“O Desenho”
Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
Numa época em que o amor havia se tornado anacrônico, K. era um verdadeiro D. Quixote. Assim como o cavaleiro da triste figura, K. passou a vida inteira lutando contra moinhos de vento. Por algum motivo que não nos convém perscrutar aqui, meteu na cabeça acreditar em histórias de amor com final e viveram felizes para sempre. Então, entre idas e vindas, se apaixonava perdidamente e fazia de casos corriqueiros verdadeiras tragédias dignas de um Romeu e Julieta. Foram inúmeras batalhas, aventuras pitorescas, guerras inglórias, fracassos retumbantes. Mas, ao contrário do hidalgo de La Mancha, faltava a K. uma consciência, lúcida, sensata, um Sancho Pança, que, na qualidade de ego freudiano, vez ou outra, o trouxesse para a dura realidade em que vivemos. Por isso, K. não tinha freios, alguém para dizer que “isso não vai dar certo”. Em toda a sua vida, nunca ouviu uma história ou leu um romance em que os caminhos de um amor de verdade transcorressem sem obstáculos. O amor era sempre uma causa que valia a pena.
K.
era um estudante de letras, sua segunda graduação. Antes, estudara geografia;
mas, convencido de que a terra precisa mais de poesia do que economia, decidiu
aprender a arte da métrica e da rima. Naquele semestre, se matriculou no curso
de Introdução à Literatura Russa depois de se tranquilizar ao saber que as
aulas eram ministradas em língua portuguesa e não em russo.
O
primeiro dia de aula é sempre muito conturbado; a sala estava abarrotada e os
alunos disputavam lugar. Porém, K. já tinha encontrado seu cantinho no fundo da
sala e assistia em silêncio o vai e vem dos estudantes, que conversavam
entusiasmados. O professor entrou na sala e imediatamente todos emudeceram.
Após breve apresentação do curso, o professor passou a arguir sobre aqueles
maravilhosos escritores russos: Pushkin, Gogol, Dostoievski, Tolstoi,
Tchekhov... Mas, muito embora a aula estivesse bem interessante, K. era
irremediável sonhador e, após observar bem todos os presentes, mergulhou em seu
mundo interior que se revelava no estranho hábito de desenhar no caderno
caricaturas de algumas figuras marcantes da sala de aula. Em seguida, essas
figuras se tornavam personagens, como bruxos, feiticeiras, duendes, aranhas,
cossacos... Cossacos! Sim, a sala estava repleta de cossacos sanguinários.
Neste instante, K. constatou alarmado que o professor já não falava mais
português e, sim, russo. “É uma cilada!”, pensou. Então a porta da sala se
abriu. Alguns instantes de silêncio e o suspense gerado pela expectativa foi
quebrado pela presença de uma moça de longos cabelos negros e que mais parecia
uma bonequinha de porcelana. Ela entrou na sala carregando uma cadeira, pois
todas estavam ocupadas. Desafiando as leis da física, a estudante descobriu um
espaço no meio daqueles corpos, ajeitou a cadeira, sentou e, muita
compenetrada, passou a assistir a aula. K. olhou para ela e teve uma certeza:
“Uma princesa, uma linda princesa russa! Será uma Romanov? Anastásia perdida?
Não, é muito nova para a infeliz Nastenka. Provavelmente ela é de uma linhagem
mais nobre e antiga. Talvez, da casa dos Kroprotkin. Sim, uma princesa
Kroprotkin, aqui! Mas o que uma princesa russa faria nesse antro? Seja como
for, é preciso salvá-la”.
Pronto,
o quiprocó estava armado. Era preciso tirá-la dali rapidamente. Mas como? O que
fazer? K. estava embriagado demais pela beleza de sua “princesa russa” para
entrar em ação. Além disso, pululavam perigos naquele ambiente infestado por
criaturas maléficas. Num dos cantos da sala, um dos cossacos parecia querer
defenestrá-lo do castelo. Num outro, um sinistro Rasputin preparava uma poção
venenosa, provavelmente, para dar de beber à princesa indefesa. Aflito, K.
olhou bem para o amor da sua vida, tentou ler sua mente, percebeu que ela
estava sempre muito séria e conclui: “Ela está triste e enfeitiçada, sabe que
estes abomináveis vilões preparam uma emboscada para sequestrá-la e levá-la
para a vampira ruiva. Se eu conseguir fazer ela sorrir, vou quebrar o encanto
que a enfeitiçou e, então, fugiremos daqui”.
