Este texto foi baseado nos capítulos II e III do livro Dostoiévski Artista de Leonid Grossman (editora Civilização Brasileira, 1967).
Por J. P. A. G.
O autor abre o capítulo II / As leis da composição com uma declaração de Dostoiévski quando se sua prisão e condenação a trabalhos forçados na Sibéria. Neste manuscrito, segundo Grossman, está a chave para entender o método de Dostoiévski. Lê-se que, movido por uma força, escrevia irregular e convulsivamente, que interrompia a narrativa, por reminiscências estranhas e terríveis, como se o escritor estivesse em estado de demência. Essa confissão, eivada por traços realista de um prisioneiro deveria definir o projeto literário do escritor. Porém, pelo fluxo do retrato do enredo realista, irrompiam narrativas paralelas, caracterizadas pela intensidade de sofrimento. Estas narrativas, no entanto, não surgem de modo extemporâneo e independente ao foco narrativo principal, em primeiro plano, mas, ao contrário, emergem das entranhas desta, embora de modo contrastante.
O crítico caracteriza
este método como “uma ação dramática dupla ou multiforme” e lança a teses de
que o modelo de inspiração de Dostoiévski provém da teoria musical, no que se refere à arte contrapontística. Muito
embora Grossman não cite Johann Sebastian Bach, o músico barroco alemão foi o
maior expoente desse gênero musical com suas fugas, às quais consistem numa variação repetida exponencialmente
ao infinito de um único tema, isto é, uma frase melódica. Essas múltiplas vozes
transpostas para a literatura foi muito bem caracterizada por Bakhtin como
sendo Dostoiévski o “fundador do romance polifônico”. Neste sentido, e ainda
conforme Grossman, esta lei da composição da obra dostoievskiana poderia ser
representada com uma linha horizontal entrecortada por travessas repletas de
“episódios tumultuosos, que erguem a ação para a altura, e que parecem
transportá-las para um novo plano, onde a linha do argumento, paralela à
primeira, em breve também se precipitará para o alto, em virtude de uma nova
ocorrência incomum” (Grossman). O próprio Dostoiévski deu indicações em suas
anotações de seu método, sugerindo a teoria musical como estrutura de seus
romances, o que endossa a tese do crítico.
Dostoiévski tinha plena consciência de
seu projeto literário e planejava com riqueza de detalhe cada pormenor para a
realização prática de seus livros. As narrativas paralelas tendem a se chocar
em encontros tumultuosos entre os personagens, numa caracterização denominada
pela crítica literária de conclave.
Tudo culmina para que esses encontros alcancem ápices de intensidade emocional
e, após isso, grande frustração na expectativa do personagem pivô que está no
centro da articulação. Esse recurso, que define a comédia, pela anedota ordinária, como pensava Gógol, se
converte em Dostoiévski em alta tragédia,
diante da qual emergem “sentimentos profundos de humanismo e busca pela
verdade” (Grossman), e vai atravessar as obras de maturidade do autor.
Outra
lei da composição, em Dostoiévski, é o papel que exercem a poesia popular e o
folclore religioso, as antigas descrições da vida dos santos e parábolas
cristãs. Grossman cite, em particular, o livro “A andança da Mãe de Deus pelos
tormentos”, de N. Bokarov, ao qual Dostoiévski concorda com a crítica e o
compara ao Inferno, de Dante, em
qualidade literária. Pode se dizer que o tema, em seu fundo dramático, é bem dostoievskiano,
se isto não fosse um anacronismo: diante dos castigos eternos infringidos aos assassinos
de Cristo, Santa Maria implora a Deus o perdão dos algozes de seu filho. Outra
lenda que comovia Dostoiévski até as lágrimas era pecadora arrependida, Maria Egipcíaca, que lhe aparecia como
um poema moral, de “uma moralité da
velha Rússia”, nas palavras do crítico.
Também chama atenção, como uma das leis
da composição de Dostoiévski, a luta psicológica que se dá uma “tríade
trágica”, caracterizada por três encontros ou três conversas, que surgem como
momentos fundamentais do romance. Dentre outros exemplos, Grossman cita o
episódio de Crime e Castigo, no qual,
primeiro, Raskólnikov expõe em juízo suas teses sobre as leis da história;
depois, com o aprofundamento do interrogatório, o desmascaramento; e, por fim,
a acusação do assassinato. Outra característica, são as constantes citações de
obras de outros autores que, julgava, o haviam influenciado, tais como Púshkin,
Gógol, Alexandre Dumas, Jonathan Swift, Ernst Hoffmann, Rousseau etc. Conforme Grossman,
Dostoiévski também inovou com a introdução do dialogo interior que leva às
últimas consequências o drama psicológico, através de uma “bifurcação da
consciência”. A partir disso, contrapõe o estilo lírico por meio do monólogo
interior sem qualquer traço artístico, como pequenas notas informativas. Outro
ponto importante, na obra de Dostoiévski, foi a influência do romance
filosófico do século XVIII, nomeadamente, Voltaire, Diderot, Rousseau, Sterne e
próprio Hoffmann, o que também faz de escritor russo um pensador, ou filósofo
escritor.
No
terceiro capítulo, O Método Criador, Grossman mostra como Dostoiévski partiu da
Escola Natural, como seu romance inaugural Gente
Pobre, para desenvolver um método próprio de realismo em que, diante do
aprofundamento do drama psicológico, um elemento fantástico emerge. Mas não o
fantástico sobrenatural e, sim, o insólito inerente à realidade desmascarada,
que aflora com todo vigor e parece impossível. É justamente através dos fatos
empíricos, da realidade mais crua, que Dostoiévski descobre a sua poesia, no
sofrimento humano, e manifestada por um amor genuíno e redentor.
Assim,
Dostoiévski constrói os seus romances com dados da realidade, episódios
recortados de matérias jornalísticas, dados reais que transpõem, graças às
situações extremas, a lógica natural. São os dramas da vida cotidiana que
abundam as reportagens sensacionalistas, como o tema da prostituição,
alcoolismo, suicídio, assassinato etc., que fornecem a matéria prima para a
arte incomparável de Dostoiévski. A partir da coleção de tragédias da vida
real, Dostoiévski consegue descobrir a utopia e o fantástico, por meio do amor
abnegado. Não é a verdade dos fatos que está em jogo, mas uma verdade mais
verdadeira, interior, humana e poética, que emerge em meio ao caos político,
social e econômico. Com isso, seu método é visionário, e antecipa o futuro numa
literatura, como o próprio Dostoiévski definira: profética.
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