Por Jean Pires de A. Gonçalves
Nos
dias atuais, Shakespeare poderia ser considerado politicamente incorreto, dados
alguns aspectos de suas peças, no mínimo, para dizermos assim, “preconceituosos”.
Falstaff sofre bullying por ser obeso e Aarão, o mouro, entre as muitas de suas
qualidades negativas, de vilão, soma-se a pele escura.
Na
verdade, Shakespeare reproduz os preconceitos de seu tempo, o século XVII, um
mundo muito mais inclemente que o nosso. O caso clássico é Shylock, o rico usurário judeu de O mercador de Veneza. Aparentemente, Shakespeare
destila todo o seu veneno na construção do personagem, que é ultraestigmatizado,
apesar do dramaturgo jamais ter conhecido um único judeu; pois os judeus haviam
sido expulsos da Inglaterra quatro séculos antes.
Personagens
caricatos, assim como hoje, despertavam todos os tipos de paixão e, claro,
atendiam às expectativas catárticas do público da época. Mas Shakespeare não
jogava para a plateia sem uma dose de dissenso. Na noite de amor de Otelo, o
general mouro, e sua amada Desdêmona, Iago, em companhia de Rodrigo, denuncia a
Brabâncio, senador e pai da moça, o encontro proibido, com as seguintes
palavras:
“Meu
senhor, pelas feridas de Cristo! O senhor foi roubado! Que humilhação! (...)
Neste instante, agora, agorinha, um bode preto está cobrindo sua branca
ovelhinha (...) Só porque nós viemos lhe fazer um favor e o senhor pensa que
somos dois desordeiros, terá um cavalo berbere cobrindo sua filha; terá seus
sobrinhos relinchando para o senhor; terá corcéis por primos e ginetes por
parentes”.
Ao
longo da peça, Shakespeare pinta o personagem Iago, branco e cristão, como um
dos vilões mais desprezíveis e malignos da história da literatura, enquanto
Otelo, o mouro, aparece surpreendentemente como um homem de caráter íntegro, digno e virtuoso. Essa inversão e humanização de um personagem que devia
ser o avesso do tipo ideal da cristandade, tão poderosa naqueles tempos, é, no
mínimo, bastante corajosa, para não dizer o óbvio, genial.
Tal esquema, no
entanto, não foge à regra. Acuado, Shylock desabafa: “I am a Jew. Hath not a
Jew eyes? hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections,
passions?” (Eu sou judeu. Por acaso, não teria olhos um judeu? Mãos, órgãos,
corpo, sentidos, afetos, paixões?).
De
fato, parece mesmo que o bardo paira sobre o seu tempo e, em doses
homeopáticas, oferece um antídoto para o futuro, até mesmo para nós, que já
atravessamos o limiar do século XXI e continuamos batendo cabeça!
Mas
estamos no 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o que Shakespeare tem a dizer
às mulheres?
Infelizmente,
Otelo, nosso herói, não poderá servir de exemplo. Levado até o extremo do ciúme
pelas intrigas de Iago, o nobre mouro mata sua amada. “(...) Este que, de olhos
baixos, apesar de não ser de seu feitio mostrar-se comovido, agora derrama lágrimas
de maneira pródiga, como as árvores das Arábias derramam sua goma medicinal...”
diz Otelo, para logo em seguida apunhalar-se de modo fatal, assim como a adolescente Julieta em seu último
ato.
Tais
desfechos trágicos não eram um problema para Shakespeare. Mas em tempos em que
feminicídio é crime hediondo – e já não era sem tempo – não há mais espaço para
a infame “legítima defesa da honra”.
Devemos achar em
outro lugar, sem abandonar as peças de Shakespeare, já que são tão prodigiosas em personagens
femininos marcantes, como Lady MacBeth, Julieta, Ofélia, Rosalinda, entre outras.
Qual seria o papel da mulher em suas peças, escritas em um universo onde a vontade patriarcal chegava às raias do poder absoluto?
Na
peça, A comédia de erros temos um
exemplo interessante de como Shakespeare não aceitava como dado o papel determinado
socialmente à mulher. São bastante interessantes os diálogos travados entre
duas irmãs, Adriana e Luciana, sobre a relação conjugal e o amor.
Vejamos
primeiro como a conformada Luciana encara a relação homem-mulher:
Luciana
– E não pode acontecer de você ter esquecido por completo os seus deveres de
marido? Não pode ser, Antífolo, que, em pleno florescer do amor, o seu afeto
vai murchando ainda em botão? Será
que o amor em construção já está apodrecendo na estrutura? Se desposou minha
irmã pela riqueza, então, por amor a essa riqueza, trate-a com mais delicadeza.
