segunda-feira, 13 de março de 2017

O espelho - Machade de Assis - análise e comentário

Por Jean Pires de A. Gonçalves

O conto da fase realista machadiana O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana se inicia com a menção a “quatro ou cinco cavalheiros” que têm o costume de se reunir numa sala pequena de uma casa no morro de Santa Teresa. Esse pequeno grupo tem por hábito nesses encontros discutir assuntos de “alta transcendência” (filosofia), ou, mais precisamente, das “coisas metafísicas” e dos “mais árduos problemas do universo”.

A afirmação quatro ou cinco amigos não é uma imprecisão displicente mas a ponta da meada do estilo que se convencionou chamar de “ironia machadiana” e que dá o tom para o tema desenvolvido na trama.

O primeiro parágrafo nos traz elementos suficientes dessa ironia, o que significa que o assunto tratado com grande seriedade é motivo de um discreto escárnio por parte do escritor. No caso, o “quinto cavalheiro” é tão inexpressivo que tanto faz contá-lo entre os presentes na roda de amigos, muito embora Machado de Assis o descreva como um "homem que tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico”. Este homem se limita a atravessar as reuniões “calado, pensando, cochilando”, resmungando e acenando com a cabeça em sinal de aprovação!

E, no entanto, é essa nulidade a única que merece um nome dentre o cavalheiros e que será o pivô da narrativa do conto a centralizar toda a discussão acerca da pretensa metafísica – disso se infere o nível desses debates, que, provavelmente, chamaríamos hoje de filosofia de botequim.

O “gênio” em questão é Jacobina, alguém que, como já sabemos, participa das reuniões de corpo presente. Justifica seu silêncio pela inocuidade dessas discussões, permeadas de relativismos (paradoxos), que, a despeito da alta transcendência, nada mais são do que formas civilizadas dos instintos inferiores e guerreiros contidos na “herança bestial” da natureza humana. Argumenta em contiguidade ao raciocínio que os anjos nunca entram em contenda ou desentendimento por causa de sua “perfeição espiritual e eterna”.

Desafiado a demonstrar sua máxima, Jacobina ressalva que, assim como os querubins, não aceita divergência e, diante disso, réplicas estão fora de cogitação. Os quatro cavalheiros concordam e, inusitadamente, Jacobina passa a usar “da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta”.

Em sua teoria, Jacobina parte, digamos assim, de um axioma: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Em que pese os termos esdrúxulos, tal proposição causou alguma surpresa nos presentes, mas renovando suas considerações de que não admite questionamentos, Jacobina afirma que a alma que olha de fora para dentro, tal como a alma que olha de dentro para fora, consiste em “transmitir a vida” e pode ser qualquer coisa exterior: “um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação”; “botão de camisa”; “a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc.”

Sem definir o que é a alma interior (a que olha de dentro para fora), Jacobina propõe que as duas almas se complementam para constituir um indivíduo, que é, técnica e “metafisicamente falando”, definido como “uma laranja”. Nota-se que a comparação de uma pessoa com uma laranja de certo modo não só rebaixa toda a discussão de alta transcendência como desconstrói a austeridade do argumento pelo ridículo. Essa zombaria sutil reduz ao mesmo patamar conceitos elevados como o de pátria, de um Camões, ou de poder, de um César, a “um chocalho ou um cavalinho de pau”, isto é, a brinquedos de criança.

A arguição de Jacobina também lança mão de exemplos concernentes, como o judeu Shylock, personagem d’O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, e uma senhora que é tratada como uma pessoa bastante fútil e volátil, à semelhança, segundo ele, do possesso incorporado por uma legião de demônios descrito numa passagem do Novo Testamento. É bem possível que a citação de Shylock e da passagem bíblica tenha alguma relação com o nome do protagonista, algo que tratarei mais adiante, no fim da análise.

Porém, para demonstrar de modo cabal sua tese, Jacobina remete a um caso pessoal. A partir daqui, pode se notar o estilo inconfundível de Machado de Assis, tal como uma impressão digital.

