Por Jean Pires de A. Gonçalves
O
conto da fase realista machadiana O
espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana se inicia com a menção a
“quatro ou cinco cavalheiros” que têm o costume de se reunir numa sala pequena
de uma casa no morro de Santa Teresa. Esse pequeno grupo tem por hábito nesses
encontros discutir assuntos de “alta transcendência” (filosofia), ou, mais
precisamente, das “coisas metafísicas” e dos “mais árduos problemas do
universo”.
A
afirmação quatro ou cinco amigos não é uma imprecisão displicente mas a ponta
da meada do estilo que se convencionou chamar de “ironia machadiana” e que dá o
tom para o tema desenvolvido na trama.
O
primeiro parágrafo nos traz elementos suficientes dessa ironia, o que significa
que o assunto tratado com grande seriedade é motivo de um discreto escárnio por
parte do escritor. No caso, o “quinto cavalheiro” é tão inexpressivo que tanto
faz contá-lo entre os presentes na roda de amigos, muito embora Machado de
Assis o descreva como um "homem que tinha a mesma idade dos companheiros, entre
quarenta e cinquenta anos, provinciano, capitalista, inteligente, não sem
instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico”. Este homem se limita a atravessar
as reuniões “calado, pensando, cochilando”, resmungando e acenando com a cabeça
em sinal de aprovação!
E,
no entanto, é essa nulidade a única que merece um nome dentre o cavalheiros e que
será o pivô da narrativa do conto a centralizar toda a discussão acerca da
pretensa metafísica – disso se infere o nível desses debates, que,
provavelmente, chamaríamos hoje de filosofia
de botequim.
O
“gênio” em questão é Jacobina, alguém que, como já sabemos, participa das
reuniões de corpo presente. Justifica seu silêncio pela inocuidade dessas
discussões, permeadas de relativismos (paradoxos), que, a despeito da alta
transcendência, nada mais são do que formas civilizadas
dos instintos inferiores e guerreiros contidos na “herança bestial” da
natureza humana. Argumenta em contiguidade ao raciocínio que os anjos nunca
entram em contenda ou desentendimento por causa de sua “perfeição espiritual e
eterna”.
Desafiado
a demonstrar sua máxima, Jacobina ressalva que, assim como os querubins, não
aceita divergência e, diante disso, réplicas estão fora de cogitação. Os quatro
cavalheiros concordam e, inusitadamente, Jacobina passa a usar “da palavra, e
não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta”.
Em
sua teoria, Jacobina parte, digamos assim, de um axioma: “Cada criatura humana
traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de
fora para dentro”. Em que pese os termos esdrúxulos, tal proposição causou
alguma surpresa nos presentes, mas renovando suas considerações de que não
admite questionamentos, Jacobina afirma que a alma que olha de fora para dentro, tal como a alma que olha de dentro para fora, consiste
em “transmitir a vida” e pode ser qualquer coisa exterior: “um espírito, um
fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação”; “botão de camisa”;
“a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um
tambor, etc.”
Sem
definir o que é a alma interior (a que
olha de dentro para fora), Jacobina propõe que as duas almas se
complementam para constituir um indivíduo, que é, técnica e “metafisicamente
falando”, definido como “uma laranja”. Nota-se que a comparação de uma pessoa
com uma laranja de certo modo não só rebaixa toda a discussão de alta transcendência
como desconstrói a austeridade do argumento pelo ridículo. Essa zombaria sutil reduz
ao mesmo patamar conceitos elevados como o de pátria, de um Camões, ou de
poder, de um César, a “um chocalho ou um cavalinho de pau”, isto é, a brinquedos
de criança.
A
arguição de Jacobina também lança mão de exemplos concernentes, como o judeu
Shylock, personagem d’O Mercador de
Veneza, de William Shakespeare, e uma senhora que é tratada como uma pessoa
bastante fútil e volátil, à semelhança, segundo ele, do possesso incorporado
por uma legião de demônios descrito numa passagem do Novo Testamento. É bem
possível que a citação de Shylock e da passagem bíblica tenha alguma relação
com o nome do protagonista, algo que tratarei mais adiante, no fim da análise.
