segunda-feira, 1 de abril de 2024

"Eu versos eu" - (Última parte) - Antologia

 Antologia poética

131.

Absolutamente tudo,

Eu.

Puro nada absoluto,

Sou.

 

132.

O coração fala, pelo olhar

Mas os olhos são mudos

 

Que idioma fala o coração?

Uma língua sem palavras

Sem gramática, sem regras

 

O coração vê, ao beijar

A boca, que é cega

 

Que enxerga o coração?

Uma verdade verdadeira

Imediatamente, revelada

 

O coração escuta, ao tocar

O peito, um surdo palpitar

 

Que ouve o coração?

Um abraço, um gemido, o amor

Pulsar, pulsar, pulsar

 

O coração sente, ao sonhar

A alma, intocáveis infinitos

 

Que sente o coração?

Um suspiro, um desejo

Amar, amar, amar

 

133.

Não sou poeta

Jamais poderia ser... poeta

 

“Ser Poeta”

 

O que faço

É verso errado

Mais escrito com o coração

Do que cérebro e mão

Confissão, grito

Sem interlocução

Sem audição

 

Solidão...

 

Escritos

Sentidos

Somente sentido

Infinitos...

Em todas as direções

 

Lidos

Fingidos

Engano verídico

Relido...

 

Refletidos, em mim

Espelho-imagem

Sem forma sem eu

Estranho, desconhecido

Estrangeiro

Diante de mim

 

Só...

 

Só eu, vazio, sem poesia


134.

