maneira giram em torno dele e da fazenda. Quando sua vida parece estar
consolidada, Paulo Honório entende que chegou o momento de constituir família,
de se casar. Seu casamento, com uma professora, muito mais jovem do que ele,
chamada Madalena, a princípio, não passa de uma barganha, em que S. Bernardo é
colocada na condição implícita de penhor. De fato, Paulo Honório trata o
casamento como uma negociata, um cálculo racional, em suma, um contrato entre
as partes envolvidas e interessadas. Os termos do acordo são mensurados em prós
e contras, e não como fruto de um sentimento espontâneo, de uma paixão
verdadeira. Paulo Honório chegar a dizer para sua futura esposa, Madalena, a
seguinte frase, quase como se o fato de casar lhe partisse de uma decisão
impessoal: “Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me quadra...”
(RAMOS, p. 88). Por seu turno, Madalena indaga: “O seu oferecimento é vantajoso
para mim, seu Paulo Honório... Muito vantajoso” (idem, p. 89).
Esta
atitude de Paulo Honório não pode se sustentar por muito tempo, e em seu íntimo
movem-se tendências em sentido contrário, ao mesmo tempo centrífugo e
centrípeto. É novamente Antonio Candido que descreve com precisão o estado de
espírito do personagem:
“Dois
movimentos o integram: um, a violência do protagonista contra homens e coisas;
outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta São
Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo
penosamente elaborado; da segunda, resulta São Bernardo-livro-de-recordações,
que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos, nasce a derrota, o
traçado da incapacidade afetiva”. (p. 40)
(...)
“Não
se podia comparar a qualquer outra empresa, pois era o prolongamento dele
próprio; era a imagem concreta da sua vitória sobre homens e obstáculos de
vário porte, reduzidos,superados ou esmagados. E assim percebemos o papel da
violência, que voltada para fora é vontade e constrói destruindo. (p. 41)
Eis
o grande dilema. Apesar de Paulo Honório apresentar uma força incrível, tanto
física, como psíquica, internamente ele é acometido por uma fragilidade
demasiadamente humana, que ele próprio desconhece. O seu casamento, que se
originou, como vimos, de uma ponderação racional ou de um acordo à maneira de
uma troca mercantil, se revela irredutível ao cálculo administrativo, da
contabilidade dos bens e da produtividade de S. Bernardo. De fato, Madalena não
é mais um bem que ele acumula ao patrimônio. Madalena é uma mulher que tem
sentimento e que desperta sentimentos. Ela é fator que desencadeia uma
autodescoberta.
No
capítulo 25, surpreendentemente, Paulo Honório confessa, logo na primeira
frase: “Comecei a sentir ciúmes” (RAMOS, p. 134). Tal confissão, vindo de um
personagem tão brutal, chega a ser chocante. Até então, Paulo Honório era
inabalável e agia apenas no sentido de uma violência contra homens e coisas:
“Mas
vimos que este primeiro movimento se entrelaça com outro: voltada para dentro,
a violência é dissolução, e destrói construindo. Caracteriza-se efetivamente
pela volúpia do aniquilamento espiritual, o cultivo implacável do ciúme, que
não é senão uma forma de exprimir a vontade de poderio e recusar o abrandamento
da rigidez. (CANDIDO, p.42).
É
através da figura de Madalena que, pela primeira vez, Paulo Honório faz uma
autocrítica de si mesmo e, talvez, sinta vergonha de seus atos violentos. Numa
discussão de casal, Madalena sai pelo corredor como um redemoinho e grita para
Paulo Honório: “Assassino!” Depois disso, novamente uma confissão: Paulo
Honório relata em suas memórias que se sentiu atordoado e murmurou – sim,
murmurou! – a seguinte ofensa: Cachorra! Em suas lembranças, Madalena teria o
chamado por mais três vezes de assassino. E isso parece ter o incomodado
bastante. Até então, não era um assassino, apenas agia por necessidade de
sobrevivência e, se caso fosse necessário tirar a vida de alguém, assim
procedia sem a menor hesitação, como se afastasse um obstáculo do meio do
caminho. Mas associar isso à palavra assassino, para ele era demais. Mas,
realmente, Paulo Honório era um assassino, o que, inconscientemente, talvez,
devia lhe deixar horrorizado.