Eis
a questão. Como fazer sua princesa sorrir se, de fato, aquilo tudo nada mais
era do que uma aula sobre literatura russa em que todos prestavam atenção muito
circunspectos! Mas K. estava profundamente imerso em seus loucos devaneios para
sair de si e aceitar a ordem natural das coisas. Sabia que por palavras seria
impossível se comunicar com a tal princesa, já que palavras eram proibidas
dentro da faculdade de letras. Então, teve a seguinte ideia: “Talvez, se eu
desenhasse um retrato dela, ela entenderia que ela não está sozinha e que eu,
seu humilde servo, estou aqui para ajudar”. Imediatamente, K. se pôs a
desenhar, mas sua caneta falhava e não saía tinta. “Minha vida por uma
caneta!”, resmungou. Há algumas coisas na vida que parecem colaborar com alguns
de nossos propósitos mais malucos. A realidade, ao invés de trabalhar para
manter a sobriedade dos fatos objetivos, frequentemente instiga a doce fantasia
contra a fria lógica do mundo. E foi exatamente isso o que aconteceu. Alguém
deixou cair uma caneta no chão, que rolou como uma seta de cupido justamente
para os pés daquele que, até mesmo por razões médicas (psiquiátricas), era o
menos indicado a receber uma graça do acaso. Não tenhamos ilusões,
compatriotas, nada de extraordinário, apenas um acontecimento fortuito, casual.
Realmente, tudo puro fruto do acaso! Mas, para K., o Destino ordenava: “Aqui
tens tua caneta!”
K.
começou a desenhar, primeiro a forma do rosto – ficou parecido –, depois os
olhos e a sobrancelhas – ficou parecido –, o nariz – ficou parecido –, os
cabelos, negros, lisos e longos – ficou parecido –; faltava a boca, fez um
risco, mas ela tinha lábios benfeitos e K., com medo de estragar o desenho, não
se sentindo capaz de desenhar lábios tão perfeitos, resolver parar. Olhou para
o retrato e disse para consigo mesmo: “Os olhos, acho que consegui captar a
essência dos olhos. Não saiu assim uma Monalisa mas, dado o clamor das horas,
acho que está bom assim”. Depois, desenhou sete Matrioshkas em baixo do rosto.
Em cima, desenhou uma dessas catedrais orientais, com seis torres, de cúpulas
coloridas. No alto, um céu estrelado com nove estrelas e uma lua crescente –
crescente como os nossos sonhos. Pronto, estava terminado. Mas aquele desenho
era, acima de tudo, uma declaração de amor, não podia faltar um coração. Então,
K. desenhou um grande coração em volta do retrato de sua princesa idolatrada. E
assim aconteceu.
Agora,
era preciso que o desenho chegasse ao seu destino. O Cupido já havia feito a
sua parte, K. teria de fazer o resto. Dobrou o desenho, como um bilhete, e
pensou em pedir para os colegas repassarem até o alvo de seus sonhos. Mas,
pensou: “E se ela repassar o bilhete para frente? Bom, poderia se extraviar ou
chegar até o líder que fala a língua estrangeira. Esta última hipótese seria
interessante, o líder abriria o papel e procuraria o destinatário e o
remetente, e assim seria bom, porque era uma declaração pública de amor. Todos
aplaudiam e tudo ficava bem!” Todavia, e se o professor achasse que o desenho
era dela para ele professor?! “Malditos boiardos!” Não, teria de ser de outro
jeito. K. ficou maquinando, maquinando, maquinando. Imaginou mil estratégias,
mil planos mirabolantes. Nada parecia bom. Enfim, tarde demais, o professor
encerrou a aula e todos se levantaram e saíram da sala. K. agiu
automaticamente, apenas seguindo o fluxo. Avistou sua princesa russa, que ia à
sua frente, ia embora. Foi atrás mas logo a perdeu de vista. Afinal, estava
sozinho e fez o que sempre fez no final da aula: tomou o prumo de casa.
No
caminho, K. encontrou um colega e ambos se dirigiram para o ponto de ônibus.
Mas olha só, quem estava lá, em meio a uma multidão de estudantes: a princesa
russa! No alto da rua, surgiu um ônibus e seu amigo lhe disse: “O meu tá vindo
aí”. Se despediram. K. ficou ali. Viu um banco vazio e sentou. Muitas pessoas
entraram no ônibus, não a sua amada. O ônibus anda, não a sua amada. Esta ficou
de pé, viu o banco vazio e se sentou ao lado do nosso D. Quixote das letras.
