quarta-feira, 21 de junho de 2017

Um apólogo - Machado de Assis

Machado de Assis

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:


— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?


— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.

Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano.

Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


FIM

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Kid Vinil: o único herói do Brasil

Não devemos falar das personalidades ligadas ao rock, ou a qualquer outro segmento social ou cultural, apenas quando elas se vão. Mas também não podemos nos esquecer de prestar homenagens quando isso ocorre.


Recentemente perdemos o “personagem”, de tão extravagante que era, Kid Vinil: alegre, marcante e inconfundível.

Talvez ele não tenha sido uma unanimidade, mas muitos o consideravam como um verdadeiro mestre, o "professor". Controvérsias à parte, o que não nos resta dúvidas é que ele amava incondicionalmente a música: falava, cantava e vivia rock’n’roll.

Esse amor fez com que ele fosse um divulgador desse gênero musical no Brasil, isso em uma época em que não existia a internet! Eram poucas, senão raras, as publicações de rock no país.

Sempre presente no cenário musical, organizou shows de rock alternativo, punk rock e pós-punk, destacando-se anos 80.

Aficionado por todas as fases do rock, não apenas divulgou o underground internacional e nacional, mas também foi seu protagonista, ao criar a banda Verminose. Incentivador das novidades e garimpeiro de raridades, Kid regravou, com sua banda Magazine, a irreverente “Adivinhão”, de George Feedman, lançada originalmente em 1961, na época da Jovem Guarda. 

Além disso, foi apresentador dos programas de televisão Som Pop e do memorável Boca Livre, que passava na TV Cultura. Tornou-se também VJ da MTV e escreveu um livro chamado “Almanaque do Rock”.

No entanto, a fama veio mesmo nos anos 1980, com a Magazine e seus hits “Tic tic nervoso” e “Sou Boy”, clássicos do rock brasileiro.

E foi no palco que Kid Vinil se despediu do mundo.

No mês de maio do corrente ano, excursionando pelo Brasil, com outros músicos dos anos 80, Kid Vinil passou mal durante uma apresentação em Minas Gerais, sendo então hospitalizado e, posteriormente, transferido para São Paulo, onde veio a falecer aos 62 anos.

Mas o palco sempre será seu, Kid Vinil, o Herói do Brasil. (Paula Vanessa)

sábado, 10 de junho de 2017

Iracema - eBook

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domingo, 4 de junho de 2017

Odisseia - Canto 1: Telêmaco

Homero, Odisseia

Análise: Odisseia - Canto 1: Telêmaco

O tema escolhido para uma reflexão deste breve comentário é a posição de prestígio social de Telêmaco, conferido pela “fama”, em relação ao seu pai, Odisseu, tal como é sugerido no Canto 1 da Odisseia.

Zeus

Resumidamente, o referido canto inicia com os deuses reunidos em assembleia. Zeus é questionado pela queixa da deusa Palas Atena, por ter se esquecido de Odisseu. A deusa lembra que o herói perdera-se a caminho de casa, o reino de Ítaca, após a guerra de Troia. Odisseu furou o único olho do ciclope Polifemo, filho de Posêidon e a ninfa Tóosa. Como vingança, o colérico Posêidon mantém Odisseu longe da terra natal sem o destruir. Atena vai a Ítaca, onde encontra Telêmaco desolado, por desconhecer o paradeiro do pai e, pela ausência deste, não se sentir merecedor da fama dos heróis. A esposa de Odisseu, Penélope, é cortejada pelos pretendentes, aos quais a julgam viúva, procurando esposá-la. Estes vivem como parasitas no reino de Odisseu, jogando dados, embriagando-se e banqueteando.

É preciso salientar que, logo a partir do início do poema, Homero põe todas as cartas sobre a mesa, sem esconder nenhum trunfo na manga. Além do presente único, puro e perpétuo, onde tudo se passa em um primeiro plano, sem profundidade e perspectiva, de que nos fala Erich Auerbach, sobre o estilo homérico, outra característica apontada pelo teórico fica patente: a clareza. Portanto, nas palavras do autor de Mimesis, reconhece-se: “(...) representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. Não é diferente o que se dá com processos internos também deles nada deve ficar oculto ou inexprimido” (AUERBACH, 1976, p. 3). Esta célebre caracterização da poesia homérica, por Auerbach, tinha por contraponto o Velho Testamento, dada as raízes judaicas do teórico. Segundo o autor, o estilo parcimonioso do épico hebraico, que, tendo por pressuposto um Deus oculto, sem rosto, dá margem à perspectiva e profundidade dos fatos e da psicologia dos personagens, e contrasta frontalmente com a riqueza sintática, vocabular, geográfica etc., do estilo cristalino de Homero. Tal comparação ajuda-nos a compreender o estilo homérico. “De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, em interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos exprimidos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e com pouca tensão. De outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa a meta da ação; o restante fica na escuridão” (Idem, p. 8 e 9).

