Resumo: Tolstoi e o iluminismo - Isaiah Berlin
Por J. P. A. G.
Isaiah Berlin inicia o texto lembrando que Tolstoi foi sempre visto pela crítica como um excelente escritor de ficção mas um mau pensador. Num sentido contrário, o crítico Mikhailovski, que, por sinal, era contemporâneo de Tolstoi, que o menosprezava por seu engajamento político socialista, apresentou uma tese diferente, defendendo que, além de Tolstoi ser um grande literato, com suas análises profundas da psique humana, o romancista russo também demonstrava grande atines em sua abordagem dos problemas da Rússia e da civilização ocidental.
Berlin também compartilha desta opinião herética
para a época e argumenta que os textos de Tolstoi são, para além de seus
méritos de grande escritor, fundamentalmente filosóficos. Isso fica patente no
estilo de Tolstoi. Carregadas de subjetividades, as proposições de Tolstoi são
sempre diretas, simples, mas, ao mesmo tempo, questionadoras; a tal ponto que,
entre as décadas de 1860 a 1870, o escritor russo foi tido como um “niilista”.
Tal rótulo, em Tolstoi, no entanto, é equivocado, pois o projeto literário do
romancista sempre foi, acima de tudo, a busca pelo conhecimento da verdade.
Neste sentido, Tolstoi não pode ser
enquadrado nem entre os intelectuais liberais da direita nem da esquerda, os
socialistas, muito embora acreditasse na liberdade individual e no progresso,
ainda que de modo bastante peculiar e pessoal. Todavia, dentre o leque de
filósofos do iluminismo, há em Tolstoi uma afinidade muito grande com as teses
de Rousseau. Por isso, Tolstoi, tanto como o filósofo francês do século XVII,
enfatiza a educação enquanto um grande problema de ordem filosófica e que,
evidentemente, reflete na questão social.
Assim, Tolstoi reproduz o adágio rousseauano
do “homem nasce bom e a sociedade o perverte”. Para Tolstoi, existe uma
tendência natural, isto é, inata, em todos os seres humanos, para perceber a verdade eterna e imutável, em toda a sua clareza inerente. Tal atributo humano pode
ser, segundo Tolstoi, ser constatado na pureza das crianças e camponeses. Eis a
teses de Tolstoi: a educação ocidental, contaminada por teorias cientificas,
pela filosofia da história, notadamente, hegeliana, polos adornos retóricos e
artificiais da erudição, acaba por corromper aquela faculdade inata da
percepção da verdade, tão característica nas pessoas simples e imunes à sua
influência.
Por outro lado, a tese de Tolstoi acarreta
valores profundamente reacionários e daí sua aversão aos avanços liberais da
sociedade que ainda estavam em pauta, tais como os direitos das mulheres e o sufrágio
universal. Para melhor enquadrar a filosofia de Tolstoi subjacente em seus
romances, o crítico segue o texto com alguns comentários biográficos do
escritor, valendo a pena ressaltar a origem aristocrática, o que lhe valeu a
possibilidade de conhecer de perto a miséria em que viviam os camponeses e
servos, e, a quando de sua juventude, a “indiferença ostensiva à vida literária
enquanto tal”. Indiferença essa que parecia condizente com o comportamento de
Tolstoi expresso na sua necessidade de tomar medidas práticas diante da vida,
tais como abrir uma escola para crianças camponesas dentro do domínio de suas
terras, oportunidade que abriria para Tolstoi experimentar seus métodos
pedagógicos.
A questão social também é posta em xeque por
meio da constatação empírica de Tolstoi, já que, para ele, o camponês é
autossuficiente e depende só de si para subsistir, enquanto a aristocracia e
todo a sua pompa só existe graças à exploração do camponês, o que é, não apenas
imoral, mas também injusto. Porém, a questão fundamental em Tolstoi é o tema da
verdade que, obscurecida pela influencia da civilização, sobretudo, a
ocidental, está diante de todos os seres humanos, e revelada em toda a sua
integralidade demonstraria toda a injustiça da estrutura social. A verdade,
obstruída dos males da civilização, levaria necessariamente a uma sociedade
onde todos seriam livres e iguais. Segundo o autor, é “uma forma, aliás, muito
simples, da doutrina clássica do direito natural, em sua vertente
liberal-anarquista, seja teológica ou secular” (p. 250).
São nestes termos que Tolstoi fomenta os
critérios da obra literária, inclusive de seus contemporâneos, como
Dostoievski, ao qual o julga muito difuso, e Turgueniev, que é, ao contrário,
considerando um grande escritor, porque de algum modo descreve temas morais
adequados, muito embora peque na escolha de seus temas, circunscritos e triviais.
Assim, ainda que Tolstoi seja um apaixonado pelos produtos culturais e
artísticos da civilização, como a música de Mozart, Chopin e Beethoven, ou a
literatura de Puchkin, argumenta que tais produtos são incompreensíveis para o
povo, o qual compreende muito melhor o folclore ou as histórias bíblicas.
Num certo sentido, a obra de Tolstoi é
transita por essa tensão e daí a ambiguidade de que ele próprio não pode sair.
Tal ambiguidade suscita uma outra tendência na obra tolstoiana: a
impossibilidade de transformar o camponês pelos marcos da civilização, o que o
afastaria da verdade. Esta contradição só pode ser resolvida por uma educação
ou pedagogia que não distorça a verdade enquanto tal. A educação, baseada na
verdade, portanto, teria a capacidade de revolucionar a sociedade, tornando-a
igualitária, e é essa, no fundo, constitui a tarefa de todo grande artista, de
todos os homens de talento que trabalham nesse objetivo. O talento é uma
necessidade interior que leva a regeneração da sociedade, pois toda grande obra
de arte contém em si a verdade, eterna e absoluta, e deve ser democratizada.
“Seguindo seus próprios caminhos, Tolstoi chegou a um programa de anarquismo
cristão que tinha muito em comum com o dos populistas russos. Excetuando o
socialismo doutrinário destes últimos, sua crença na ciência e a fé dos métodos
do terrorismo, a postura de Tolstoi tinha muito em comum com a deles. Agora o
que ele mostrava defender era um programa de ação, e não a passividade; tal
programa estava subjacente à reforma educacional que ele tentava levar adiante”
(p. 255).
Esse programa de ação é, novamente, inspirado
no Émile de Rousseau e consiste em
descobrir e entender o que é espontâneo e está harmonia em cada ser humano. É
preciso deixa a natureza fluir e seguir seu curso e não moldar o indivíduo para
determinados fins e contrários a seus impulsos. A criança é modelo e deve
contrapor à corrupção imanente ao universo dos adultos. Portanto, o educador
tem muito mais a aprender do que ensinar, já que as fórmulas dogmáticas de uma
educação tirânica desviam o ser humano de sua verdade e, por conseguinte, da
Verdade. Tal programa é, no entanto, cheio de contradições, pois, quem educará os educadores? Daí o seu
fracasso, pois, apesar da crítica demolidora do iluminismo, é somente pela via
do iluminismo que Tolstoi constitui todo seu pensamento crítico.
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. Companhia das Letras: São Paulo, 1988.
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