Jacobina relata que o referido caso se deu em sua juventude, aos 25 anos, quando, apesar de pobre, foi nomeado alferes da Guarda Nacional (mais ou menos equivalente à patente de sargento). Depois de contar que a nomeação causou reações negativas (inveja por parte de alguns) e positivas, admiração por parte de outros, que, inclusive, lhe compraram a farda, Jacobina lembra que foi repentinamente convidado por uma parenta, tia Marcolina, viúva de um capitão, a passar uma estada no sítio dela. Essa tia, que exigiu que Jacobina levasse a farda, lhe cobria de mimos pelo fato da nomeação de oficial. Conforme suas palavras:

“E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora”.

O mesmo tratamento afetado se estendia a um cunhado de tia Marcolina e também à escravaria. A certa altura, por ordem da tia, é instalado um espelho nos aposentos de Jacobina:

...“um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples”. Jacobina conta que o móvel era bem antigo mas ricamente ornado e fora comprado de uma fidalga da conte de D. João VI quando da vinda para o Brasil em 1808”.

Toda essa bajulação vai paulatinamente operando uma transformação na “alma” de Jacobina, ou melhor, em nas almas. Diz Jacobina:

“Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?”

Por motivo de questões particulares, tia Marcolina e o cunhado são obrigados a viajar e, por meio de um estratagema, os escravos fogem, permanecendo Jacobina solitário no sítio. A partir daí, o protagonista passa a se sentir profundamente estranho e mal. O tempo custa a passar e a solidão o perturba. Não se alimenta bem e passa a recitar métricas inteira de Gonzaga a Camões para espantar a solidão.

Jacobina observa que somente enquanto dormia podia sentir alívio, pois sonhava – sonhava fardado, e, com isso, a alma interior atuava sem a necessidade da alma externa, dos estímulos instáveis do mundo. Mas era só acordar para a frustração voltar.

Durante oito dias, Jacobina não se olhou no espelho por não querer se achar, segundo ele, simultaneamente um e dois, provavelmente porque estava sozinho e sua imagem lhe se afigurar como outra pessoa. Mas, de repente, ao olhar no espelho, não pôde reconhecer sua própria figura, que se deformava em um vulto na imagem refletida:

“Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação”.

Tal percepção lhe causou grande inquietação e angústia. Então resolveu ir embora do sítio. Vestiu a farda e, ao olhar para o espelho, sua imagem foi repentinamente restituída à nitidez anterior: “era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior”. Então, para suportar a solidão dos dias, Jacobina vestia a farda e se olhava no espelho.

Conclui que sua individualidade, desintegrada com ausência de sua alma que olha de fora para dentro, isto é, a tia Marcolina, o cunhado desta e os escravos, foi lhe reintegrada com a farda: “Daí em diante, fui outro”.

Daí em diante, diz Jacobina, fui outro – não ele mesmo – mas uma representação alheia de si mesmo.

Ao terminar o caso, Jacobina retira-se sorrateiramente sem ser percebido pelo grupo de amigos.

Análise

Haveria muito que se dizer sobre este conto. Sem dúvida nenhuma, Machado de Assis reproduz à sua maneira o tradicional tema filosófico da alienação. Mas é enganoso creditar a este conto uma antecipação sem pressupostos da psicanálise de Sigmund Freud. A influência aqui é nitidamente Arthur Schopenhauer, filósofo que, ao que parece, marcou profundamente Machado de Assis. Sobre a influência do filósofo alemão na obra machadiana, Miguel Reale e Benedito Nunes, entre outros, têm muito mais acerto do que uma certa crítica de cariz uspiano que nega essa influência. Aqui, como em outro lugar, Machado de Assis faz uma paródia filosófica, para criticar o mundo ilusório das aparências, na qual o filósofo prussiano de Danzig é, sim, inspiração.

Se houvesse alguma antecipação, todavia, esta parece ser muito mais condizente com as teses do existencialismo, e em nada se alteraria em sentido e conteúdo se por um acaso o garçom de Sartre fosse substituído pelo alferes de Machado de Assis. A essência pré-estabelecida e determinada pelo tipo social não apenas precede e anula a individualidade do ser ao destituir a liberdade inerente da existência, mas resulta numa vida falsa, uma existência inautêntica.