Este viu o sonho de sua vida chegar muito perto de se realizar. Ensaiou várias
vezes iniciar uma conversa, mas sua timidez não o permitia balbuciar palavra.
Gesticulava os braços e as mãos, mas ela não percebia, porque escrevia alguma
coisa no telefone celular. K., entretanto, não desistia. “Quando ela olhar pra
cá, eu vou falar com ela”. E o tempo passava. De repente, um amigo da moça
aparece e se aproxima. Ela se levanta e os dois começam a conversar bem na hora
em que K., tomado de uma coragem súbita, decidira falar com ela! Lá vem vindo
um ônibus. É o dela. É o de K. também! Ele se levanta. Muitas pessoas se
aglomeram para entrar no ônibus. K. caminha, devagar, sem forças, atrás da sua
venerada princesa. “Eu vou perdê-la pra sempre!”, suspira, desesperado. O
desenho, K.! o desenho, entrega para ela, vamos, rápido, não deixa ela ir
embora sem pegar o desenho!!! Nisso, K. movido por uma força sobrenatural
cutuca o ombro da garota e entrega o desenho. Alea iacta est, impossível voltar atrás! Ela pega e olha com
perplexidade: “O que é isso?” Não pergunta, nem ele sabe, têm coisas que não
têm explicação (não é nada), apenas abra e olha (quando chegar em casa). Olha,
o ônibus está lotado, logo logo vai sair; todos entraram, anda! Ela entra. K.
sem conseguir acreditar no que fez fica paralisado sem conseguir dar um passo
adiante. O ônibus fecha a porta e sai. K. fica onde está e então cai em si: “O
dragão, o dragão engoliu ela!”
Ninguém
pode sequer imaginar quantos tormentos e alegrias K. viveu durante aquela
semana. Digamos assim, que este lunático viajou em frações de segundo entre o
céu e o inferno, várias vezes, muitas vezes, infinitas vezes, e, nesse
vai-e-vem, ficou completamente alienado do mundo que nos cerca. Ninguém melhor
descreveu a sensação do amor que o poeta português Camões, que era caolho. Sim,
caolho. No célebre soneto, o poeta diz que amar é um solitário andar por entre a gente. Quanta verdade em um
simples decassílabo heroico! Quem poderia resolver esse paradoxo, o paradoxo do
amor? Se alguém disser sim, não passa de um mentiroso, pois resolver o paradoxo
é simplesmente decretar o fim do amor. No entanto, aqui não é o lugar para
divagações filosóficas. Já está quase na hora de encerrar este conto, afinal,
eu não ganhei um conto para escrever e, segundo as más línguas, tempo é
dinheiro e, segundo as boas línguas, esta minha frase saiu deveras infeliz.
Na
aula seguinte, K. foi mas sua princesa, não. E isso significa, em termos
concretos ou da verdade dos fatos, o seguinte: um não real – como
resposta. Mas na outra aula – seguinte a aula seguinte – K. estava entrando na
sala de aula e logo viu sua princesa no fundo. K. olha para ela, resignado;
entretanto, ela manda um sorriso para ele. K., então, surpreendido, devolve o
sorriso com um sorriso tímido, que mal expressava um décimo da felicidade que
sentia. O que aconteceu depois? Não interessa, o que aconteceu depois. Ao
contrário do que se costuma pensar, o amor é uma carta de alforria, regido por
uma única lei: a ninguém é dado o direito de, a pretexto de amar, dizer você é meu. As amarras que o atam é um
consentimento incondicional; e novamente recorro à citação de um outro verso do
grande poeta lusitano: é um querer estar
preso por vontade. Mas num mundo em que todo o mundo o despreza, o amor é
uma utopia, uma ilusão. Certa vez li em algum lugar que Dostoievski dizia que o
D. Quixote é a história mais triste já escrita, porque é a história de uma
desilusão. No final, o cavaleiro de La Mancha, num momento de lucidez, descobre
que todas as suas aventuras não eram senão invencionices de sua cabeça
perturbada. Ele não pode suportar a verdade... Amando-a ou não, portanto, pouco
importa o que aconteceu depois. O que importa é o que aconteceu. Mas, apesar de
tudo, quem diria que o nosso campeão de derrotas contra moinhos de vento
venceria pelo menos uma batalha: K. conseguiu fazer a princesa russa sorrir e,
assim, o feitiço se quebrou.
Jean também é autor de "Des-tino", "A saga de um andarilho pelas estrelas", "A greve dos planetas", disponíveis no link e-Books, entre outros textos publicados neste blog Verso, Prosa & Rock'n'Roll.
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