Algum tempo atrás,
influenciados pelo cientificismo antropológico de cunho racista do século XIX,
alguns sociólogos brasileiros tentaram definir o “caráter” – entendido como uma
natureza psicológica de fundo biológico e social – do povo brasileiro com a
expressão “homem cordial”.
Segundo o conceito de cordialidade, diante do estrangeiro,
notadamente, o comportamento do brasileiro se caracterizava pela excessiva
gentileza, solicitude, submissão, amistosidade, fascinação, subserviência,
adulação, humildade e um certo complexo de inferioridade.
Todavia, a conduta cordial
não se dirigia a todo e qualquer estrangeiro, mas somente aos europeus,
principalmente, ingleses, franceses e alemães, e também aos estadunidenses;
tanto uns quanto outros distintos por um tipo físico caucasiano do norte da
Europa.
O que a sociologia
brasileira negligenciava, talvez até mesmo por causa de sua cordialidade, é
que, dentro de uma escala de valores, tudo se passava como se o brasileiro
ocupasse um lugar intermediário. Latino-americanos, africanos, indígenas e
outras etnias “não brancas” sempre sofreram o desprezo e a indiferença da
população brasileira em geral, muito embora esta tenha sido um produto de
mestiçagem, envolvendo tais grupos étnicos, que tanto queria extirpar, através,
como diria Darcy Ribeiro, da doutrina racista do branqueamento da raça, ainda
hoje vigente sem o esmalte da institucionalidade.
É certo que um alemão
contará no Brasil com uma recepção calorosa em todas as classes sociais e não
terá dificuldades em fazer amigos – muitos amigos, aliás. Já um haitiano, por
exemplo, será mal visto e tratado com preconceito, sendo excluído do menor
convívio com brasileiros.
O conceito de cordialidade, entretanto, é mais largo,
abrangendo uma conduta subalterna dos indivíduos perante a quem é percebido
como superior na hierarquia social (o chefe, a autoridade, o patrão, o
fazendeiro etc.), e ultrapassa a questão nacional ou racial (apesar de o fator
econômico coincidir com o de raça e o branco ocupar o topo da pirâmide social).
Evidentemente, o homem cordial nunca passou de uma ficção
teórica, já que o caráter biológico
não pode ser empregado a um agente coletivo, como é o caso de um povo. A cordialidade é um conceito
pseudocientífico ou, pelo menos, um falso conceito que esconde e dissimula o
verdadeiro ethos do povo brasileiro,
o qual pode ser realmente definido por um traço cultural extremamente enraizado
nos hábitos e costumes da população: a
cafajestagem.
A cafajestagem nada tem a ver com o antropofagismo representado por
uma figura mítica como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Nada tem de estético
ou positivo, pois a cafajestagem é a
essência abjeta que se manifesta
no extremo oposto de sua própria aparência
vil, a cordialidade, e pode se
definida pela truculência covarde no trato com o igual ou o socialmente
“inferior”, tradicionalmente, mulheres, crianças, empregados, índios, negros,
pardos, trabalhadores e escravos...
É nesse aspecto que a mulher
pode ser encarada como uma espécie de elemento universal, constituído por todas
as categorias rebaixadas socialmente, cuja condição afetiva a coloca sob o
domínio direto do cafajeste, que faz dela sua principal vítima.
O homem cordial depois de se rastejar de maneira asquerosa aos pés de
seu superior, ao retornar para o lar se transforma em cafajeste, tal qual um Sr. Hyde à brasileira, e desconta toda sua
frustração e seu ódio, não raro com agressões físicas, em cima da mulher,
geralmente, sua esposa, namorada, filha, empregada doméstica, amante,
prostituta etc. Atitude que não merece reprovação da vizinhança nem das
instituições públicas. Ao contrário, o estereótipo do cafajeste, violento,
dominador, mandão, machão e paternal, é valorizado por homens e mulheres como
sinal de virilidade, em nada abalado pelo seu comportamento dócil e tíbio na
esfera pública e hierárquica.
Na mentalidade tosca do
cafajeste a mulher é cronicamente imatura, devendo, por isso, obediência
absoluta ao homem e por ele tutelada. Em última análise, o cafajeste acredita
deter do poder de vida e morte da mulher e que a ele cumpre decidir sobre o
destino dela, para o bem ou para o mal – geralmente mais para o mal.