A
culpa ainda lhe assombraria mais intensamente com o suicídio de Madalena. É o
suicídio de sua mulher que faz Paulo Honório prestar contas à sua consciência,
tornando-se um sujeito problemático. Percebe, então, que o mundo que construiu,
à base da acumulação de bens materiais, não tinha valor de fato existencial e
humano.
“A
verdadeira busca começa onde termina a vida de Paulo Honório. A busca
verdadeira, entenda-se, a procura dos verdadeiros e autênticos valores que
deveriam reger as relações entre os homens. A vida terminou, o romance começou.
O romance, segundo Lukács, é a história da busca de valores autênticos por um
personagem problemático, dentro do universo vazio e degrado, no qual
desapareceu a imanência do sentido à vida (Nota: LUKÁCS, G., A teoria do
romance [trad. port. de Alfredo Margarido]. Lisboa, Ed. Presença [s. d.]. para
uma análise postulada sobre lukács, mas diferente da nossa, ver o ensaio de
Carlos Nelson Coutinho). Ora, só neste instante o herói se torna problemático,
o universo surge como vazio e degradado, o sentido da vida desaparece. Antes,
Paulo Honório fora um personagem coeso e forte, movendo-se um mundo de
objetivos claros e (ainda que ilusório) repleto de significado: a propriedade”
(LAFETÁ, p. 214).
A
questão da propriedade em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
Também
em Grande Sertão: Veredas o personagem principal, Riobaldo, narra em primeira
pessoa as memórias de sua vida passada, o que denota forte carga subjetiva do
narrador sobre os acontecimentos que se desenrolam na trama do romance. (Não
vou me ater no trabalho sobre o experimentalismo da linguagem da obra rosiana).
“Vida,
e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não
seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que
parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor
é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não
sei se sei, e que pode ser que o senhor sabe” (ROSA, p. 245).
Porém,
diferentemente de São Bernardo, a propriedade não ocupa posição central. Se,
como vimos, o título de São Bernardo designava uma fazenda, em Grande Sertão:
Veredas é justamente o contrario; a propriedade é quase um arquipélago disperso
no imenso oceano do sertão. Grande sertão é, assim, um espaço ilimitado, onde
os limítrofes entre o mundo real e da fantasia são muito tênues, e veredas é o
fluxo da própria vida, transitoriedade, passagem, travessia, aprendizagem.
Sobre
este lugar impreciso ao conceito, diz o personagem narrador Riobaldo: “Sertão.
Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente forma mais forte do que o
poder do lugar.” (ROSA, p. 41). Entre o pensamento e o lugar está o sertão.
Conecta as duas instâncias. Indagamos: Onde começa e termina o lugar, o
pensamento, o sertão? Sujeito e objeto se confundem em um mesmo reflexo no
espelho. Nem materialismo, nem idealismo: apenas o sertão.
Esta
insólita paisagem sertaneja, atravessada por trilhas que se dispersam no
infinito, condiciona um modo de vida que revela o segredo da existência. “O
sertão aparece aqui como labirinto, lugar por excelência do se perder e do
errar” (Bolle, p. 65). Nada é fixo, tudo é vir-a-ser. Portanto, a propriedade
ocupa uma posição marginal em um mundo em eterno devir. Mundo que é o sertão:
uma realidade subjetiva-sócio-geoográfica inóspita, agreste, primeva e
irredutível às convenções sociais fixadoras. Por isso, no sertão de Grande
Sertão: Veredas o aparato do Estado é uma realidade muito remota e a lei é
feita de fato e de direito por bandos de jagunços que vivem em permanente
guerra, em um território sem demarcações legais. “Sertão é o penal, criminal.