Esta caracterização estilística merece algumas considerações referentes ao contexto sócio-cultural em que a tradição evidenciou. De modo inverso ao Velho Testamento, conforme Auerbach, a função da poesia homérica não é a de expor a verdade - histórica (arqueológica) - e, sim, o lazer, embora isso não destitua seu caráter religioso. No caso dos hebreus, a verdade do passado mítico tinha de ser real por causa da promessa de Deus, da Terra Prometida e do fim dos tempos. Essa necessidade de realização não era pertinente para a teologia helênica.

Se o lazer era o catalisador da poesia homérica, seria importante caracterizar o contexto da execução performática apropriado às configurações formais da épica de Homero. Para nós modernos, situados no limiar do século XXI e de uma possível “odisseia no espaço”, é muito difícil compreender o contexto cultural da épica na Grécia arcaica. Para isso, seria necessário um exercício imaginativo que se abstivesse de uma longa tradição da escrita e de recursos de comunicação de alta tecnologia e extremamente recentes, como o rádio, o cinema e a internet. Porque, para os antigos, da Idade do Bronze, essa realidade, obviamente, era inimaginável. Estes dispunham apenas da palavra, isto é, da oralidade, já que na época dos heróis, precedente a Homero, não havia escrita na sociedade helênica; nem por isso deixaram de criar um repertório cultural riquíssimo e sofisticado.

É neste contexto que a figura enigmática de Homero e seus poemas têm de ser inseridas. Algumas questões são bastante conhecidas, como a tradição aristotélica dos gêneros literários, que consagrou a épica à narrativa de homens superiores e feitos heroicos. Também os recursos da forma poética, em Homero, para transmissão oral, recentemente, foi muito estudada (Parry e Lord). Evidentemente, alguns aspectos técnicos da poesia oral devem ser levados em conta, até mesmo por questões de memorização e transmissão da extensa narrativa em versos que ganharam, por isso, a conotação, ainda hoje, de grandeza sugerido pelo adjetivo “homérico”. Algumas dessas fórmulas são muito conhecidas, como a métrica da composição em hexâmetros datílico, abundância de epítetos, repetições, estruturas circulares ou anelares etc.

Porém, estas questões passam ao largo da recepção da audiência durante a performance na execução da épica no universo sócio-cultural da Grécia arcaica. De um modo geral, o poema épico está ligado ao mito fundador formador de identidade de um povo grego. Por isso as questões de performance, isto é, em que ocasiões as canções eram recitadas, os registros de linguagem, os temas e as relações entre o poeta e o público (FORD, 1997), devem ser também consideradas para a caracterização formal do poema épico.

Sobre isso, o próprio texto homérico fornece indícios significativos. A performance não era executada numa situação estrita, bem marcada, como festas nacionais. Os poemas eram recitados ou cantados por aedos profissionais em “rituais específicos e ocasiões comunitárias” (idem), como casamentos, banquetes, simpósios, festivais religiosos etc., tendo por finalidade o entretenimento, que davam o tom de seu aspecto formal específico. Segundo Ford, os cantores apresentavam-se sozinhos, acompanhados por instrumentos musicais de corda. Porém, tais elementos não permitem conjecturas precisas. “Nem os contextos de performance, nem os seus requisitos formais, portanto, nos ajuda com mais do que uma definição geral da épica arcaica: podemos somente dizer que já em Homero era um tipo de  poesia tradicional não-mélica, que podia ser adaptada a muitas situações, mas não se identificava especialmente com nenhuma e, assim, sem um nome específico. O que mais obviamente distinguia a épica de outras formas não-mélicas em metros iâmbicos e trocaicos foram os temas de que tratava” (idem, p. 7).

O Canto 1 apresenta exemplo que bem poderia definir o contexto de performance associada à tradição épica.

Depois de se fartarem, os pretendentes dançam e Fêmio, o aedo, constrangido canta:

“ (...) Um serviçal
transfere a Fêmio a cítara pluribelíssima,
constrangido a cantar por quem tomara o paço.
(...) Calados, escutavam o cantor notável (...).
À câmara de cima chega a voz do aedo,
ouvida por Penélope, filha de Icário,
que desce da alta escadaria, não sozinha,
mas com as duas fâmulas sempre solícitas.
Diante dos pretendentes, a mulher divina
estanca rente ao botaréu do teto altíssimo,
encoberta por véu translúcido, dedáleo,
uma ancila postada à esquerda, a outra, à destra.
Pranteava ao se voltar para o cantor divino:
‘Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens  
e de imortais que encantam as plateias, célebres.
Escolhe um deles, que, em silêncio, todos te ouvem
sorvendo o vinho: para o canto lutuoso
que dói no coração como um punhal bigúmeo;
o sofrimento incontornável me domina,
pois nunca deixo de rememorar o rosto de um herói,
cuja glória ecoa em Argos, na Hélade’.
(...) Voltaram-se ao deleite da poesia e dança,
à diversão que prenunciava o anoitecer,
e, enquanto divertiam-se, escurece a noite”.