Porém,
para demonstrar de modo cabal sua tese, Jacobina remete a um caso pessoal. A
partir daqui, pode se notar o estilo inconfundível de Machado de Assis, tal
como uma impressão digital.
Jacobina
relata que o referido caso se deu em sua juventude, aos 25 anos, quando, apesar
de pobre, foi nomeado alferes da Guarda Nacional (mais ou menos equivalente à
patente de sargento). Depois de contar que a nomeação causou reações negativas
(inveja por parte de alguns) e positivas, admiração por parte de outros, que,
inclusive, lhe compraram a farda, Jacobina lembra que foi repentinamente
convidado por uma parenta, tia Marcolina, viúva de um capitão, a passar uma estada
no sítio dela. Essa tia, que exigiu que Jacobina levasse a farda, lhe cobria de
mimos pelo fato da nomeação de oficial. Conforme suas palavras:
“E
abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como
era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse
de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me
pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá,
alferes a toda a hora”.
O
mesmo tratamento afetado se estendia a um cunhado de tia Marcolina e também à
escravaria. A certa altura, por ordem da tia, é instalado um espelho nos
aposentos de Jacobina:
...“um
grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja
mobília era modesta e simples”. Jacobina conta que o móvel era bem antigo mas
ricamente ornado e fora comprado de uma fidalga da conte de D. João VI quando
da vinda para o Brasil em 1808”.
Toda
essa bajulação vai paulatinamente operando uma transformação na “alma” de
Jacobina, ou melhor, em nas almas. Diz Jacobina:
“Aconteceu
então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das
moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo
o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do
cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a
outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?”
Por
motivo de questões particulares, tia Marcolina e o cunhado são obrigados a
viajar e, por meio de um estratagema, os escravos fogem, permanecendo Jacobina
solitário no sítio. A partir daí, o protagonista passa a se sentir
profundamente estranho e mal. O tempo custa a passar e a solidão o perturba. Não
se alimenta bem e passa a recitar métricas inteira de Gonzaga a Camões para
espantar a solidão.
Jacobina
observa que somente enquanto dormia podia sentir alívio, pois sonhava – sonhava
fardado, e, com isso, a alma interior atuava sem a necessidade da alma externa,
dos estímulos instáveis do mundo. Mas era só acordar para a frustração voltar.
Durante
oito dias, Jacobina não se olhou no espelho por não querer se achar, segundo
ele, simultaneamente um e dois, provavelmente porque estava sozinho e sua
imagem lhe se afigurar como outra pessoa. Mas, de repente, ao olhar no espelho,
não pôde reconhecer sua própria figura, que se deformava em um vulto na imagem
refletida:
“Olhei
e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me
estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de
sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho
reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter
sido. Mas tal não foi a minha sensação”.
Tal
percepção lhe causou grande inquietação e angústia. Então resolveu ir embora do
sítio. Vestiu a farda e, ao olhar para o espelho, sua imagem foi repentinamente
restituída à nitidez anterior: “era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a
alma exterior”. Então, para suportar a solidão dos dias, Jacobina vestia a
farda e se olhava no espelho.
Conclui
que sua individualidade, desintegrada com ausência de sua alma que olha de fora para dentro, isto é, a tia Marcolina, o
cunhado desta e os escravos, foi lhe reintegrada com a farda: “Daí em diante, fui outro”.
Daí em diante, diz
Jacobina, fui outro – não ele mesmo – mas uma representação alheia de si mesmo.
Ao
terminar o caso, Jacobina retira-se sorrateiramente sem ser percebido pelo
grupo de amigos.
Análise
Haveria
muito que se dizer sobre este conto. Sem dúvida nenhuma, Machado de Assis
reproduz à sua maneira o tradicional tema filosófico da alienação. Mas é
enganoso creditar a este conto uma antecipação sem pressupostos da psicanálise
de Sigmund Freud. A influência aqui é nitidamente Arthur Schopenhauer, filósofo
que, ao que parece, marcou profundamente Machado de Assis. Sobre a influência
do filósofo alemão na obra machadiana, Miguel Reale e Benedito Nunes, entre
outros, têm muito mais acerto do que uma certa crítica de cariz uspiano que
nega essa influência. Aqui, como em outro lugar, Machado de Assis faz uma
paródia filosófica, para criticar o mundo ilusório das aparências, na qual o
filósofo prussiano de Danzig é, sim, inspiração.