Sertão é onde homem tem de ter nuca e mão quadrada”, diz Riobaldo sobre o
sertão, em suas muitas definições, que jamais apreendem definitivamente o
objeto.
Esta
geografia nômade, vazia, sem lei, sem fronteiras, existencial, induz a pensar
um mundo épico, maniqueísta e marcado por forte oralidade. De fato, os casos do
sertão são contados através de uma torrente narrativa indomável e
assistemática, sempre pela perspectiva de Riobaldo, e, daí, suas impressões
ganharem estatuto de realidade. Daí os espaços míticos conterem mais verdades e
melhor se adequarem à realidade do sertão do que seria o caso de uma descrição
metódica e objetiva de cunho científico.
“O
fundo arcaico – de cujo oco mais profundo no sertão, reino de uma mitologia
crônica, parece ter saído Hermógenes – e também o da cercania do mito. Dali
brota a aventura de heróis romanescos, dos grandes chefes jagunços: narrativa
propriamente épica, que acaba por se definir como história de uma busca de
vingança, incitada e tensionada pela paixão amorosa: amor e morte em estreita
liga numa demanda aventurosa pelo fio (pela quicé) de Diadorim” (ARRIGUCCI JR.,
p. 17).
No
sertão, homens e mulheres apresentam um feitio quase sobre humano, indistintos,
e em cada paragem há algo de misterioso e encantamento. É neste cenário
sincrético que surge a guerra do bando de Hermógenes e de Zé Bebelo, que será
substituído pelo próprio narrador da estória, Riobaldo. Dois personagens tem
grande relevo. Joca Ramiro, antigo chefe dos jagunços, é a presença-ausência na
trama do romance, o nexo que supostamente, para Riobaldo, manteria a unidade do
sertão, desfeita, pela traição de Hermógenes e Ricardão, assassinos do líder
guerreiro. Diadorim, amor possível-impossível, nem homem nem mulher, que leva
Riobaldo a uma guerra própria, interior.
Um
dos aspectos mais significativos do livro, que permeia todo o romance, e que
não posso deixar de mencionar, é o pacto de Riobaldo com o diabo. Em um de seus
ensaios críticos, Roberto Schwarz compara o romance de Guimarães Rosa ao Doutor
Faustus, de Thomas Mann. Atentando sempre para as semelhanças e as diferenças,
Schwarz escreve:
“O
jagunço Riobaldo e o compositor Adrian Leverkuehn têm, cada qual a seu modo,
uma tarefa a cumprir, tarefa que está além de sua capacidade. Remédio é
convocar a energia obscura por meio do pacto diabólico, trocar a alma pela
força de levar a cabo a missão proposta. Realizado o que houvesse por realizar
(a morte do bandidi assassino Hermógenes ou a criação da grande música), os
dois heróis se afastam da esfera que os fez grandes:Leverkuehn sofre um ataque
de paralisia que o deixa idiota, enquanto Riobaldo, também após fortes doenças
e delírios, vira um pacato caipira pensativo” (SCHWARZ, P. 28).
Em
virtude do tema escolhido para o trabalho, arrisco a uma interpretação sobre o
papel do pacto. Na teoria política, um contrato social inaugura as formas
institucionais na modernidade. Assim Rousseau define a essência do contrato:
“Todas estas clausulas, bem entendido, reduzem-se a uma única, a saber, a
alienação total de cada associado (...)” (ROUSSEAU, p. 27). O contrato implica
uma sociedade, abstrata e racional, que pressupõe a saída do estado de
natureza. Natureza esta entendida sob a ótica de dois paradigmas antagônicos: o
hobbesiano, em que o ser humano é mau por natureza e está em constante
conflito; e do próprio Rousseau, em que o ser humano nasce livre e bom.
