terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Guimarães Rosa: a invenção da linguagem, por Alfredo Bosi

João Guimarães Rosa nasceu no ano de 1908, em Cordisburgo, zona pastoril centro-norte de Minas Gerais. Formado em medicina, exerceu a profissão em Itaúna e Barbacena. Poliglota, aprendeu sozinho alemão, russo, francês, inglês, húngaro, grego, latim, italiano e espanhol. Em 1934, ingressou na carreira diplomática, servindo em Hamburgo, Lisboa, Bogotá e Paris.

Como escritor, publicou sua obra máxima Grande Sertões: Vereda – um clássico da literatura brasileira. Frequentemente, Guimarães Rosa é comparado ao escrito irlandês James Joyce pelo experimentalismo que ambos realizaram na linguagem. De fato, característica marcante da obra de Guimarães Rosa é a linguagem que recria e transfigura o linguajar popular através de metáforas poéticas próprias. Embora sua obra literária não possa ser classificada como simplesmente regionalista, o “regionalismo” de Guimarães Rosa, povoado por personagens do sertão, como jagunços, peões, vaqueiros, coronéis, beatas, prostitutas etc., assume aspectos universais, transitando dialeticamente entre o local e o global, o real e o mágico, o concreto e o abstrato, o finito e o infinito etc. Polêmicas à parte, talvez a melhor definição da obra de Guimarães Rosa é a metáfora do crocodilo e do rio São Francisco escrita pelo próprio Guimarães Rosa:

“(...) Gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um “magister” da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sentimento dos homens. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade”.

Obras:

Sagarana (1946) – contos;

Corpo de Baile (1956 - 1964) – novelas: Manuelzão e Miguilim (“Campo Geral” e “Uma Estória de Amor”); No Urubuquaquá, no Pinhém (“O recado do Morro”, “Cara de Bronze” e “Lélio e Lina”); Noites do Sertão (“Lão-Dalalã” e “Buriti”).

Grande Sertão: Veredas, 1956 – romance.

Primeiras Estórias, 1962 – contos;

Tutameia – Terceiras Estórias 1967 – contos;

Estas estórias, 1969 – contos;

Ave, Palavra, 1970 – contos.

 

A invenção da linguagem em Guimarães Rosa

Por Alfredo Bosi

(em: História Concisa da Literatura Brasileira)

A obra de Guimarães Rosa implica uma alteração profunda no modo de encarar a palavra, tomada como um feixe de significações. Além do referente semântico, signo estético é portador de sons e de formas que desvendam, fenomenicamente, as relações íntimas entre significado e o significante.

Voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as barreiras entre narrativa e lírica, revitalizando recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos sintáticos, vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos, coralidade.

Suas experiências semânticas e invenções fundamentam-se no inventário dos processos da língua. Imerso na musicalidade da fala sertaneja, ele procurou, em Sagarana, fixá-la na melopeia de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais.

“As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos de baques, e o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...

Um boi preto, um boi pintado,

cada um tem sua cor.

Cada coração um jeito

de mostrar o seu amor.

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...”

Vale observar a riqueza e a ousadia de algumas reinvenções de Guimarães Rosa, em palavras como “essezinho”, “essezim”, “salsim”,” satanazim”, “semblar”, “fiúme”, “agarrante”, “levantante”, “maravilhal”, “fluifim” (adj.),” gaviãoão”, “ossoso”,” vivoso”, “brisbrisa”, “cavalanços”, “refrio”, “retrovão”, “remedir”, “deslei”, “desfalar”, “acismorro”, “de pouquinho em pouquim”, “o ferrabrir dos olhos”, “abrumalva”, “alemão-rana”; ou em frases e períodos como “a bala beija-florou”; “os passarinhos que bem-me-viam”; “os cavalos aiando gritos”; “recebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas...”; “ao que nós acampapados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzeas; me revejo de tudo, daquele dia a dia; aí a gente se curvar, suespendia uma folhagem, lá entrava; resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordas”; “e aí se deu o que se deu – isto é”; “eu era um homem restante trivial”; “aí, de, já searapuava o Gorgulho mestre na desconfiança...”

O mitopoético foi a solução romanesca de Guimarães Rosa, situando sua obra na vanguarda da narrativa contemporânea que se tem abeirado dos limites entre o real e o surreal, explorando as dimensões pré-conscientes do ser humano e nutrindo-se de velhas tradiçõe, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio entre o sagrado e o demoníaco.

A saída proposta por Guimarães Rosa para esconjurar o pitoresco e o exótico do regionalismo deu-se com a entrega amorosa à paisagem e ao mito, reencontrados na materialidade da linguagem. A saída de Guimarães Rosa não é a única para o escritor brasileiro hoje, mas é que nos fascinará por mais tempo e com mais razões.