 Nota-se que, neste caso, não há uma ocasião solene, de festividade nacional ou comemorativa de uma data histórica, mas apenas descreve uma situação em que os pretendentes, descontraídos, “passam o tempo” - sorvendo o vinho, jogando dados, dançando - no palácio de Odisseu. Penélope, ao entrar em cena, chora e lembra que o aedo Fêmio conhece um vasto repertório de temas épicos, tanto referentes a um deus como a de um herói que, entre tantos, poderia ser Aquiles ou mesmo Odisseu: “Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens e de imortais que encantam as plateias, célebres. Escolhe um deles (...)”. A atitude da plateia é de atenção: calados, em silêncio, todos te ouvem. Aqui, parece caracterizar bem o contexto de performance da épica.

Nesta passagem, confirmando Ford, também pode se perceber que Fêmio é um aedo profissional, especializado no gênero épico, portanto, inspirado por uma Musa, “que celebra a fama dos homens de antanho” (Hesíodo, citado por Ford). O fato de ele conhecer muitos feitos de homens e de imortais demonstra uma espécie de “divisão de trabalho”, definida pelas Musas, entre os poetas e cantores, que também tocavam instrumentos musicais durante a apresentação. O cantor épico cantava a glória (kléos) dos grandes feitos e heróis do passado.


No que concerne ao fato aludido por Auerbach, em sua distinção entre o épico grego e o hebraico, de Homero ser um mentiroso - “As que nos contaram Hesíodo e Homero - esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, são esses que fizeram para os homens essas fábulas falsas que contaram e continuam a contar”, diz Sócrates, em “A República”, de Platão - pode ser bastante relativizado. Se a promessa do Deus dos hebreus tornava imprescindível a veracidade factual dos heróis do passado, para o passado lendário, no caso da épica homérico essa não pode ter apenas um caráter de ficção, haja vista que Sócrates foi condenado por corromper a juventude. No entanto, não me sinto autorizado a entrar num terreno de tão difícil problemática, acerca das distinções teológica de culturas estranhas umas às outras. Mas Homero, quando invoca as Musas, simplesmente se deixa falar por elas, tal como uma revelação. O fato é que, segundo Ford, a invocação das Musas pelo aedo buscava conferir um sentido de “verdade” que marcadamente caracterizava a forma da poesia épica, porém, não só ela. A introdução do Canto 1 é bem significativa:

“O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas
errâncias, destruída Tróia, urbe sacra,
as muitas cidadelas e homens cuja mente
escrutinou, as muitas dores que amargou
no mar a fim de preservar o próprio alento
e a volta aos sócios. Não os salva, desejoso
embora: a insensatez – pueris! – os vitimou,
pois Hélios hiperônio lhes recusa a luz
da volta, morto o gado seu que eles comeram.
Começa desse ponto o canto, musa olímpica!”


Para resumir, o lugar e a relação formal da épica com a realidade sócio-cultural subjacente a ela, Ford escreve que a “épica grega arcaica deve ser, portanto, definida por termos formais, temáticos e retóricos. Consistia numa longa canção executada por um solista em uma recitação rítmica; e narrava com autoridade das Musas os feitos dos deuses e dos heróis antigos. Os temas tratados na épica, os “caminhos” que poderia tomar, eram extensos, mas categoricamente circunscritos numa concepção mítica de uma idade de ouro há muito perdida. As histórias eram apresentadas dramaticamente e sem pistas explícitas sobre como aplicá-las à vida do público” (Ford, p. 17).

Estas considerações, em que a glória (kléos) estruturava a narrativa dos feitos heróicos, ensejam uma reflexão sobre o personagem central do Canto 1, o jovem Telêmaco. Telêmaco é objeto de polêmica entre os estudiosos de Homero, por ser um adolescente. Mais especificamente sobre Telêmaco, “a caracterização dessa figura tem suscitado uma série de discussões, pela sua condição de jovem prestes a entrar na idade adulta: Telêmaco, ao contrário dos outros heróis homéricos que desempenham papéis de destaque, não é um homem feito” (MALTA).