Se
houvesse alguma antecipação, todavia, esta parece ser muito mais condizente com
as teses do existencialismo, e em nada se alteraria em sentido e conteúdo se
por um acaso o garçom de Sartre fosse
substituído pelo alferes de Machado de Assis. A essência pré-estabelecida e
determinada pelo tipo social não apenas precede e anula a individualidade do ser ao destituir a liberdade inerente da existência, mas resulta numa vida falsa, uma existência inautêntica.
Acontece
que não podemos ignorar o escritor brasileiro e seu tempo histórico, que deve
ser de fato o ponto central da análise. Machado de Assis não se furta da
realidade em que vive para se refugiar na caverna da especulação filosófica,
ainda mais de matiz estrangeira. O subtítulo do conto ora analisado (esboço de uma nova teoria da alma humana)
e a narrativa aparente é somente um ardil para o escritor tratar daquilo que
realmente interessa. No texto tudo é aparência e, sendo aparência refletida na
superfície fina de um espelho (tema schopenhaueriano por excelência, é verdade),
nada do que está refletido é real. Mas por que o tema das aparências para
tratar da realidade brasileira?
O
que importa realmente no conto O espelho –
e devemos levar o título em consideração – não é o espelho enquanto mote para a
meditação metafísica sobre a existência ou a alma. Na verdade, a teoria
filosófica é pretexto para adequar a metáfora espelho ao seu devido lugar: o
contexto político por que passa o Brasil do final do século XIX.
Sabemos
que o espelho é uma peça trazida junto com as bugigangas da corte da família real durante
a transferência do reino português para o Brasil. Sabemos também que esse
mobiliário antigo se destacava da mobília “modesta e simples” da casa da tia
Marcolina, pela ornamentação ricamente decorada. Jacobina descreve o móvel nos
seguintes termos:
“Não
sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns
delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de
madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...”
Eis
o X da questão, o espelho é a representação do regime monárquico prestes a
ruir.
O
conto O espelho foi publicado na
Gazeta de Notícias em 1882, seis anos antes da Leia Áurea e sete anos antes da
Proclamação da República, uma quartelada, descrita por um jornalista na ocasião
como uma parada militar assistida pelo povo bestificado.
A
moldura do espelho nos diz que o poder da monarquia à época não era senão de
fachada, que não governava mais de fato e que subsistia como mero adereço de
decoração. A imagem do alferes refletida no espelho representa a influência
cada vez mais avassaladora das forças armadas nas questões de Estado. Mas o
poder do exército também é vazio e advém da bajulação das oligarquias.
O
nome do protagonista também é bastante simbólico neste sentido.
A
etimologia do nome jacobina é de
origem tupi (significa algo como caatinga) e entra para o léxico da língua portuguesa com a Vila Santo Antonio
de Jacobina, fundada pelos bandeirantes na Bahia em 1722. Entretanto, a palavra
no gênero masculino, isto é, jacobino,
reporta à raiz hebraica que nomeia um dos patriarcas do povo hebreu,
Jacó ou Jacob, que depois passará a ser chamado de Israel.
Embora
Jacó seja um nome muito comum na comunidade judaica, sua acepção é pejorativa e
significa “aquele que segura o calcanhar”, numa referência a uma tentativa de
Jacó impedir a primogenitura de seu irmão gêmeo Esaú quando ambos nasceram. Jacó
é desonesto, compra o direito de filho primogênito por um prato de lentilhas e
se faz passar pelo irmão para herdar as terras de seu pai Isaac.
(Lembrando
que o penúltimo livro de Machado de Assis se chama Esaú e Jacó [1904] e conta a história de dois irmãos gêmeos, Pedro
e Paulo [nomes cristãos], que são como água e óleo, inclusive na filiação política, um é monarquista e outro,
republicano).
Neste
sentido, ao trazer referência a Shylock, Machado de Assis poderia sugerir um
paralelo entre Jacobina e o personagem de O mercador de Veneza: “A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados;
perdê-los equivalia a morrer. ‘Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é
um punhal que me enterras no coração’. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados,
alma exterior, era a morte para ele” (e, neste caso, Machado de Assis repete, tal
como Shakespeare, o estigma preconceituoso do judeu errante, a despeito do simbolismo literário implícito
recorrente – falaremos disso em um outro texto).