Soma-se a essa realidade a
falta de cultura ostentada portentosamente pelo povo brasileiro que tanto
escandalizou um intelectual da estatura de Otto Maria Carpeaux. Fruto do
subdesenvolvimento histórico e do fosso abissal que separa as classes sociais,
a ignorância é um problema na sociedade brasileira cuidadosamente mantido e
preservado por anos de descaso intencional com o ensino e a escola pública. Até
mesmo a riquíssima produção cultural do folclore brasileiro é descartada e
substituída pela importação fácil de valores efêmeros oriundos da indústria
cultural anglo-saxônica, fomentando ainda mais a boçalidade atroz do cafajeste,
que no seu ínfimo repertório vocabular só sabe falar de futebol.
Acrescente-se ainda a
impunidade que atravessa o país em todos os níveis, garantida por uma
legislação que mais parece ter sido feita por um bando de salteadores, e teremos
um coquetel explosivo.
Quem nunca ouviu alguém
dizer a frase: “No Brasil não vale a pena ser honesto”. Pois é, não é à toa que
no Brasil é mais fácil acabar com as leis trabalhistas e previdenciárias do que
mudar uma vírgula do código penal. O que pode ser explicado pela índole
escravagista de nossos legisladores e das máfias que governam o país e se
beneficiam da impunidade. O fato da Suprema Corte reconhecer somente em 2021
(!!!) a inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra, artifício
legal que inocentava os homens em casos de feminicídio, não é motivo nenhum
para comemoração mas, sim, de manifestar profundo repúdio por tantos anos de
cumplicidade do Estado com os crimes praticados em nome da honra masculina
ferida.
O mais assustador de tudo
isso é constatar a atualidade de um texto sobre violência contra a mulher
escrito a mais de cem anos atrás. Trata-se de uma crônica de Lima Barreto,
publicada em 1915, em que o autor termina o texto com a seguinte reprimenda: Deixem as mulheres amar à vontade. Não as
matem, pelo amor de Deus!
Lima Barreto é um dos
escritores mais inteligentes e injustiçados da literatura brasileira e, não por
acaso, foi preterido pela Academia Brasileira de Letras. (Entre tantos erros de
Machado de Assis, talvez a ABL seja o maior deles: mera macaqueação da Academia
Francesa). Sem saber, Lima Barreto poderia jactar-se de não carregar essa nódoa
em sua biografia. A ABL não merece um Lima Barreto vestido com aquele fardão
ridículo ocupando suas cadeiras, pois o literato em questão é grande demais
para ela. Provido de uma lucidez e um espírito crítico sem igual em nossa
literatura, Lima Barreto nunca foi um homem cordial, tampouco um cafajeste.
Talvez, tenha sido esse o seu pecado capital, nesta invenção mal-ajambrada
chamada Brasil.
O que nos serve de consolo,
é saber que o resto do mundo não é melhor e que os países ditos de “primeiro
mundo” só são melhores do que nós no quesito hipocrisia. Fora isso, são muito
piores. O que não é desculpa para fecharmos os olhos para as mazelas do Brasil,
dentre muitas, a violência contra a mulher.
Por isto, neste 8 de Março,
ninguém menos que Lima Barreto para abrilhantar nossas páginas, em que pese a
carga negativa do tema em tela. O texto que vamos ler a seguir é mais do que
didático e deveria ser leitura obrigatória a todos os brasileiros desde a mais
tenra idade.
Não
as matem
Lima
Barreto
Esse rapaz que, em Deodoro,
quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência
de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.
O caso não é único. Não há
muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas
bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio a
morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo
carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com
montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e
matou-a.
Todos esses senhores parece
que não sabem o que é a vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito
de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer Não sei se se julgam
muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos
arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que
é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão. O ladrão ainda nos deixa
com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem
estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos
que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas
De resto, semelhantes
cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura
mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa
vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes
desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais
pelos namorados amor ou coisa equivalente?
Todas as considerações que
se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as
mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser
desprezadas.
Esse obsoleto domínio à
valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de
indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a
influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os
seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve
ter existido Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm
mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe,
mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo
tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.
Deixem as mulheres amar à
vontade.
Não as matem, pelo amor de
Deus!
Vida urbana, 27/01/1915