Para alguns, o filho de Odisseu é um personagem sui generis no panorama de personagens estáticos da poesia homérica, pois apresenta uma evolução. Para outros, ao contrário, o desenvolvimento em Telêmaco já estava pressuposto em sua caracterização, não diferindo em essência dos demais personagens. Malta questiona a estaticidade dos principais personagens homéricos e sugere um meio termo entre essas duas posições. No caso de Telêmaco, o autor argumenta uma transição da infância para a idade adulta, suscitada pela visita de Atena. “Podemos afirmar então que a intervenção de Atena tem dois propósitos principais: estimular, através do furor e da reflexão incutidos, que Telêmaco abandone a passividade e se torne um realizador de atos e palavras; e fazer com que essa sua nova postura resulte na obtenção de seu kléos pessoal, que é uma confirmação do seu kléos familiar. Essa transformação, por sua vez (em curso na “Telemaqueia” e consolidada na segunda metade do poema), confunde-se com a sua passagem da infância para a idade adulta, com o estabelecimento de novas exigências e expectativas” (idem, p. 90). A idade adulta deve ser consagrada, para Telêmaco, pela fama que deve igualar ou superar a fama paterna.

O mote central se desenvolve numa cena típica de recepção. A deusa Atena disfarçada no estrangeiro Mentes, rei dos táfios, é recebida no palácio por Telêmaco, que realiza toda a etiqueta de hospedagem. Nisso, Atena relembra, a Telêmaco, Odisseu, afirmando que este vive, e que seu retorno significaria a vingança dos pretendentes de Penélope, que, como autênticos parasitas, desonram o lar do herói de Troia. Para mostrar familiaridade, a deusa conta o episódio das flechas envenenadas envolvendo Anquíalo, pai de Mentes, e Odisseu. A princípio, Telêmaco titubeia, talvez pela sua imaturidade, e chega a pôr em dúvida até mesmo sua filiação consanguínea a Odisseu quando indagado por Atena. Sua lembrança do pai não é física mas de seus feitos, de sua coragem. A deusa, por outro lado, retruca que o jovem assemelha-se muito, fisicamente, a Odisseu, e que não é da vontade dos deuses que linhagem deste caia em esquecimento. A incerteza mediante ao paradeiro de Odisseu impele Telêmaco a acreditar que ele não é merecedor de sua glória, mas, antes, da dor como legado de seu pai. Atena, então, para lhe incutir coragem, cita o exemplo de Orestes e o instrui Telêmaco a buscar notícias de Odisseu em Pilo e Esparta para, a partir disso, também conquistar sua própria fama. Ao partir, Atena manifesta sua divindade ao voar como uma pomba. O limitado leque de opções de Telêmaco, em relação aos pretendentes, resultam em apenas uma saída: matá-los, porque é exatamente este fim que lhe será reservado se por acaso um pretendente casar com sua mãe.


Fragmento do discurso de Atena:

“(...) O jovem deve obter na Pilo multiareada
e Esparta alguma informação do pai que volta.
Que a expedição o afame entre os mortais de estirpe!”
(...)
Se ouvires que ele vive e que retorna a Ítaca,
suporta a dura espera, mesmo se de um ano,
mas se ouvires que já morreu, erige um túmulo
tão logo chegues, ricas oferendas fúnebres,
muitíssimas, concede, e um novo esposo à mãe!
Quando não mais houver questão pendente, indaga
a ti mesmo, rumina o coração e a mente
sobre o modo melhor de eliminar em casa
a corja de chupins, se à bruta ou se iludindo-os.
Deixa de criancices que não és criança!
Ignoras que o divino Orestes se afamou
em toda Grécia ao trucidar o algoz do pai,
Egisto, homem ladino, matador do herói?
Pois te equiparas a ele em porte e vigor físico:
hão de louvar os pósteros o teu rompante!
os pósteros irão louvar o teu rompante!”
           

De fato, há mudança nítida de postura em Telêmaco. O filho de Odisseu era inseguro e taciturno perante os pretendentes. No final, discursa destemido, surpreendendo até mesmo sua mãe. Sabe-se que não é mais uma criança e que, para se tornar adulto e digno de sua ascendência nobre, deve buscar sua própria fama. A visita de Atena é este ponto de inflexão, ao lembrar-lhe da estirpe de Odisseu.


BIBLIOGRAFIA


AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1976.


FORD, A. Epic as genre. In: MORRIS, I.; POWELL, B. (Org.) A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1997, p. 396-414.


HOMERO, Odisseia, (Tradução: Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34, 2014.



MALTA, A. A linguagem fora de controle: o discurso de Agamênon no Canto 2 da Ilíada. Ordia Prima, v. 8, p. 25-49, 2011.