Mal havia chegado na festa e um conhecido, o Carlão, gritou o meu nome: “João! João!” Fui ao seu encontro e o cumprimentei em meio a uma roda de cinco rapazes. “João, me disse, eu quero te apresentar um grande poeta, o poeta Luizinho, um grande poeta, um poeta de mão cheia, um poeta e tanto, um Álvares de Azevedo do antropoceno, um Gonçalves Dias da globalização. Este sim é um poeta com “p” maiúsculo. Este sim! Você tem que ler os poemas do poeta Luisinho; você precisa ler os poemas do poeta Luizinho!” O poeta Luisinho era um homem negro, de estatura muito baixa, magro, roupa social, uma lata de cerveja na mão. Recebia os elogios de meu cicerone da literatura com um leve sorriso de soslaio que sinalizava um não sei quê de arrogância ou falsa modéstia. Acenei para ele que apenas me respondeu com um abaixar de cabeça. Ao se recompor, o poeta manteve a mesma expressão de antes. Então, após uma troca de cordialidades com o pessoal do grupo, que eu não conhecia, o Carlão se afastou a pretexto de cumprimentar alguém que ele, provavelmente, não via havia muito tempo, tamanho seu entusiasmo e a pressa com que desapareceu, me deixando a sós com os cinco desconhecidos. Luizinho, o célebre poeta, não se abalou com a saída de Carlão e permaneceu com o meio sorriso no rosto. Os outros não sabiam o que fazer da minha presença. Embaraçado, procurei uma desculpa e me retirei dizendo que logo voltaria. A festa estava lotada, uma algazarra de vozes femininas e masculinas que pronunciavam palavras incompreensíveis em um turbilhão de conversas emaranhadas por um caos sintático sem sentido. Eu andava por entre a multidão a procura de diversão ou, melhor, da felicidade nos beijos da tão sonhada mulher amada que eu esperava conhecer naquela patuscada, quando me deparei, à distância, com o poeta Luisinho, num canto, sozinho, envolto por uma aura de silêncio, segurando a lata de cerveja, o sorriso pela metade. Passava um camarada que reconheci da roda de amigos e eu disse: “Ninguém se importa com o poeta Luizinho”. Ele apenas olhou, sorriu e continuou o seu caminho. Eu segui o meu, atrás do amor da minha vida, que eu encontraria se a sorte me favorecesse naquela noite animada. O tempo passava e eu já sentia os efeitos do álcool que minava pouco a pouco minha timidez. Subitamente, cantava alto, gritava feliz e tudo me parecia maravilhoso. Mas... lá estava outra vez o solitário poeta Luizinho, bem na minha frente. A mesma lata de cerveja, o mesmo sorriso em um lado da face. Só que desta vez não era o mesmo sorriso de superioridade que esboçava na véspera, mas o de um palhaço triste e abandonado atrás das cortinas, na coxia, ao longe do picadeiro. Ah, o poeta Luisinho, ninguém liga para o poeta Luizinho – pensei. Segui em frente alucinado, absorto em divagações: Será que um dia vão publicar as poesias do poeta Luisinho? Excelsa obra nascitura das letras no altar das inspiradoras Musas! Não, ele é pobre, nunca viajou para Paris, não tem padrinho, não tem pistolão. Ó poeta Luizinho, não és senão patinho feio, desprezado por todos, nunca conhecerás a glória dos graciosos cisnes que navegam no lago do parque. E só agora me dou conta, o Luisinho do poeta Luizinho é com “z” ou com “s”? Até aqui tenho misturado alhos com bugalhos. Mas vejam como são as coisas deste mundo; um pequeno fonema e um problema homérico. Ser ou não ser... Tomemos a questão com mais rigor: Luiz tem som de “s”; Luisinho tem som de “z”; pelo sim, pelo não: Luis-zinho. Um hífen e tudo está resolvido: eis uma bela capa, digna de um poeta, a do poeta Luis-zinho! Desgraçadamente, a insigne antologia é apenas um capricho da minha imaginação, pois, que diferença faz, afinal, nunca vão publicar o poeta Luizinho. Que seja com “s” ou com “z”, dane-se... Nunca vão publicá-lo. Quantos Camões em potência! Quantos Camões em aparência! Quantos em ato? Quantos de fato? Não, não, senhoras e senhores, o poeta Luizinho nunca se sentará com ar de importância atrás de uma mesa diante de uma fila de fãs ávidos por tirar uma selfie com seu ídolo sorridente numa sessão de autógrafos! Sejamos realistas. E de repente a multidão se abriu diante de mim como um mar vermelho, desvelando no centro pouco iluminado a figura desajeitada do poeta Luisinho, segurando a lata de cerveja, sorrindo de través, desesperado; quer revelar ao mundo toda a sutiliza de sua sensibilidade; sonha em abrir as largas asas e alçar voo sobre universos oceânicos para alcançar altitudes telúricas e pousar no majestoso panteão dos deuses da poesia! Então me dei conta que só existia ele na festa, que era a única alma viva, de carne e osso, já que a multidão de pessoas não passava de sombras voláteis, fugidias, impalpáveis, que evanesciam quando me defrontava com a minha própria solidão. Gritei: Onde estão todos? Não há ninguém aqui! Se soubessem o quanto deve ser caro para o poeta Luizinho seus rasurados cadernos de poesia; o quanto se agarra a eles de maneira sovina como um náufrago se aferra a um pedaço de madeira enquanto afunda num pântano escuro e abissal? Para depois dizer tristemente para mim mesmo: De que adianta? Ninguém dá bola para o poeta Luisinho! Dei uma gargalhada e avancei furiosamente sedento a procura de qualquer substância transcendental que me elevasse às sublimes dimensões inauditas das utopias. A madrugada avançava, e eu já me arrastava, cambaleando, melancólico, terrivelmente derrotado. Sem conseguir dar mais um passo, tropecei; despenquei no infinito. De bruços com o rosto colado no chão, consegui virar meu corpo. Diante de mim, o misterioso céu noturno estrelado. Lindo. Um milhão de estrelas. Perfeição. Olhem: um milhão de estrelas! Onde estão todos? Venham ver! Cadê o poeta Luizinho? Eu preciso ler as poesias do poeta Luisinho! Cadê o poeta Luizinho? Ainda me sobrava um resto de força. Levantei-me e o procurei. Numa clareira vazia, tal qual um palco de piso carcomido, encontrei uma lata de cerveja vazia caída no chão. Ali estava o poeta Luisinho. Ah, o poeta Luizinho! Passado alguns meses, encontrei o meu amigo Carlão. Então, perguntei, e o poeta Luisinho? Ele me olhou com um ar interrogativo e respondeu: Que poeta Luizinho?