Acontece que não podemos ignorar o escritor brasileiro e seu tempo histórico, que deve ser de fato o ponto central da análise. Machado de Assis não se furta da realidade em que vive para se refugiar na caverna da especulação filosófica, ainda mais de matiz estrangeira. O subtítulo do conto ora analisado (esboço de uma nova teoria da alma humana) e a narrativa aparente é somente um ardil para o escritor tratar daquilo que realmente interessa. No texto tudo é aparência e, sendo aparência refletida na superfície fina de um espelho (tema schopenhaueriano por excelência, é verdade), nada do que está refletido é real. Mas por que o tema das aparências para tratar da realidade brasileira?

O que importa realmente no conto O espelho – e devemos levar o título em consideração – não é o espelho enquanto mote para a meditação metafísica sobre a existência ou a alma. Na verdade, a teoria filosófica é pretexto para adequar a metáfora espelho ao seu devido lugar: o contexto político por que passa o Brasil do final do século XIX.

Sabemos que o espelho é uma peça trazida junto com as bugigangas da corte da família real durante a transferência do reino português para o Brasil. Sabemos também que esse mobiliário antigo se destacava da mobília “modesta e simples” da casa da tia Marcolina, pela ornamentação ricamente decorada. Jacobina descreve o móvel nos seguintes termos:

“Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...”

Eis o X da questão, o espelho é a representação do regime monárquico prestes a ruir.

O conto O espelho foi publicado na Gazeta de Notícias em 1882, seis anos antes da Leia Áurea e sete anos antes da Proclamação da República, uma quartelada, descrita por um jornalista na ocasião como uma parada militar assistida pelo povo bestificado.

A moldura do espelho nos diz que o poder da monarquia à época não era senão de fachada, que não governava mais de fato e que subsistia como mero adereço de decoração. A imagem do alferes refletida no espelho representa a influência cada vez mais avassaladora das forças armadas nas questões de Estado. Mas o poder do exército também é vazio e advém da bajulação das oligarquias.

O nome do protagonista também é bastante simbólico neste sentido.

A etimologia do nome jacobina é de origem tupi (significa algo como caatinga) e entra para o léxico da língua portuguesa com a Vila Santo Antonio de Jacobina, fundada pelos bandeirantes na Bahia em 1722. Entretanto, a palavra no gênero masculino, isto é, jacobino, reporta à raiz hebraica que nomeia um dos patriarcas do povo hebreu, Jacó ou Jacob, que depois passará a ser chamado de Israel.

Embora Jacó seja um nome muito comum na comunidade judaica, sua acepção é pejorativa e significa “aquele que segura o calcanhar”, numa referência a uma tentativa de Jacó impedir a primogenitura de seu irmão gêmeo Esaú quando ambos nasceram. Jacó é desonesto, compra o direito de filho primogênito por um prato de lentilhas e se faz passar pelo irmão para herdar as terras de seu pai Isaac.

(Lembrando que o penúltimo livro de Machado de Assis se chama Esaú e Jacó [1904] e conta a história de dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo [nomes cristãos], que são como água e óleo, inclusive na filiação política, um é monarquista e outro, republicano).

Neste sentido, ao trazer referência a Shylock, Machado de Assis poderia sugerir um paralelo entre Jacobina e o personagem de O mercador de Veneza: “A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. ‘Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração’. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele” (e, neste caso, Machado de Assis repete, tal como Shakespeare, o estigma preconceituoso do judeu errante, a despeito do simbolismo literário implícito recorrente – falaremos disso em um outro texto).

O nome Jacobina também alude certamente aos jacobinos, partido radical republicano surgido no contexto da Revolução Francesa, e, no Brasil, por extensão, à ala militar republicana da chamada República da Espada.

Para concluir, sob esta interpretação, o exército é o irmão gêmeo da monarquia e, ao cobiçar poder e riqueza, é manipulado pelos verdadeiros potentados enraizados na sociedade brasileira: as antigas oligarquias regionais.

O Espelho
Esboço de uma nova teoria da alma humana


Por Machado de Assis

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.

Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte.

Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes.

Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei- me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne...

Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação.

Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.

Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

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