O
nome Jacobina também alude certamente aos jacobinos,
partido radical republicano surgido no contexto da Revolução Francesa, e, no
Brasil, por extensão, à ala militar republicana da chamada República da Espada.
Para
concluir, sob esta interpretação, o exército é o irmão gêmeo da monarquia e, ao
cobiçar poder e riqueza, é manipulado pelos verdadeiros potentados enraizados na
sociedade brasileira: as antigas oligarquias regionais.
O Espelho
Esboço de uma nova teoria da alma humana
Por Machado de Assis
Quatro
ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta
transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos
espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada
a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre
a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas
pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos
quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente
os mais árduos problemas do universo.
Por
que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles,
havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja
espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse
homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos,
era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece,
astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um
paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que
jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os
querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e
eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos
presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim
se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
-
Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai
senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e
não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros,
veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro
amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão
tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se
deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos
pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma
conjetura, ao menos.
-
Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a
dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados,
posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara
demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma
só alma, há duas...
-
Duas?
-
Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à
vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica.
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de
botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma
é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da
alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma
exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer.
"Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras
no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era
a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a
mesma...
-
Não?
-
Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas
absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder,
que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e
exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros,
por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um
cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela
minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de
alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera;
cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um
baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
-
Perdão; essa senhora quem é?
-
Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim
outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato,
porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos
meus vinte e cinco anos...
Os
quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a
controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também
o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da
mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar
morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto,
recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
-
Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda
Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe
ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi
tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns
despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi
outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho
também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples
distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me
de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram
satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por
amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão
Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário,
desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui,
acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina,
apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava
antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes.
Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que
tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província
não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para
cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse
Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o
"senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali
morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não
por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo
mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não
imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de
mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava
do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe
dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas
vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade;
era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda
o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos
superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do
artista. Tudo velho, mas bom...
-
Espelho grande?
-
Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala;
era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito;
respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que
o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas
coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o
natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
-
Não.
-
O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma
parte mínima de humanidade.
Aconteceu
então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das
moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo
o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do
cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a
outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
-
Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
-
Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A
melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me
lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos.
Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do
alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se
eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor.
No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.
Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas,
casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte.
Adeus,
sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao
cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se
não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo.
Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que
desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de
quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a
alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais.
O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a
consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas
cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a
intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles
redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a
minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes
há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e
profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a
intenção secreta dos malvados.
-
Matá-lo?
-
Antes assim fosse.
-
Coisa pior?
-
Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou
de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram.
Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto
e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo;
ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de
mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães
foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era
melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha
medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras
horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também
um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste
notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não
desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente
aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do
tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já
trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a
sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e
não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou
nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou
proporções enormes.
Nunca
os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação
mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala,
cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote
contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana,
creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For
ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei- me daqueles dias
medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never,
for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do
abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais
silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a
solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas
salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma...
Riem-se?
-
Sim, parece que tinha um pouco de medo.
-
Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela
situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente
entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um
sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me
alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que
posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma
alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me
orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que
me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de
tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando
acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único
- porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra,
que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a
ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu
rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do
que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso,
desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me,
passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião
lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode;
não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras
e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina,
deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne...
Coisa
nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
-
Mas não comia?
-
Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas
suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me
achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas
de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica;
outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor
ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito,
apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
-
Na verdade, era de enlouquecer.
-
Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara
uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era
um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo,
naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a
contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o
espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro
parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e
inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis
físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os
mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha
sensação.
Então
tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar
mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço
com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o
gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me,
murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito,
afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em
quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de
linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.
Subitamente
por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se
forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...
-
Diga.
-
Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando
as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas,
informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
-
Mas, diga, diga.
-
Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como
estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro
reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno
diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma
ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida
no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os
olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não
conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é
Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do
sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro,
recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato,
era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora,
vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando;
no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude
atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando
os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.
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