O
pacto com o demônio também é uma alienação. Em troca de superpoderes, o
pactuário deve vender a alma. No caso de Grande Sertão: Veredas, analisando
sobre esta perspectiva, o pacto teria um aspecto civilizador, tanto no sentido
de Hobbes – paz entre os bandos de jagunços com a eliminação do mal (no caso,
Hermógenes) – como no sentido roussoniano – a propriedade originaria a
desigualdade social. Neste sentido, o estado de natureza é posto
definitivamente em xeque quando Riobaldo faz o suposto pacto com o demônio,
tornando-se então o Urutu-Branco. Fortalecido, Riobaldo supera a natureza, ao
atravessar o Liso do Sussuarão, assim como Ulisses foi capaz de ouvir o canto
das sereias amarrado no alto do mastro do navio, enquanto seus marujos de
ouvidos tapados com cera não foram enfeitiçados. Por fim, Riobaldo acaba com
Hermógenes, mas perde seu grande amor, Diadorim, que também morre em combate.
“Mas
aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, muita honra. Ele me tratou com
categoria, fui príncipe naquela casa. Todos – a senhora dele, as filhas, as
parentas – me cuidavam. Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber
que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus
feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes
Gerais da jagunçagem. Fui indo melhor” (ROSA, p. 618).
Com
o sertão livre das guerras de jagunços, Riobaldo casa-se com Otacília e herda a
fazenda Santa Catarina, enfim, torna-se sedentário-proprietário, na figura de
um pacato fazendeiro.
O
fim do sertão é, no entanto, o seu desencantamento que vem com o movimento
irrefreável da modernidade, de cunho ocidental e eurocêntrica.
“Na
realidade, no interior do grande sertão, a relação entre o mito e o
esclarecimento parece repetir e desenvolver em enredo narrativo o mesmo esquema
da dialética do esclarecimento que Adorno e Horkheimer apontaram já no interior
da epopeia homérica. ‘Desencantar o mundo é destruir o animismo’, conforme
notaram aqueles autores, e não é outra coisa que se registra na obra rosiana,
na travessia de Riobaldo, que acaba, a seu modo, por exorcizar a projeção
antropomórfica do homem da natureza do sertão, que é o demônio, reconhecendo
por fim a objetividade do mundo desencantado” (ARRIGUCCI JR., p. 28).
Conclusão
Um
traço comum a ambos os romances analisados é o fato de que a violência está na
base da formação da propriedade privada. No Brasil, esta violência ganha
contornos ainda mais dramáticos, já que a herança colonial privilegiou sempre o
grande latifúndio escravocrata. Em São Bernardo, as questões fronteiriças e até
mesmo a grilagem são resolvidas pela violência – no caso, a emboscada, o
assassinato de um dos fazendeiros litigantes etc. – que é, posteriormente,
endossada pela pelas instituições competentes através de um simulacro de
legalidade. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo se torna um poderoso chefe de
jagunço e, portanto, adquire legitimidade para se tornar proprietário. No
fundo, tanto um como outro – ainda que indiretamente em Riobaldo – a figura do
coronel é encarnada, e representa um traço marcante nas relações sociais
brasileiras, mesmo nos dias atuais. No fundo, é o poder pessoal e o
clientelismo que caracterizam profundamente a modernização capitalista no
Brasil.
Bibliografia
ARRIGUCCI
JR., D., “O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa”, in
Cadernos de Pesquisa no. 89, São Paulo: Cortez Editora, 1994.
CANDIDO,
A., “Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos”, Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2006.
BOLLE,
W., O sertão como forma de pensamento, in “grandesertão.br: o romance de
formação do Brasil”, Editora 34, 2004.
LAFETÁ,
J. L., O mundo à revelia, in “São Bernardo”, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora
Record, 1996.
RAMOS,
G., “São Bernardo”, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1996.
ROSA,
G., Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROUSSEAU,
J. J., “O contrato Social”, São Paulo: Escala.
SCHWARZ,
R., Grande Sertão e Dr. Faustus, in “A sereia e o desconfiado”, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
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