1. Um nariz fantasticamente grosseiro & 2. Nos limites da dupla existência - Arlete Cavaliere
Arlete Cavaliere inicia sua análise enfocando a própria temática da narrativa, um tanto desconfortável e inescapável, à qual, inclusive, intitula o conto do escritor Gogol: o nariz. Segundo a autora, o fato de o nariz do personagem Kovalióv sair de seu rosto e ganhar autonomia implica num “subverter de ordem ontológica do mundo”, do qual por si só remonta a uma reflexão sobre o gênero literário.
Neste sentido, a autora se questiona se, com a inversão hierárquica de ordem real, estaríamos diante de um conto “fantástico”. Ao analisar a definição de alguns estudiosos do tema, a autora chega à constatação de que gênero fantástico remete a duas instâncias estanques, a saber, o mundo natural e o mundo sobrenatural. Deste modo, o conceito de fantástico refere-se a estas duas ordens, sem, contudo, conciliá-las. Eis o fundamental, o fato de não conciliar dois mundos tão opostos produz uma sensação de medo advinda do não-sentido, já que o gênero fantástico transita, obviamente, pelo sobrenatural. Porém, apesar da ausência de sentido, provocado pela trama de um nariz protagonizar a estrutura do conto de Gogol, a autora, no entanto, argumenta que em O Nariz não se trata de um conto fantástico propriamente dito, no qual as duas ordens, natural e sobrenatural, não se tocam, mas da própria realidade inerente retratada no conto que é absolutamente sem sentido e absurda. Dito de outro modo, Gogol implode os limites que separam as leis fixas da natureza do mundo aparentemente sem lógica da fantasia, pois a própria realidade, sob a ótica do conto, é destituída de qualquer sentido.
Para
dar conta desta inflexão, a autora propõe juntamente com a crítica que o
conceito de grotesco se adéqua melhor ao gênero gogoliano. No caso de O Nariz, o enredo se desenvolve sob
aspectos estranhos, mas que, ao mesmo tempo, são muito reais, o que dá ensejo
para classificar o conto de realismo grotesco. Para reforçar essa ideia, a
autora menciona o estilo de escrita do autor, denominado por ela de
“brincadeira linguística gogoliana”, que, como já se verificou no texto de Eikhenbaum,
é marcado por frases desconexas, um tom cômico e repleto de trocadilhos. Para
concluir, sem abandonar plenamente o conceito de fantástico, a autora o retoma
para afirmar que em Gogol o normal é precisamente o ser fantástico, endossando
o conceito de realismo grotesco.
Para
entender a estrutura de O Nariz, a
autora lembra que o primeiramente o conto foi escrito como um sonho. O
personagem Kovalióv descobriria que estava sem o nariz, então passaria a
procurá-lo desesperadamente, e no final despertaria de seu sono percebendo de
que tudo não passou de um sonho. Contudo, na redação final, Gogol elimina a
parte do sonho, deixando a estranheza ganhar dimensões próprias daquilo que já
se denominou acima de realismo grotesco.
Ao
analisar as três partes do conto, a autora chama a atenção para a ambiguidade
semântica resultante da “instabilidade lógica de certas construções
fraseológicas, onde a ordem das palavras se contradiz completamente a
compreensão do seu sentido”. Este tipo de construção sintático-semântica
reafirma o que já foi discutido antes, isto é, o fato de a própria realidade
aparecer enigmática e insondável.
Ainda
segundo a autora, todo o enredo do conto “caracteriza a busca de Gogol por uma
natureza baixa, numa luta para com as tradições literárias elevadas”. Para
isso, Gogol volta-se às raízes da tradição cômica e oral da cultura narrativa e
popular ucraniana, não apenas em O Nariz, mas de um modo geral em todos os
contos petersburgueses. Assim, o estilo grotesco de Gogol é uma crítica à ordem
aparente do mundo, abstrata e fixa.
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