Se você gosta de outra, trate disso na surdina; mostre-se de olhar vendado,
abafe o seu amor infiel, não deixe que minha irmã o enxergue com outros olhos. Não
permita que sua própria boca seja o orador de seu pecado. Tenha para com minha
irmã olhares ternos, palavras bonitas, encarne a deslealdade com elegância. Apresente
o seu vício paramentado como se virtude fosse. Tenha uma presença límpida,
embora o seu coração esteja manchado. Ensine ao pecado a postura de um mártir
cristão. Seja falso em segredo; que precisão tem ela de saber? Se nem mesmo
ladrão de galinha comenta seus atos corruptos! Seria maltratá-la duplamente:
ignorar-lhe a cama e, quando estão à mesa, deixar que ela leia a traição em
seus olhos. Quando bem manejada, a ação vergonhosa adquire fama peculiar, pois
um mau passo sempre se pode confrontar com palavras bem postas. Ai de nós,
pobres mulheres! Vocês só precisam fazer-nos acreditar (criaturas crédulas que
somos) que vocês nos amam. Enquanto outras têm o seu braço, queremos que vocês nos
mostrem a manga. Nós nos movimentamos em sua órbita, e vocês podem se mover. Assim,
meu nobre irmão, volte lá para dentro, console minha irmã, anime-a, chame-a de
esposa. É diversão saudável usar palavras em certa medida vazias quando o doce
som de um elogio vence a discórdia.
Muitas
mulheres nos dias de hoje, por incrível que pareça, podem achar um bom conselho
as recomendações de Luciana para o marido de Adriana, Antífolo. Mas não é bem
isso o que a principal interessada Adriana espera de seu esposo e do lugar da
mulher no casamento, como podemos perceber neste diálogo:
Adriana
– Meu marido ainda não voltou? E nem o escravo que com tanta pressa mandei que
buscasse seu amo? Veja, Luciana, são duas horas.
Luciana
– Talvez algum mercador tenha lhe feito um convite, e do mercado ele foi direto
para um almoço em outro lugar. Minha boa irmã, vamos almoçar, e deixe de se
queixar. Os homens são donos de sua liberdade. O tempo é mestre deles, e,
quando têm tempo, eles podem ir e vir. Sendo assim, seja paciente, minha irmã.
Adriana
– Por que deveria ser a liberdade deles superior à nossa?
Luciana
– Porque a ocupação deles é fora de casa.
Adriana
– Ele não gosta quando eu o trato do jeito que ele me trata.
Luciana
– Saiba que ele segura as rédeas das tuas vontades.
Adriana
– Só os jumentos é que se deixam levar por rédeas desse tipo.
Luciana
– Ora, uma liberdade voluntariosa será chicoteada pelo desgosto. Nada existe
sob a luz do firmamento que não esteja ligado à terra, ao mar, ao ar, e por
eles limitado. Sejam bestas, peixes ou pássaros, as criaturas fêmeas servem aos
machos, e estes as comandam. O homem, a mais divina das criaturas, o mestre de
todos, senhor deste vasto mundo e das águas salgadas e selvagens, dotado de
alma e de faculdades intelectuais, de maior proeminência que peixes e pássaros,
ele é o amo e senhor de sua fêmea. Deixe, então, que as tuas vontades sigam o
consentimento de teu esposo.
Adriana
– Essa servitude é o que te impede de casar.
Luciana
– Não, não isso, mas sim as incomodações do leito conjugal.
Adriana
– Fosse você casada e teria voz ativa.
Luciana
– Antes de aprender a amar, eu me exercitarei em obedecer.
Adriana
– E se teu marido quiser pular a cerca?
Luciana
– Enquanto ele estiver longe de casa, eu fico esperando.
Adriana
– Paciente e impassível! Não é de admirar que ela tire tempo para reflexões;
podem ser submissas, sim, as criaturas que não têm outra motivação. Já uma alma
infeliz, machucada pela adversidade, a esta nós pedimos que se acalme, sempre
que a ouvimos chorar. E, no entanto, estivéssemos nós oprimidos pelo peso de uma
dor semelhante, estaríamos nos queixando também, e talvez mais ainda. Tu, que
não tens parceiro indelicado que te deixe aborrecida, é exigindo de mim uma paciência
inútil que me queres consolar. Mas, se tu viveres para ver-te destituída de
teus direitos de esposa, vais deixar de lado essa paciência boba de lunática.
Enfim,
num mundo como o nosso, que parece andar para trás, de terra plana a mulheres
que se orgulham em serem donas de casa submissas a um marido infiel,
Shakespeare ainda tem muito a ensinar.
Que
este 8 de março Shakespeare sirva de inspiração para que as mulheres optem por
ser como Adriana e que tenham voz ativa
ante a sociedade e as questões de gênero.
SHAKESPEARE,
William, “Comédia de erros”, tradução de Beatriz Viégas-Faria – Porto Alegre:
L&PM, 2004.
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